Klara Castanho, a fofoca e a misoginia. Por Raquel da Cruz.

A semana do dia 25/06 foi um balde de água fria para a conquista dos direitos femininos. Em um espaço muito curto de tempo, tivemos juíza perguntando se uma menina de 11 anos de idade podia “aguentar mais um pouquinho” uma gestação fruto de violência sexual, a Suprema Corte dos Estados Unidos revogou o direito ao aborto legal naquele país e a história da atriz Klara Castanho foi amplamente exposta por ditos “colunistas”.

Não quero entrar nos detalhes na história de Klara. Logo, se você não acompanhou o que aconteceu, o que me parece muito difícil já que o caso foi parar até no Fantástico daquela semana, mais informações podem ser facilmente encontradas com uma simples busca na internet.

Minha intenção aqui é explicar como chegamos em um modelo de negócios que usa a vida privada de artistas para lucrar. Além disso, como é inevitável no momento político-social pelo qual passamos, farei algumas considerações sobre a misoginia com a qual convivemos há cerca de 3 mil anos, desde que o patriarcado é patriarcado.

Bom, vamos começar, então, com uma história mais próxima dos nossos dias atuais: o nascimento de Hollywood. Para explicar isso, vou parafrasear a tese da autora Anne Hellen Pettersen, elaborada na Universidade do Texas, em Austin, e intitulada “The Gossip Industry: producing and distributing star images, celebrity gossip, and entertainment news”.

Em seus primórdios, era comum que estúdios de cinema distribuíssem publicações com informações sobre os filmes que produziam. Essas revistas traziam o nome da obra, a quantia investida, quais artistas estavam vinculados ao projeto, enfim, dados técnicos que ajudavam a trazer esclarecimento para o mercado e, de certa forma, facilitar a procura por patrocinadores, anunciantes e investidores.

Conforme a indústria hollywoodiana foi ganhando a atenção do público e a engrenagem capitalista começou a girar, percebeu-se que o escândalo atraía visibilidade para as produções e, assim, o lucro dos estúdios aumentava. No início do século passado era muito chocante para a maior parte das pessoas que os valores transmitidos por um artista em uma tela de cinema fossem completamente diferentes daquele exercidos por eles na “vida real”. Se hoje ainda temos grandes dúvidas sobre a possibilidade de distanciar artistas com posições ideológicas questionáveis de suas obras, naquela época, ator e personagem eram quase a mesma pessoa. Causava uma grande perplexidade descobrir que o galã do romance era um verdadeiro cafajeste fora das telas, mas mais espanto ainda saber que a mocinha era mãe de família e o ganha-pão da casa.

Assim, os estúdios viram uma oportunidade de incrementar o negócio. Para cada escândalo propagado em Hollywood, mais curiosidade o público tinha em saber não só do que se estava falando, mas também de ver a produção que resultou em tal acontecimento. Daí, não apenas a vida dos atores e atrizes começou a ser bisbilhotada em seus mínimos detalhes, como criou-se uma cultura de aumentar um ponto aqui, colocar uma vírgula mais para lá… Isso quando a história não era completamente inventada do zero. Até que a indústria ficou mais robusta, os conglomerados de mídia se fortaleceram e verdadeiros departamentos de notícias inverídicas começaram a ser instalados.

As corporações de mídia, além de serem donas das produtoras e distribuidoras de filmes e editoras de revistas especializadas em cultura e entretenimento, também participavam de agências de PR de celebridades. Isto é, controlavam a carreira e a reputação de seus talentos. Assim, a indústria – e a cultura – da fofoca se consolidou. A partir daí, para que um artista fosse reconhecido por sua competência artística, ele precisaria expor sua vida privada pessoalmente.

É claro que a idealização de indivíduos com grande talento em certas áreas não é exclusiva do meio artístico. Edgar Morin já falava sobre os Olimpianos e a nossa necessidade de alcançar padrões irrealistas. Contudo, o que a indústria da fofoca criou foi uma excessiva e desnecessária exploração de assuntos irrelevantes, violando a privacidade alheia. Aliás, foi assim que começamos a por em xeque a habilidade artística de algumas estrelas, com a banalização de seu trabalho pela exposição de sua vida privada.

O trabalho jornalístico também perde muito com atitudes desse tipo. Fake news não são um fenômeno criado pela internet; elas sempre existiram. Contudo, com a entrada da publicidade no ambiente online a situação saiu do controle. Se qualquer um pode dizer o que quiser, é remunerado pela quantidade de cliques que uma publicação recebe e quanto mais surreal é a história mais ela é vista, como podemos acreditar naquilo em que lemos? A linha entre o verdadeiro e o falso ficou muito tênue, contraditoriamente, colocando mais peso à apuração jornalística.

É preciso saber também até que ponto devemos ir. Em certos aspectos é saudável manter uma admiração por essas pessoas que, de alguma forma, nos inspiram a conquistar nossos interesses. Ainda assim, é fundamental que entendamos que todo indivíduo tem direito à privacidade e que a verdade tem um preço. Qual a necessidade em divulgar a vida sexual alheia? Em nome da verdade? Bem, se for para trazer à tona denúncias, eliminar tabus, trazer esclarecimento em geral, a ação é benéfica. Entretanto, há um jeito certo de se fazer isso: com planejamento, pensando nos detalhes, respeitando os limites da própria celebridade.

O que vimos no caso de Klara foi uma apropriação de uma meia-verdade, de uma história mal contada para a conquista de uma disputa eleitoral que se aproxima. A principal veiculadora desta notícia é pré-candidata a sei-lá-o-quê por um partido “conservador”. Assim, fica claro que a intenção era usar a narrativa para inflar o ódio, para chamar a atenção, para conseguir os tais cliques e então, transformar esta virtualidade em votos.

Aqui estamos entrando em um campo muito mais delicado ainda, o do projeto de nação que queremos. O que temos visto recentemente é um esforço para confundir crença religiosa com política pública pois, desse jeito, é mais fácil dominar o povo. É mais fácil fazer o coletivo mudar de ideia quando o individual acredita que se não seguir as regras sofrerá por toda a eternidade, que há uma força maior e mais poderosa que ele para puni-lo. Além disso, todo esse medo permite que o poder se mantenha na mão de uns muito poucos.

Este já é o meu quinto texto nesta coluna e em quase todos eles eu falei sobre a luta feminina por direitos iguais. A história da Klara não é sobre a proteção “das nossas crianças”, muito menos a da menina de 11 anos, muito menos é sobre o “direito à vida” nos EUA. Isso tudo é sobre humilhar, ridicularizar, envergonhar publicamente pessoas que se sentem oprimidas pelo padrão inalcançável imposto pela elite dos homens.

Como foi muito dito nas redes sociais, se a mulher faz um aborto ela é assassina, se ela dá para adoção é cruel, desnaturada. Em países em que o aborto é completamente ilegal, sem exceções, as mulheres são responsabilizadas por questões fisiológicas as quais não têm controle e ficam encarceradas por, por exemplo, gravidezes ectópicas, aquela em que o embrião se instala na tuba uterina ao invés do útero – de alto risco para a vida da gestante, pois há uma grande chance de aborto espontâneo e isto não tem absolutamente nada a ver com a capacidade, ou a competência, ou a vontade de uma mulher gerar uma vida. Além disso, quem mais sofre com este tipo de tabu sempre são as mais pobres, as mais vulneráveis, as que não podem pagar pelo sigilo.

As que têm condições de se esconder precisam enfrentar o prazer que é para uns difamá-las. Sim, porque se uma celebridade é a representante de um padrão inalcançável de perfeição, então quando ela se mostra humana, aproveitadores vêem a oportunidade ideal para usurpar. O ponto todo desta coluna é fazer pensar sobre as questões maiores que envolvem os casos de celebridades. Desta vez, fica a reflexão para a próxima notícia sensacionalista sobre elas na qual você decidir clicar: será que vale mesmo ter essa curiosidade toda?

Imagem: Pexels / Noelle Otto.

Raquel da Cruz é mestranda do PPGCOM / Unesp e bacharela em Comunicação Social – Relações Públicas pela UEL. Concluiu sua especialização pelo GESTCORP da ECA-USP. Tem interesse em assuntos que envolvem relações públicas, celebridades, fãs e letramento transmídia.