A pandemia eleva as preocupações com o 'sharenting'. Por Mariana de Moraes Palmeira.

A Covid-19 nos levou para dentro de casa, onde em tese as preocupações com o bem-estar das crianças e adolescentes deveriam ser menores, certo? Infelizmente, nem sempre. Além dos terríveis relatos que começam a aparecer sobre a elevação nos índices de maus tratos e abusos de vulneráveis[1], existem também os riscos relacionados à exposição aumentada à internet.

Neste momento de pandemia quando as crianças estão imersas numa nova rotina, este cenário mudou, e mudou para pior. Para aquelas seguindo o calendário letivo à distância, e mesmo para as que estão sem atividades escolares, o tempo que passam conectadas aumentou significativamente.

Por um lado, a conexão com a escola, com família e amigos, e as opções de lazer on-line ajudam a diminuir os efeitos do distanciamento social. Por outro lado, é preciso redobrar a atenção com a atividade das crianças e adolescentes no ambiente digital. Porém, não é só o comportamento deles que os colocam em perigo. O sharenting é um fator que contribui para a exposição e, por consequência, para o aumento do risco dos menores na internet.

O sharenting ou sharenthood, uma palavra que nasceu da combinação de sharing[2] com parenting[3], acontece sempre que pais ou responsáveis pelo bem-estar de uma criança ou adolescente exibem eventos privados em ambiente digital. Todas aquelas fotos, vídeos e relatos que compartilhamos de nossos filhos em redes sociais e aplicativos de mensagens. É irresistível, eu bem sei.

Porém, existem algumas questões que talvez estejam nos passando despercebidas, pois nós adultos e pais também estamos, em grande, parte seduzidos por este mundo de exposição 24 X 7. São questões jurídicas, sociais e pessoais, que agora estão mais evidentes, uma vez que estamos todos mais conectados.

De início é preciso ter em mente que aquilo que postamos pode ter impacto na vida pessoal e profissional dos nossos filhos, futuros adultos. Nada na internet é 100% seguro e 100% privado, vide as notícias diárias de ataques de hackers, de vazamentos e violações de dados pessoais. Segundo pesquisa do Barclays, banco de investimentos, em 2030 o sharenting será responsável por 2/3 dos casos de fraude por roubo de identidade[4].

Para além dos perigos relacionados a crimes cibernéticos, existe toda uma dimensão social na qual criamos paulatinamente uma pegada digital que transforma a todos em “consumidores de vidro”, expressão criada por Susane Lace, 15 atrás, no livro “The glass consumer: life in a surveillance society”[5]. Mais recentemente, Shoshana Zuboff[6], autora e professora da escola de Administração de Harvard, vem se ocupando deste tema. Seu último livro “The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power” resume anos de pesquisa sobre uma nova ordem econômica que se baseia na exploração dos dados pessoais.

Nossa sociedade, em termos comerciais, é cada vez mais direcionada por dados. Com o compartilhamento das informações de nossos filhos estamos entregando o mapa da mina da vida deles, colocando bandeirinhas em cada passo, abrindo o caminho para que empresas sigam investindo em predições cada vez mais invasivas e certeiras. A partir delas, empresas conseguem intensificar a oferta de produtos e serviços que encontram sem muito esforço seus consumidores perfeitos.

O rastro que deixamos pode remontar a concepção (se usamos medidores de fertilidade), passando pela gravidez (inscrições em aplicativos de desenvolvimento gestacional), pelo parto (crianças nascidas a partir dos anos 2000 têm suas fotos nos bancos de dados das maternidades), e por todo o crescimento, todas as gracinhas, birras, marcos cronológicos e rituais são devidamente documentados e compartilhados, primeiro por nós, pais, e depois por eles próprios.

Na dimensão individual e particular muitas crianças e adolescentes se sentem mal com a exposição promovida à revelia deles, o que nos leva à necessária reflexão sobre os limites da nossa liberdade de expor imagens, vídeos e outras informações particulares, em face do direito deles de decidir acerca do grau de privacidade desejado. O jornal The New York Times, em matéria sobre sharenting, publicou um vídeo[7] com depoimentos de crianças e jovens que oferecem boas indicações sobre o desconforto que eventualmente podemos estar criando, no presente e especialmente no futuro.

Por fim, do ponto-de-vista legal, a baliza é dada pela Constituição Federal, artigo 227, que afirma a prioridade os direitos da criança e do adolescente, ao mesmo tempo em que traz o dever da família, sociedade e do Estado em assegurá-los. Entre tais direitos destaca-se a dignidade, o respeito, a liberdade, além da obrigação de colocá-los a salvo da discriminação, exploração, violência e opressão. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tem como princípio norteador o melhor interesse da criança e do adolescente, e é por ele que podemos começar a repensar o nosso comportamento no ambiente digital, quando nossos filhos estão em foco.

[1] Ver mais em https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/covid-19-criancas-em-risco-aumentado-de-abuso-negligencia-exploracao

[2] compartilhar

[3] parentalidade

[4] https://offspring.lifehacker.com/sharenting-now-may-lead-to-identity-theft-later-1838093590

[5] https://policy.bristoluniversitypress.co.uk/the-glass-consumer

[6] https://shoshanazuboff.com/book/shoshana/

[7] https://www.nytimes.com/2019/08/07/opinion/parents-social-media.html

Mariana de Moraes Palmeira é advogada e professora da PUC-Rio, onde atualmente, entre outras disciplinas, leciona na formação em LGPD do Instituto de Direito da Universidade. É também doutoranda do Departamento de Direito da PUC-Rio, onde desenvolve projeto de pesquisa em privacidade, proteção de dados pessoais e novas tecnologias. Pesquisadora do DROIT (grupo de pesquisa em Direito e Tecnologia). Professora convidada dos cursos do ITS-Rio. Mestre em Administração de Empresas, com mais de 10 anos de atuação em grandes empresas.