Antes da lâmpada queimar. Por Renata Quiroga.

Ovis é um gênero animal pertencente a uma família de ruminantes que inclui os Carneiros, as Ovelhas e os Cordeiros. Qualidade de vida é um conceito multidimensional e atravessado por diversas perspetivas. A Organização Mundial de Saúde (OMS) amplia o entendimento de saúde para fora de um corpo meramente sem doenças, e estende o conceito para a totalidade de bem-estar entre os domínios físico e mental.

O cenário de 2020 é um filme de guerra com suas habituais cenas sanguinolentas. Vivemos, desde a chegada do vírus da Covid-19 momentos plurais que trouxeram cenas de medo, incerteza, tristeza e tantas outras emoções que ficam nos rastros da pandemia. O sofrimento psíquico é inevitável, deixando enorme parte da população mundial atingida pela contaminação da dor.

Muitos fatores, dentro e fora do contexto da pandemia, assumem a autoria do horror que causou aumento bastante significativo dos sintomas de ansiedade, depressão e estresse. A pandemia, por ser multifacetada, expõe pessoas aos diversos agentes formadores de angústia: solidão, medo de contaminação, tensão econômica, a guerra entra a política do deixar morrer e a luta pela vida.

Pandemia, crise política, anomia social. Ingredientes que favorecem a formação de sintomas que alteram a qualidade e a quantidade de horas de sono. A despeito das diferentes conceituações sobre o que monta uma vida com qualidade, há uma concordância sobre a importância fisiológica do sono. As alterações do sono podem levar o iníquo à obesidade, diabetes, hipertensão e a própria insônia.

Os efeitos produzidos pela ansiedade elevada aparecem nas mudanças de padrões do funcionamento fisiológico como alimentação, sono e libido. Para resolver esse problema muitas pessoas recorrem ao uso abusivo de psicofármacos, drogas, álcool, entre outros sedativos do sistema nervoso central.

Há uma espécie de acometimento particular que se dirige à saúde mental do trabalhador em tempos de pandemia. As estatísticas fornecidas pela Fundação Oswaldo Cruz (Friocruz), em outubro de 2020, mostram números de quase 50% de colaboradores em serviços essenciais afetados por sintomas de ansiedade e depressão. O sono é um elemento imprescindível para saúde, principalmente daqueles que deixam horas excessivas de seu dia em atividades laborais.

O mundo do trabalho contemporâneo já entrega impactos relevantes na saúde mental dos trabalhadores. Este grupo se espreme pelas ações da globalização e suas inovações tecnológicas que interferem em toda forma de organização da coletividade.

Na verdade, a pandemia veio arrastar para as ruas os velhos ratos dos porões que roem o tecido trabalhista, desde sempre entregue à precariedade. Os ossos fraturados das relações contemporâneas de trabalho aparecem, no contexto pandêmico, com suas fraturas expostas à nova realidade.

A flexibilização e a precarização social incidem, de forma acentuada, nas renegociações de trabalho do mundo afetado pelo Novo Coronavírus. O que era ruim ficou péssimo.

A precarização se caracteriza por ritmos intensos em decorrência da aceleração de competitividade. Os vínculos trabalhistas, em tempos de pandemia, tornam-se ainda mais vulneráveis diante de desemprego, falência, acordos temporários de trabalho e interrupções injustificadas nos planos de carreira.

Todo esse contexto faz com que os trabalhadores vivenciem o estado de flexibilização e a consequente insegurança em constante tensão. Esses fatores ligam-se a explicações sobre o aumento considerável do adoecimento psíquico, ilustrado pela chamada síndrome de burnout.

Através das lentes sociais a qualidade de vida admite uma categoria difusa e subjetiva nas quais outros critérios também constituem o bem-estar do indivíduo. Tal concepção compreende a liberdade para fazer escolhas, garantia da gratificação das necessidades básicas e inclusão nos meios sociais como base do conceito de qualidade de vida.

Entender a falta de sono como um sintoma social pode ser uma forma distorcida ou medicalizante de processos que estão intimamente atravessados pela cultura. Contudo, o tripé ‘insônia – dormir bem – dormir em paz’ organiza a articulação sujeito, sociedade e desejo para além do aspecto organicista de regulação de atividades vitais. Tal organização convoca à reflexão sobre a alocação do desejo de vigília como cobertor de experiências e atravessamentos do sujeito por seu caldo cultural.

A lenda de contar carneirinhos para que a criança durma com facilidade gira em torno de duas versões diferentes. Uma narrativa origina-se de um conto árabe do século XII, no qual um rei teria contratado um contador de histórias para fazê-lo adormecer. O contador convocava o rei a uma contagem de duas mil ovelhas a cada noite. Outra versão, fala que eram pastores que contavam suas ovelhas, frequentemente, por receio de perder alguma solta no pasto.

As duas explicações têm por objetivo distrair o contador de carneirinhos em uma atividade monótona para fazê-lo dormir. A semelhança deste grupo de animais com as relações sociais aponta nomes repetidos e apresenta algumas sutis coincidências, que remetem o sono para o lugar da alienação.

As débeis condições das relações trabalhistas levam a saúde do trabalhador à falência. O trabalhador adoecido e ansioso utiliza sedativos em busca de sono. O ciclo torna-se um vício pela falta de agentes promotores de mudanças sociais, que melhorem a tão desejada qualidade de vida no país.

No reino animal, a família dos Ovis segue sua rotina de qualidade de vida no pasto: o milagre da multiplicação de Ovelhas é contabilizado pelo pastor, abençoado pelo líder Carneiro e ensinado aos seus filhos Cordeiros.

Segundo a lenda, a monotonia chata faz dormir até quem dorme bem. Seja qual for a qualidade do repouso, entorpecimento ou sono de rei, enquanto todos dormem o palácio é saqueado.

Renata Quiroga é psicanalista, coordenadora de Serviço Social, Psicologia, Psicanálise e Psicopedagogia – PSFP.