Um vagão na Maria-Fumaça. Por Juliana Fernandes Gontijo.

Joselino era um homem simples que morava no pequeno distrito de Ribeiros, interior do centro-oeste de Minas. Filho de Maria e Joaquim, era um ignorante por falta de conhecimento. Ele só andava a pé ou a cavalo. O distrito vizinho, Maribondo, ele desconhecia por completo.

A ignorância daquele morador do Ribeiro era tamanha que a primeira vez que viu uma bicicleta, desceu a ladeira perto de casa correndo tanto e quase caiu dentro de um mata-burro:

– Valha-me, Deus! Tenha piedade desse pobre homem aqui! O diabo está andando em cima duas rodinhas… – Gritava o sujeito desesperado.

Quando ele ouviu também pela primeira vez o apito da Maria-Fumaça, ajoelhou-se, rezando fervorosamente e pedindo a Deus que o diabo não o carregasse.

Com o tempo, Joselino se tornou um personagem pitoresco devido à sua simplicidade. Hoje, um século depois, os moradores do distrito ainda comentam com muita admiração e grandes risadas as histórias vividas por ele.

Os irmãos e tios de Joselino “penaram” bastante para fazê-lo entender que a Maria-Fumaça era apenas um meio de locomoção que andava sobre os trilhos. Por várias vezes, os parentes tentavam fazê-lo viajar de trem, mas ele dizia sempre que não seria carregado pelo demônio:

– A fumaça que ele solta “pelas ventas” tem veneno. Nunca esse diabo vai me carregá pro inferno.

Como tudo na vida tem um porém, Joselino um dia precisou viajar de trem. Não teve escolha. Os poucos caminhões que havia no distrito estavam todos em viagem e o personagem principal desta história precisava ir a Belo Horizonte a fim fazer um exame de vista. Eram aproximadamente oito horas de viagem de trem naquele tempo.

Seus tataranetos contam que ele perdeu o sono por três noites seguidas antes do dia de entrar no trem. O pouco que dormia, sonhava que a Maria-Fumaça entrava em um enorme caldeirão sempre cheio de fogo. Outras vezes, era a fumaça do trem que o intoxicava e ele morria atropelado pela locomotiva que estava boiando como uma barcaça no Ribeirão dos Coelhos.

E chegou o dia da viagem. O pai e os irmãos avisaram que não poderiam acompanhá-lo até a capital. Ele tentou de tudo para levar alguém de companhia, mas só recebia negativas. O jeito era seguir viagem sozinho. Infelizmente, naquele dia, não havia uma alma viva do Ribeiro, nem de Maribondo, que ele conhecesse dentro do trem.

A locomotiva chegou à estação da cidade. Ele abraçou firme o pai como se estivesse na hora derradeira.

– Fio, não preocupa, não! Amanhã cê tá de volta. Vai cum Deus, Joselino. – Gritou seu pai quando ele entrou na Maria-Fumaça.

A composição já estava lotada! Eram cinco vagões. O homem estava assustado com o chacoalhar nos trilhos. Ele queria se sentar e só encontrou um lugar. Bem diferente dos outros vagões, esse era um vagão pequeno e bem espaçoso, mas com apenas um banco de madeira redondo no canto.

– Arre égua! Pur que o povo num vem pra cá, sentá aqui? Dá até pra sentá nu chão e durmi… Se ninguém qué batê-papo…

Para tentar dormir com mais facilidade, tirou o paletó e cobriu o rosto. Ele sabia que a viagem era longa e o medo do chacoalhar só aumentava.

Com o passar das horas, acordava com um passageiro na porta do vagão com a cara não muito boa, mas ao ver Joselino sentado, voltava de onde havia saído.

Vez por outra, o viajante sentia um cheiro estranho. No entanto, ele não se incomodava, porque já era acostumado ao cheiro de curral. Então, estava tudo bem.

No outro dia, na volta para o Ribeiro, o trem estava mais vazio e ele conseguiu ir sentado numa poltrona no primeiro vagão praticamente atrás do maquinista.

– Eita troço bão, só! Banco com mufada. Até parece o sofá de casa. E o vagão cheira a folha de laranjera… Esse é bem mió de bão pra durmi.  – Pensou. A volta para Joselino foi menos dolorosa. Ele começou a entender que a Maria-Fumaça era boa pra viajar de vez em quando. Mas só de vez em quando.

Quando chegou ao Ribeiro, seu pai já estava na estação:

– Ei, meu fío! A viage foi boa? Viu só: o diabo num te carrrgô não. Só ocê memo pra pensá coisa dessa dum trem bão desse…

– Ô meu pai, a ida foi boa não. Eu tava com muito sono e num achava lugá pra sentá. Andei os vagão tudo! Até que no fim do trem, achei um vagãozin pequeno com um banco redondo com buraco e uma tampa. Sentei ali memo… Deu até pra tirá um cochilo… Esse vagãozin era mei fedorento, parecia o curral de casa. Acho que fedia à foça… Eu contei 38 pessoas que foi lá com a cara ruim e ia embora quando via eu sentado lá…

Joaquim sacudiu o filho ainda na estação.

– Na credito que ocê foi sentado na privada a viage intera! Agora ocê intendeu a catinga do fedô do banco de madera? Nem parace que cê é fío de Joaquim José, o homi mais inteligente do Ribeiro… Arre égua! – E deu um safanão no pé da orelha de Joselino.

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.