Palavras reunidas não depauperam crises, pelo contrário! Por Andrea Nakane.

Um comunicado oficial pode agravar, ainda mais, uma crise e, por isso mesmo, deve ser muito bem elaborado, fugindo de juízos de valor e externando realidades críveis, por mais dolorosas que sejam.

Profissionais de área de Relações Públicas, desde o seu surgimento em 1906, aprendem que é impossível trabalhar com a opinião pública e/ou outros públicos de interesse sem efetivamente relacionar identidade, imagem e reputação.

E no âmbito de uma gestão de crise, tal tripé encontrará ainda mais fragilidade se ações assertivas não forem conduzidas pela organização.

As empresas estão sendo desafiadas a ir além de declarações vazias sobre um “propósito maior”. Os consumidores e demais stakeholders desejam ações concretas que demonstrem o comprometimento real das empresas com questões sociais e ambientais. O greenwashing, socialwashing e outras práticas enganosas estão perdendo aceitação, e as organizações são incentivadas a fornecer benefícios tangíveis em vez de benefícios intangíveis.

Num ambiente de comunicação corporativa em constante transformação, as empresas que conseguirem se adaptar a essa tendência estarão posicionadas em uma melhor condição de gerenciar reativamente uma crise, sempre sendo a melhor estratégia tratá-la de forma preventiva. As chaves são a agilidade, a autenticidade e a capacidade de se conectar de maneira significativa com públicos diversos.

Por isso, de forma muito didática, como profissional de RP, jornalismo e marketing, proponho um exercício baseado no conteúdo do comunicado oficial disponibilizado pela Time4Fun em seus canais próprios de comunicação, seis dias após o óbito da jovem Ana Clara Benevides, ocorrido durante o show da cantora norte-americana Taylor Swift, em decorrência da grave falha da organização frente às elevadas temperaturas ocorridas na cidade do Rio de Janeiro.

Para facilitar a compreensão, em negrito estão os textos extraídos da narrativa assinada pela empresa.

“A Time For Fun tem uma experiência de mais de 40 anos produzindo entretenimento ao vivo, com produções de grande porte, no Brasil e na América do Sul. Nesse tempo, recebemos mais de 50 milhões de pessoas em mais de 20 mil eventos realizados”.

Um parágrafo atemporal, que não situa o leitor ao fato em si e já demonstra uma espécie de início de um texto “sabonete” – jargão jornalístico para coisa escorregadia, dita sem se comprometer. A opinião pública não tem interesse, neste momento, das glórias da empresa e jamais deveriam ser o destaque da introdução da narrativa.

Um pedido de desculpas imediato seria muito mais alinhado com a construção de uma comunicação solidária.

“A preocupação e o compromisso de toda a equipe da T4F é sempre o de entregar a melhor experiência para o público que recebemos, de forma segura e confortável. Para atingir esse objetivo, nossa equipe trabalha com as melhores práticas do setor de eventos em todo o mundo, bem como segue à risca as determinações das autoridades em cada um dos locais onde opera”.

Uma inverdade sentida na pele de pelo menos para cerca de 60 mil pessoas que encontraram um ambiente hostil e desconfortável no estádio Nilton Santos, transformado em uma espécie de caldeirão, já que tapumes nas aberturas de ventilação, que foram colocados ao redor de sua arquitetura para impedir vazamentos de imagens para os vizinhos do espaço. Esta é a percepção da empresa de melhor experiência? Em que dicionário essa adjetivação é encontrada para o que foi sentido no dia do espetáculo. Esse relato contraria a percepção e a realidade vivenciada pelos espectadores presentes no estádio. Muitos dos milhares de fãs que estavam no estádio reclamaram da sensação térmica, da falta de acesso à água e de problemas de estrutura por parte da organização. Na mesma noite do show, a imprensa reportou que mais de mil pessoas desmaiaram e tiveram de ser atendidas nos postos médicos do estádio.

“Todos, porém, estamos sujeitos a intempéries, e toda melhor prática pode ser sempre aperfeiçoada. No final de semana em que a T4F realizou os três shows da cantora Taylor Swift no Rio de Janeiro, no Estádio Nilton Santos, a capital carioca registrou a maior temperatura do ano, bem como a maior sensação térmica da série histórica, em uma situação sem precedentes. Segundo o Alerta Rio, sistema de monitoramento climático da Prefeitura, no dia 18/nov, sábado, a temperatura na cidade chegou a 43,8ºC, com sensação de 59,7ºC. Isso ocasionou um alto volume de queixas pelo público e ocorrências durante a apresentação do dia 17/nov, sexta-feira, bem como o adiamento da apresentação do dia 18/nov.”

Nesse momento, a T4Fun resgata fatos reais e começa a assumir sua fragilidade de gestão, ainda de forma muito superficial. Vale uma ressalva no que diz respeito ao sábado, dia 18/11, após a abertura dos portões: a produtora responsável pelo show resolveu adiar o show, numa decisão sensata devido à grande onda de calor, mas tomada no momento errado – tal decisão deveria ter sido tomada antes. Por que não o fez?

 “O aumento das temperaturas causado pelas mudanças climáticas é uma realidade. Após o último final de semana, fizemos uma reavaliação de nossas práticas e protocolos para incorporar os aprendizados que tivemos, com foco na execução de eventos em um ambiente de temperaturas extremas. Alguns exemplos são a criação de novas ilhas de distribuição de água gratuita (que sempre esteve disponível), proporcionar sempre que possível mais locais de sombra dentro e fora do estádio e iniciar os shows em horários mais tardios, respeitando a legislação local, a exemplo do que fizemos no domingo (19/nov) e na segunda-feira (20/nov), entre outras medidas”.

Nesse parágrafo, a T4Fun assume que não estava preparada para tais situações e explicita suas ações para que as mesmas não venham atingir os públicos nos demais shows da turnê sob sua organização, não só no Rio de Janeiro, mas em São Paulo também. E a questão do fechamento com tapumes da saída de circulação de ar do estádio? Nem uma linha…

 “Além disso, entendemos que todo o setor de eventos precisa repensar o modelo diante dessa nova realidade climática, com o necessário envolvimento das autoridades competentes – a entrada de garrafas de água plásticas flexíveis em estádios era vedada por determinação oficial, por exemplo, e foi liberada apenas após os episódios do último final de semana. Temos o compromisso de participar dessa discussão e de contribuir para que possamos todos melhorar as práticas da indústria como um todo”.

Sem efetivamente apresentar-se responsável pelo caos oferecido aos participantes no primeiro dia de show no Brasil, a T4Fun, tenta desviar seu foco, em um discurso coletivo, propagando que o mercado de eventos deve se posicionar com relação à nova ordem climática do mundo, convocando o Estado e externando seu compromisso de estar junto nessas discussões para formatar novas práticas.

“Nada disso, porém, muda o fato de que, pela primeira vez em mais de 40 anos de atuação, registramos uma fatalidade em um evento organizado pela T4F. Estamos absolutamente desolados com a perda da jovem Ana Clara, mesmo com o pronto atendimento e todos os esforços realizados pelas equipes médicas do evento e, depois, no hospital. Desde o ocorrido, nos colocamos à disposição de membros da família para prestar a assistência que fosse necessária, e fomos orientados por eles a manter conversas com o advogado que os representam, com quem seguimos em contato. Entendemos a profunda dor dessa perda irreparável, respeitamos a privacidade da família e reforçamos a disposição da T4F em colaborar tanto com a família quanto com as autoridades responsáveis, que ainda estão trabalhando para determinar a causa do falecimento”.

Somente agora, a T4Fun acolhe a dor de ter tido um óbito sob suas mãos e volta a falar de sua trajetória de 40 anos, que até então, estava imaculada sem esse triste fato. Na narrativa, há o uso da palavra desolados, mesmo só tendo vindo à tona seis dias depois do acontecido. E, ainda neste parágrafo, há inverdades que foram confirmadas em entrevistas nacionais pelos familiares da vítima. Não existiu a disponibilidade da empresa em estar junto do núcleo familiar de Ana Clara Benevides para as providências de traslado, velório e sepultamento, sendo que todo esse processo foi financiado pelos fãs da Taylor Swift que, comovidos com a situação dramática, realizaram um financiamento coletivo por meio de uma contribuição eletrônica, a qual conseguiu arrecadar um montante necessário para tais providências.

“O conforto, a segurança e o bem-estar de nossos consumidores e colaboradores são, sempre, as nossas prioridades”.

Frase solta, que não se sustenta na análise de todas as negligências expostas pela empresa. Totalmente pretenciosa e sem consolidação frente ao ocorrido e testemunhado por milhares de pessoas que compartilharam em suas redes sociais o sufoco e inquietações vivenciados in loco.

“Em relação aos eventos no Rio de Janeiro, pedimos desculpas aos fãs que não tiveram a melhor experiência possível. Àqueles que não puderam usar os seus ingressos na apresentação adiada, pedimos que nos procurem pelos canais de atendimento até o dia 20 de dezembro, para que possamos proceder ao reembolso, caso não tenha acessado o show, que será realizado respeitando a modalidade de pagamento utilizada pelo consumidor no ato da aquisição do ingresso”.

Até que enfim, um pedido de desculpas, mesmo que no penúltimo parágrafo do comunicado oficial. O reembolso foi mais que uma ação obrigatória, já que o consumo do serviço comprado não existiu. Geralmente em processos judiciais, mudanças climáticas não são da responsabilidade da organizadora que está sendo processada justamente por serem fatores externos e de não responsabilidade da marca. Mas as ondas de calor estavam previstas há semanas e isso foi negligenciado, portanto…

“Aos fãs que estarão nos shows em São Paulo, nos dias 24, 25 e 26 de novembro, queremos assegurar que estamos trabalhando sem descanso para proporcionar uma experiência emocionante e inesquecível. Vamos manter o reforço da nossa operação, com maior número de pontos de distribuição de água, além de contar com bebedouros do estádio. Ampliamos nossas equipes de apoio para orientação ao público e cobertura médica. Lembramos ainda que é permitida a entrada com copos de água descartáveis ou garrafas plásticas flexíveis, sempre lacrados, e alimentos industrializados também lacrados. Para este final de semana a previsão é de chuva, com temperaturas mais baixas. Nossa equipe está monitorando a previsão do tempo e fará atualizações pelas nossas redes, caso necessário”.

Aqui deixa explícita promessa de uma conduta totalmente diferente da que foi aplicado na semana anterior, visando um entrega adequada para os participantes dos três shows agendados em São Paulo.  A implementação de medidas corretivas era a exigência mínima, e manter uma fonte informativa atualizada foi uma abordagem vital.

“Como já dissemos, nosso objetivo é sempre o de entregar a melhor experiência para o público que recebemos. Este é o nosso compromisso. T4F, 23/11/2023”.

Um desfecho redundante, que busca reconquistar a confiança das pessoas na organização, porém, frente a tantos autoelogios, é inconcebível que a empresa que se propõe a explorar o mercado como especialista nesse tipo de evento tenha tido falhas tão graves como as que teve. Um comprometimento oco.

E, assim, temos mais um exemplo de como não abordar uma crise que, na maioria das vezes, é representada por declarações infelizes, sem empatia genuína, acompanhadas de atitudes vergonhosas como a do caso acima citado.

A cultura da segurança em eventos, e como em todas as outras áreas, deve ser o da prevenção, mas em determinadas ocorrências, a gestão reativa pode significar uma retomada genuína de um bom relacionamento ou de um total cancelamento.

Vale ressaltar que o caso Taylor Swift no Rio poderia ter sido tratado de outra forma, desde o início. A maioria das variáveis de segurança podem ser combatidas, já que os cenários são expostos antecipadamente e, portanto, são evitáveis e dão sinais prévios ou pelo menos históricos. O que nos remete a uma reflexão: se, então, é possível prever, é possível, também, prevenir e se preparar adequadamente. O que não foi feito com responsabilidade pela T4F.

Na era imagética, torna-se irrisório um comunicado tardio redigido – de forma automática – pela assessoria de imprensa; anseia-se por uma aparição pública, um pronunciamento sincero e a exibição de compaixão e consternação pelos porta-vozes da empresa e evento. E isso foi feito, provavelmente, só em resposta à grande repercussão midiática, mas esta é uma outra análise, pois seguiu a mesma linha não edificante, com requintes de maior amadorismo e insensibilidade.

Que a morte da jovem fã não seja esquecida e que outras tantas possam ser evitadas, sem negligências, soberba ou descasos.

RIP Ana Clara Benevides.

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P. S.: Estive no show do dia 17 de novembro de 2023, no Rio de Janeiro, sendo testemunha ocular desse triste e previsível cenário e na hora foquei em assegurar a integridade física da minha filha e colega. A situação era caótica.

Andrea Nakane é bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Relações Públicas. Possui especialização em Marketing (ESPM-Rio), em Educação do Ensino Superior (Universidade Anhembi-Morumbi), em Administração e Organização de Eventos (Senac-SP), e Planejamento, Implementação e Gestão da Educação a Distância (UFF). É mestre Hospitalidade pela Universidade Anhembi-Morumbi e doutora em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo, com tese focada no ambiente dos eventos de entretenimento ao vivo, construção e gestão de marcas. Registro profissional 3260 / Conrerp2 – São Paulo e Paraná.