Aonde você vai com tanta pressa? Por Mariana Cepeda de Mendonça.

Recentemente, fiquei doente, mas não era Covid-19. Felizmente. Contudo, infelizmente, pensei: ‘Se era para ficar doente, que fosse logo por causa desse maldito coronavírus’. Sim, por um segundo desejei ter contraído um vírus que já matou quase um milhão de pessoas no mundo – provavelmente mais, já que há tantos casos de subnotificação ao redor do globo. Um vírus que, ainda que não me matasse, poderia me deixar com sequelas permanentes. Que ainda que não me matasse, poderia matar pessoas ao meu redor por minha culpa. Tudo isso simplesmente porque estou desesperada para me ver livre disto.

Disto o quê? Do distanciamento social, do cancelamento de viagens, das medidas de proteção cansativas! Ansiosa que sou, acho que queria me ver livre da espera. E da incapacidade de não ter qualquer controle sobre a situação. Mas, acima de tudo, o que faz com que me sinta disposta a arriscar a própria vida, mesmo que por um instante, é a sensação generalizada de que a vida está valendo muito pouco por estar ‘parada’. E a vida não pode parar, não é mesmo? Nem o mundo.

Alguns meses após o início da pandemia de Covid-19, o ex-namorado de uma amiga – que, então, ainda era namorado – disse que a vida dele ‘não andava para trás’. Essa foi sua resposta para uma escolha que precisava fazer: ou parava de ir a festas, de cumprimentar amigos com beijos e abraços e de fazer pouco caso do uso de máscaras, ou precisaria suportar um namoro a distância. Minha amiga mora com os pais, ambos parte do grupo de risco, e não queria se encontrar com o namorado caso ele não fosse mais cuidadoso.

Ele não queria escolher. Não viver intensamente alguns meses dos seus 27 anos de vida não parecia justo. Abrir mão das aglomerações ou, então, da presença física da namorada era ‘andar para trás’. No fim, ele acabou por retroceder algumas casas no ‘Jogo da Vida’ (lembra-se deste jogo, cujo único objetivo era enriquecer, mesmo que fosse preciso vender os próprios filhos?), já que ficou sem a namorada.

O coronavírus não quer saber da nossa pressa, nem dos nossos péssimos truques para nos vermos livres dele. Entre esses macetes está a brilhante ideia de pegarmos logo a doença para ficarmos imunes, o que, no plano coletivo, ficou conhecido como ‘imunidade de rebanho’, uma estratégia que se revelou problemática na Suécia e que não é recomendada pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Para completar, os defensores da imunidade de rebanho, bem como os indivíduos que se consideraram felizardos por já terem tido Covid-19, recentemente tiveram uma surpresa: a reinfecção é possível, ainda que rara.

Mas o mundo não pode parar, não é mesmo? Ainda mais no nosso sistema atual. Um sistema em que um trabalhador morre em um supermercado e tem seu corpo coberto para que o estabelecimento continue funcionando ‘normalmente’; em que uma empresa bilionária negligencia medidas de proteção para seus funcionários enquanto registra o maior lucro da sua história; em que empregados são obrigados a usar o transporte público no meio de uma pandemia porque seus empregadores ameaçaram demiti-los. Este parágrafo seria enorme se eu decidisse citar todos os exemplos cruéis da irrefreabilidade da nossa sociedade.

Essa mentalidade também me contagiou. Durante os vários dias em que estive doente, na cama ou deitada no sofá, eu só pensava em como não estava sendo produtiva, em quanto dinheiro estava deixando de ganhar e no quão inútil eu me sentia. Meu corpo pedia repouso por poucos dias, e minha mente não suportava esse pedido esdrúxulo. E por que suportaria? Com tantos influenciadores, coaches e livros de autoajuda pregando o sucesso agora, com tantos anúncios prometendo o enriquecimento instantâneo, com tantos textos na internet nos fazendo sentir culpados por todos os projetos que ainda não conseguimos tirar do papel, com tantos programas de exercícios físicos extremamente intensos e que oferecem resultados em duas semanas, como podemos suportar alguns dias de descanso forçado?

Vamos falar dos exercícios. Experimentei vários programas de alta intensidade durante a quarentena. Desses que fazem você achar que pegou Covid-19, pois fica sem ar depois de dois minutos de saltos, agachamentos e abdominais. Resultado: ótimos resultados estéticos e um joelho lesionado. Quilos perdidos e a percepção de que meu corpo não estava preparado para entrar de cabeça em um programa intenso de exercícios quase diários. No mesmo mês em que fiquei doente, fui obrigada a passar do treinamento pesado e dos resultados rápidos para um longo processo de fisioterapia.

No mês anterior, eu tinha trabalhado muito, malhado muito, comprado vários suplementos alimentares e colocado em prática, de forma um tanto caótica, diversas dicas que encontrei em livros sobre hábitos e produtividade. Certamente fiz muita coisa, muito rapidamente. Mas sem saber muito bem como, em que direção e com qual objetivo. Não é exatamente isso que, há muito tempo, quase todos nós temos feito? Será que chegamos aonde realmente escolheríamos estar se não estivéssemos sempre correndo tanto?

Em ‘A morte de Ivan Ilitch’, Liev Tolstói narra a vida de um homem que, o leitor já sabe pelo título, vai morrer no fim da novela. Como nós também sabemos, mas tentamos esquecer, que morreremos no fim da nossa história. Infeliz, somente no leito de morte Ivan Illich percebe que não viveu a vida como deveria. Antes de morrer, ele lamenta: ”Quanto mais longe da infância, quanto mais perto do presente, tanto mais insignificantes e duvidosas eram as alegrias. (…) E aquele trabalho morto, e as preocupações de pecúnia, e assim um ano, dois, dez, vinte – sempre o mesmo. E quanto mais avançava a existência, mais morto era tudo. ‘Como se eu caminhasse pausadamente, descendo a montanha, e imaginasse que a estava subindo. Foi assim mesmo. Segundo a opinião pública, eu subia a montanha, e na mesma medida a vida saía de mim… E agora, pronto, morre!’.”. Deixo aqui esta questão: como indivíduos, mas também como sociedade, estamos caminhando para o topo da montanha, ou correndo montanha abaixo?

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Mariana Cepeda Mendonça é mineira, feminista e fascinada pela arte da narrativa. Jornalista formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes pela Universidade do Porto, atualmente trabalha como redatora e tradutora.