ENTENDENDO ESG - Vinho azedo. Por Evelyn Cheida.

Mais um escândalo mostra o papel fundamental da visão sistêmica de stakeholders – da diligência de fornecedores ao consumidor.

Como muitos turistas, em visita a uma das vinícolas autuadas por trabalho análogo à escravidão, sem imaginar o que acontecia na ponta da cadeia de produção. Decepção!

“Mas se você fosse sincera ô-ô-ô-ô, Aurora! Veja só que bom que era”… Nunca pensei que a antiga marchinha de carnaval faria tanto sentido. E que um dia teria motivo para “comemorar” o fato de não gostar de vinho brasileiro. Sempre preferi o sabor dos nossos vizinhos chilenos, argentinos e uruguaios. Porém, se tem uma coisa que não faltava (atenção ao tempo verbal) em minha geladeira há anos, é o delicioso suco de uva integral Aurora. Que pena! 

Minha última compra do mês, foi também a última vez que comprei meu suco favorito. Porque não dá para compactuar com o que aconteceu. Também não dá para acreditar que, turistando por essas vinícolas, tirei fotos, fiz vídeos e, feliz da vida – como sempre ficamos ao viajar – recomendei às minhas seguidoras em meu blog de viagem esse passeio. Como eu poderia imaginar o que acontecia lá na ponta da cadeia de produção? A que inclui os fornecedores que contratam quem colhe as uvas nas parreiras? A monitora que nos guia pela vinícola ainda cita a cooperativa, a comunidade, o que me deixou muito feliz.

Pois é, um turista não imagina, mas fica a lição de que devemos cada vez mais desconfiar e procurar saber, como sociedade e como consumidores, principalmente. Porque quem consome, é quem financia o negócio. Sem cliente, não há empresa. Contextualizando, caso você tenha ido a Marte no último mês: três das maiores e mais famosas vinícolas gaúchas – Aurora, Salton e Garibaldi – foram expostas em um dos cada vez mais constantes e vergonhosos escândalos envolvendo algum, senão todos os pilares ESG. No dia 22 de fevereiro, 208 trabalhadores contratados para a colheita de uva em Bento Gonçalves (RS) foram resgatados em situação análoga à escravidão.

Enganados com a promessa de emprego temporário, salário de R$ 4 mil, alojamento e refeições pagas, eram forçados a trabalhar das 4 às 21 horas e submetidos a choques elétricos. A origem dos trabalhadores, todos da Bahia, era constantemente citada de forma xenófoba pelos encarregados. A comida fornecida pela empresa já chegava estragada. Caso quisessem comprar outros alimentos, só poderiam fazê-lo em um mercadinho perto do alojamento, que praticava preços superfaturados, e as compras eram descontadas do salário. Já chegavam ao Sul endividados por conta do transporte da Bahia. Existem mais horríveis detalhes. Além do choque, eles apanhavam de outras maneiras por seguranças armados, que os mantinham em cárcere.

As três vinícolas, por meio de comunicados, dizem o mesmo e o de praxe, que lamentam o ocorrido e que desconheciam tais práticas das terceirizadas, e é aqui que entramos no ponto-chave do ESG. Os riscos. Se turista não imagina, se consumidor compra no mercado e não tem como saber, não há essa desculpa para a empresa. Não tem como arriscar confiar de olhos fechados em qualquer fornecedor, porque tenha certeza que investidor e banco não estão mais dispostos a arriscar. E veja como eles têm razão. É essa a peça que vai fazer o mundo girar – os donos do dinheiro. No mundo capitalista é assim, é só quando eles entram em jogo que o jogo muda.

Como expliquei no artigo passado, ESG não é sobre os valores morais, sociais e ambientais – que nós sim, como sociedade, cada vez mais nos importamos – e sim sobre o que isso vai causar, o prejuízo, que preocupa investidores e credores.

É fundamental para qualquer negócio ter a visão sistêmica de todas as partes interessadas – os stakeholders – e de tudo que é material ao negócio, tudo que o afeta, de ponta a ponta. Ora, a colheita da uva é primordial a este negócio, é a segunda etapa após o plantio, uma parte do processo que jamais poderia ser ignorado. Terceirizar um serviço primordial requer cuidados.

O que faltou e quais são as consequências?

Partindo do benefício da dúvida, de que as empresas realmente não sabiam da situação, o que as empresas devem fazer para ter o controle da sua cadeia completa de produção?

Faltou diligência, a investigação prévia sobre os fornecedores contratados. Depois, uma auditoria ou ao menos uma simples fiscalização, que já constataria o absurdo que aquelas pessoas estavam vivendo. 

E o que todo esse absurdo vai causar – e já causou?

  • Danos irreparáveis à imagem das empresas;
  • Boicotes da sociedade cada vez mais consciente, além dos movimentos sociais;
  • Grande impacto no turismo da região, altamente impulsionada pelas visitas, excursões e tours às vinícolas;
  • As três vinícolas foram suspensas do mercado internacional pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil);
  • 20 mil famílias produtoras de uva serão prejudicadas, afetando toda economia da região;
  • Uma grande mudança de hábito de consumo já está em curso. A venda do suco de uva produzido pelo Movimento Sem Terra cresceu 200% após a denúncia das vinícolas gaúchas. A marca Monte Vêneto, ganhou publicidade gratuita da Bela Gil. Vale lembrar que o MST é o maior produtor de arroz orgânico do Brasil.

Não bastasse toda a revelação desta tragédia, ainda houve a divulgação de um posicionamento desastroso do CIC-BG, que representa os empresários de Bento Gonçalves. Neste, conseguiram chamar os gaúchos, em outras palavras, claro, de “vagabundos encostados em programas sociais como o Bolsa-Família”, além de “justificar” o trabalho análogo à escravidão. Perderam uma ótima oportunidade de ficarem calados. Na verdade, é ótimo que as máscaras caiam de uma vez! E o poder de escolha venha para a mão do consumidor.

Verdade seja dita, o caso está longe de ser o único. Existem diversos casos no Brasil na indústria alimentícia, têxtil, no agronegócio, a lista é imensa. O Brasil já foi condenado nove vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) por graves violações aos direitos humanos. E pelo jeito, vem muito mais por aí.

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Evelyn Cheida é jornalista com sólida experiência em Relações Públicas. Possui MBA em Gestão Ambiental e está concluindo um MBA em Marketing pela USP. Começou a trabalhar com meio ambiente em 2005 e, desde então, nunca deixou de estudar e ser uma embaixadora da causa. Foi voluntária no terceiro setor, implantando a assessoria de imprensa em uma instituição que recebe e apoia refugiados. Tem vivência internacional, é apaixonada por todos os temas que envolvem ESG e também por viagens – assunto que explora em um blog onde encoraja mulheres a viajarem sozinhas.