Vá Sina! Por Renata Quiroga.

Sina é um destino inevitável, uma espécie de sorte à qual estamos todos sujeitos.

A divisão entre os tempos, marcada pelos ponteiros do relógio gregoriano, sugere mudanças entre o último dia do mês de dezembro e o tão esperado primeiro de janeiro.

Em tempos de pandemia, os eventos têm um jeito bem original de realização, nem sempre cumprindo as promessas de tempos mais calmos. 2020 passou o bastão para 2021 do caos vivido pela Covid-19, e a novela do vírus, fatiada por capítulos, entrega agora o episódio da vacinação.

Entre tantas indeterminações que caracterizam o contexto pandêmico, a vacina caiu no uso de discussões e debates. Contrariando a história científica, sua eficácia tornou-se, para algumas pessoas, até objeto de crença. A vacina que liberta da contaminação não é uma escolha, ela afasta a contaminação viral e arrasta a sina da falta de opção de viver ou morrer pela irresponsabilidade alheia. A vacinação integra tantas outras polêmicas que circulam na cena política da Covid-19, outras medidas protetivas também são pautas que compõem a polarização das atuais narrativas.

A despeito de teorias adversas sobre as formas de contenção do novo Corona vírus, o distanciamento, a higiene frequente das mãos e o uso das máscaras ingressaram no protocolo exigido pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Contudo, o critério da higiene das mãos não tem como ser verificado por fugir à possibilidade de observação de hábitos tão pessoais.

O distanciamento, item tão desrespeitado e desmoralizado pelas pessoas, foi atropelado pelas grandes aglomerações. Aliás, a grande aglomeração difere dos encontros com pequenos grupos somente nas proporcionalidades numéricas nas quais estão expostos seus participantes. Reuniões promovem, independente do número de integrantes, exposição e consequente contaminação. Conceitualmente, o desrespeito ao isolamento está garantido em qualquer tipo de flexibilização desnecessária e sem justificativa real.

Já as máscaras merecem um destaque especial na abordagem do seu uso durante a pandemia. Acessório usado por diferentes expressões culturais e folclóricas, as máscaras são carregadas de símbolos, como as antropomórficas que retinham traços humanos.

As atividades ritualizadas dos povos primitivos associavam os mascarados a alguma forma de autoridade. A criação de uma espécie de espelhamento entre ambos formava uma relação de forte identidade com deuses considerados supremos, o que lhes garantia importante papel social.

O teatro grego se mascarou, tanto de tragédia quanto de comédia, para valorizar as características mais marcantes de seus intérpretes. Os chineses, em outros tempos, usavam máscaras para afastar os maus espíritos.

No contexto da pandemia do novo Corona vírus, articulam-se sinais em torno das máscaras de outros tempos com as diversas modalidades usadas na atualidade. A identidade entre líder e massa estampada nas faces e nos shields, remete à antropomorfia imbricada na construção do papel social, a partir da relação de imagem e liderança.

No palco pandêmico, as máscaras se dividem, tal qual o teatro grego, entre os estilos da dramaturgia encenada pela Covid-19. Os números trágicos das contaminações exibem o desrespeito ao seu uso. A comédia de morte é protagonizada pela personagem do Máscara, que ensina ao seu público truques com misturas tóxicas, brinquedos mortais e flores ácidas. Cenas de um teatro absurdo que produzem discursos destoantes de ações, falas fora das bocas e banalização do mal.

Em meio ao ato teatral o tom fictício assume o protagonismo dos debates que constroem teorias imagéticas. Sem base real, tais hipóteses se organizam em justificativas que contrapõem os controles protetivos do vírus. Referem-se a fantasiosos e coadjuvantes possíveis efeitos colaterais ou até mesmo à ineficácia de seu uso. Tais polêmicas permitem que a proteção seja posta em julgamento e dividem o time entre ‘os com máscara’ e ‘os sem máscara’, escalados para um jogo no qual todos irão perder.

A grande maioria dos atletas do esporte das ruas cheias, se utiliza da precariedade intelectual de tais teorias para dar lugar seguro para suas lutas de força entre realidade X prazer. Todo esse esforço criacionista trabalha a favor do prazer sempre triunfar sobre a realidade, com o aval moral da boa conduta.

Desde o uso primitivo ou tradicional até o contemporâneo, quer seja para adornar ou proteger, o papel da máscara prioriza o ato de revelar ao invés de ocultar. Ao longo do tempo entre distintos grupos de pessoas, as diferenças e subjetivações podiam ser fraturas, que se bem encobertas pelo engessamento das relações, conseguiam imobilizar o movimento de cisão entre a fratria.

A pandemia do novo Corona vírus, além de todo seu aparato letal, tornou as fraturas individuais expostas, perfurando a carne do coletivo. Sem o entendimento que o ser humano se move pela força de um tear, as atitudes destruidoras das medidas protetivas estão na base estrutural do esvaziamento do sujeito na cena atual.

Toda forma de desconhecimento da alteridade, incapacidade de adiamento do prazer, destruição do saber e construção social da agressividade do vírus pelo vírus da agressividade, arrancou a antiga máscara da face dos velhos bons.

Em um metabolismo dialético entre os pólos, Colombinas choram por Pierrots perdidos em cloroquinas. Entre risos patológicos soltos em festas dionisíacas, mais de mil palhaços nos salões, não entendem que apesar de suas ilusões de auto heroísmo, sempre serão só mais um desmascarado no meio da aglomeração.

Enquanto isso, na Commedia dell’arte da vida o que é, na verdade, um Arlequim?

Ele emoldura fantasias, ele quer ser o que querem que ele seja. Só que os alegres Arlequins de outros tempos, os que tinham a função de divertir uma corte cheia de amigos, hoje choram pelo sentimento de não pertencimento e pela separação do pós-máscara. Choram pelos mortos que sumiram e pelos vivos mortos que desvelaram suas personas e não riem mais da sua graça, simplesmente por esta não rimar com desgraça.

Renata Quiroga é psicanalista, coordenadora de Serviço Social, Psicologia, Psicanálise e Psicopedagogia – PSFP.