TERRA À VISTA - Paz, tolerância e a verdadeira cordialidade dos brasileiros. Por Ana Paula Arendt.

‘Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem’.
Nelson Rodrigues, dramaturgo brasileiro (1912-1980), da blogosfera.

‘What men want is not knowledge but certainty’.
Bertrand Russell, filósofo britânico (1872-1970), em ‘Nightmares of eminent persons and other stories’.

Estaria sob suspeita, alguém que ama o Brasil, ao falar dessas virtudes que encontramos em solo nacional: paz, tolerância, cordialidade. Amor e devoção. Muito mais sucesso fazem os acadêmicos franceses, identificados com a tradição de pensamento da esquerda política moderna, ao falar de nossa tristeza nos trópicos e da melancolia que em nós projetam; ou os acadêmicos americanos, também identificados com uma escola de hegemonia, quando deduzem a nossa falsidade e violência pelos números. Não captaram os prestigiados, contudo, que um espírito coletivo e uma mentalidade não surgem das estatísticas, nem das análises; persistem a despeito delas. Tantas vezes o pessimismo brasileiro bem nos serve para pescar elogios… O brasileiro é um ser muito esperto, mas também existem os que são apenas sinceros! E ser sincero se torna possível de diversas maneiras, sobretudo por meio de piadas, memes e de tantos outros recursos que a modernidade oferece, da qual os brasileiros muitas vezes se lambuzam. Retrai-se, de todo modo, o brasileiro diante do chamado a exaltar as próprias virtudes e de defender sonhos de grandeza. Sendo cidadã, e não intelectual, é que consigo abordar isto: eu constato o que vejo em um igual a mim, sem subir a um pódio para me colocar acima do interlocutor, e dizer como ele é.

Finalmente, leitor: o nosso relacionamento. Quem fala não é uma pessoa simbolizada pela função de escrever que arroga, mas uma interlocutora verdadeiramente sua. Pois não tenho obrigação de lhe escrever.

Escrevo então sobre o que li e me abisma, o que consta escrito nos jornais. O Brasil se tornou ‘odioso’? Ou se tornou odiado? Fato é que as pessoas que odeiam o Brasil que temos hoje o dizem odioso.

É uma conclusão que, aliás, não parece estar em busca de um interlocutor, mas de um público. E o pensamento político que não busca interlocutores talvez tenha dificuldade em estabelecer o diálogo que supostamente almeja.

Não sei se o Brasil de hoje é odioso; talvez tão bagunçado quanto antes? E desde quando para nós a bagunça que decorre do diálogo é algo incompreensível, ou indesejável? Somos brasileiros. Não somos chineses. Nossa filosofia é inexistente. Diante do desconhecido avançamos, retrocedemos, avançamos.

Para muitas pessoas não é familiar ouvir o tom de um capitão que se dirige a um soldado, ensejando a ele coragem diante do perigo iminente, demonstrando uma postura de desfaçatez. Mas não chega a ser de todo incompreensível, para quem fez colégio militar ou tem algum tipo de contato com a cultura desse meio, sempre muito rigorosa, que pautou, aliás, uma escolha eleitoral favorável no pleito mais recente.

Gráfico 1 – Ilustração do poema ‘Um estudo sobre a demagogia’.

Neste momento em que escrevo, parece no entanto cedo demais para avaliar, ainda, se a reação do Governo foi ou não suficiente, para odiá-lo, porque a crise sanitária proporcionada por um novo patógeno ainda se desenrola. O gráfico na imagem deste texto, fornecido por um amigo na Presidência, parece sugerir que o nosso pânico e estresse inicial foi bem retribuído até 15 de abril deste ano fatídico de 2020, com um melhor resultado que outros países. Talvez posteriormente se verifique uma boa conduta no geral, pelo resultado e empenho; talvez o efeito de uma pequena falha se torne maior, com a dimensão com que se propaga o problema. Talvez tenhamos de enfrentar a nossa realidade de falta de espaço para a população mais carente se isolar, mas com sorte antes haverá vacina e muita providência, pois também existe no Brasil a solidariedade. De modo que, sendo prematuro o momento, não me parece que a assertiva de que o Brasil teria se tornado um país ‘odioso’ esteja fundamentada apenas numa reação à resposta recente, multivariada e poliforme, ainda inacabada, do Governo brasileiro em seu conjunto, a um desafio comum a todos os países.

De um modo geral, então, ao que esse pensamento negativo sobre o Brasil se oporia? Nada mais indesejável a um brasileiro que se habituar ao mesmo hábito, ou às ideias fixas pré-determinadas. As novelas podem ter sempre o mesmo enredo e exatamente o mesmo final: desgraça dos moralmente falhos, dos que perseguiram os ingênuos; e o casamento da noiva vestida de branco, a reunião em família. Contudo variem-se o tema, os cenários e os atores, não é mesmo? Mas intelectuais partidários de uma esquerda militante exigem sempre o mesmo discurso; e não querem mudar nem sequer os atores. Aí não há brasileiro que aguente assistir o telejornal. Porque a vida é, também, entreter-se com a vida. Questionar e compreender, para dela extrair ânimo, a fim de viver e perseverar. Do mesmo, sempre o mesmo, nós já temos o arroz com feijão. E mesmo assim, domingo: macarrão e frango assado. Uma farofa, pelo menos! Nem isso. Pois à mudança, então, é que esse tipo de pensamento negativo se opõe?

Argumentam os intelectuais orgânicos o regresso. O Brasil de hoje seria odioso pelo súbito regresso. Teria havido ganhos nos anos recentes, avanços sociais de distribuição de renda; mas algum deles foi revertido? Nenhum deles foi totalmente revertido, porque as favelas continuam do mesmo tamanho, e nos mesmos endereços… Lamentavelmente! O analfabetismo funcional não foi erradicado nos últimos vinte anos no Brasil, para se argumentar que tamanho avanço teria sido revertido por uma nova Administração em apenas um ano de Governo; a qual, diga-se de passagem, executa o orçamento aprovado no ano anterior… E sabemos que o sistema político não colapsou porque, após o impedimento, muitos programas, quadros decisórios e iniciativas foram mantidos. Estarei sendo ingênua? E não seria muito mais ingênuo achar que se poderia sustentar, indefinidamente, diante das mesmas favelas, periferias e dificuldades de sempre, um discurso de que se acabou com a pobreza, com o analfabetismo e com o desemprego?

Nenhuma mudança, até o momento, além dessa crosta de superficialidade discursiva marcada por alegorias de poder sem imaginação, parece ter sido obtida ainda sem consensos e recurso à representatividade política. Mesmo a continuidade de políticas compensatórias passa necessariamente por questionar sobre a efetiva sustentabilidade, ou sobre a real distribuição de benefícios existente. O nível de endividamento do brasileiro e do Estado tampouco parece fazer parte dessa discussão redonda e falsa, pouco inclinada a questionar o que temos, a qual superestima um passado de avanços. A escassez de lideranças negras e mulheres nos partidos de esquerda, igualmente não faz parte dessa falsa constatação de progresso inequívoco dos anos anteriores, supostamente perdido com mudanças de um novo Governo. Nesse momento, convenientemente, também somem as estatísticas de mortes de indígenas e de mulheres vítimas de violência doméstica acumuladas nos anos anteriores: os fatos, afinal, importam? E se estão sendo revertidos avanços ‘conquistados’, os quais teriam sido obtidos por um discurso de direitos… Ora, não podemos então nos indagar se as minorias ‘conquistaram’, ou o Estado no Brasil paternalmente lhes ofereceu direitos, como de praxe, cobrando a fatura de apoio político? Discurso contraditório. Pois quem conquista direitos na sociedade civil, geralmente o faz a despeito de uma autoridade e circunstância, e não por uma concessão e liberação de verbas… A sociedade civil tem inerentemente a habilidade e obrigação, dever cívico de manter direitos conquistados ou concedidos, e me surpreende que a grande discussão sobre regresso seja baseada no que dependeria irrestritamente do Estado… Reclamamos de exercer dever cívico para reivindicar direitos? Ou de haver cessado as concessões de um Governo que nos cobrava deferência? Eis um péssimo hábito estabelecido na esfera pública, de não se dar por satisfeito com o dever cumprido, e se entregar à tendência de subdelegar a si mesmo a um poder estatal, para culpá-lo. Nenhuma democracia se sustenta atribuindo tudo ao Estado.

Parece-me também contraditório falar em autoritarismo de direita neste momento, pois os consensos que as autoridades no poder estão buscando, talvez sem muito êxito, hoje são bem mais ampliados no Congresso, e abrangentes a ponto de incluir o ativismo jurídico do Supremo Tribunal Federal, pois a Presidência militarizada não domina o processo de coalizão política ao qual os partidos estavam habituados. E consensos paulatinamente obtidos em propostas de reformas que vinham sendo tentadas arduamente, por governos anteriores, dificilmente se poderiam se chamar de regresso… Ou é regresso alcançar um consenso que se buscava antes? O fato do consenso obtido não coincidir completamente com a proposta de um partido à esquerda, ou à direita, mas em um meio termo obtido por meio legítimo de deliberação, com representatividade e funcionamento institucional mantidos, não significa autoritarismo de modo algum.

Se não temos regresso, nem vergonha do que somos, por que então o Brasil de hoje é tão odiado por grandes intelectuais brasileiros? O Brasil de hoje vem sendo mal reputado no exterior sobretudo pelo olhar imperdoável de pessoas que devem ao Brasil sua razão de ser e sua origem, tanto por meio de críticas em artigos e em entrevistas, quanto em pautas para revistas e jornais estrangeiros. Se o Brasil de hoje lhes parece odioso, isso deve ser compreendido. Qual a explicação para essa imagem unilateral que os formadores de opinião, conscientemente ou não, vêm alimentando e construindo, eles próprios reconhecem, sem diálogo?

Uma primeira razão para acusar esse Brasil supostamente ‘odioso’ que me ocorre, além, naturalmente, da explicação de interesse direto em exercer uma oposição política voluntária, para recapturar o poder e a opinião pública, é a de exclusão. É natural que parte das elites políticas e vanguardas culturais que antes encontravam prontamente prestígio, respaldo e resposta positiva no Estado, um maior trânsito entre decisores governamentais e formadores de opinião, sintam-se hoje excluídos. Contudo somos excluídos não de um novo Brasil, mas de um novo Governo, representativo de grupos aos quais não pertencemos, com os quais evitamos dialogar, e os quais alguns de nós abominam: neopentecostais, surdos, boiadeiros, maçons, positivistas, gente do interiorzão, anarquistas, monarquistas… E de fato o Governo, no Brasil, tem um poder decisório desproporcional de distribuição de recursos e benefícios, tamanho contra o qual, aliás, alguns conservadores e liberais se posicionam. Efetivamente, estamos diante de um Governo que se recusou a dar continuidade a práticas de prestígio e a entendimentos que vinham sendo construídos por partidos de esquerda e de centro-esquerda; nos quais esses intelectuais, migrados em parte ao exterior, não encontraram mais espaço de protagonismo para a inclusão afirmativa que vinham construindo, tendo como fundamento o politicamente correto.

Contudo esquerda e politicamente correto não são um sinônimo de democracia; e direita e politicamente incorreto, tampouco, sinônimo de autoritarismo. O autoritarismo governamental de acossar e punir abertamente qualquer servidor, cidadão, jornalista ou empresa que mantivesse uma postura crítica ou manifestação individual contrária a suas iniciativas também ocorria com muita frequência – talvez maior frequência e intensidade – em governos de esquerda que vinham buscando se manter no poder, após vitórias em várias rodadas. Discordemos: pois há quem diga ainda, na qualidade de cidadão, que a situação da Venezuela, em que opositores são mortos e expostos nas primeiras páginas, é de uma democracia e vítima…

A segunda razão que me ocorre para esse ódio ao Brasil de hoje, parece-me, é a de que muitos intelectuais olham para o Brasil e o confundem com o Governo; mais precisamente, com o Chefe de Estado. Herdam uma perspectiva política construída durante a ditadura, ela própria autoritária: supõem que o Chefe de Estado encarna o Brasil como entidade, porque atribuem a ele poderes superestimados de consenso e a máxima hierarquia, o comando irrestrito. Assim, se odeiam o Chefe de Estado de hoje que temos, logo, odeiam o Brasil de hoje que temos, porque os confundem. Essa visão, no fundo populista, conformada pela inércia de jornais que centram sua atenção na figura de uma única pessoa, supõe que uma única pessoa deve ter a vocação de encarnar o espírito de uma Nação inteira, representá-la na sua totalidade, ou configurar um exemplo e modelo a ser seguido. Pois é precisamente essa a principal característica de regimes totalitários: o Governo como uma representação da vontade de um ser sagrado, iluminado por princípios puros, que determina ele próprio a norma de si mesmo e de absolutamente todos os demais. Ou mesmo poderíamos resgatar essa como a principal característica da defesa de um regime monarquista! Sim, o pressuposto dessa forma de pensar e de concluir com esses pressupostos, de que uma só pessoa reuniria virtudes para cristalizar o interesse de um partido que se confunde com o Estado, tem muito em comum com a perspectiva monárquica. Nas monarquias, a diferença é que esse pressuposto não assume o formato partidário, mas hereditário. Haverá tanta diferença, entre os que se colocam em posição de superioridade para decidir por ser irmãos de laços ideológicos, ou por laços consanguíneos?

Não julgo nem me posiciono neste momento, apenas observo: sutilezas da ‘nova’ direita que ainda não foram captadas pela oposição. O deboche, principalmente. Não consegue perceber o efeito do riso, quem não é capaz de rir de si mesmo. A inteligência política de uma ‘nova’ direita organizada também parece passar desapercebida: pois não se concebe possível que o atual Governo no Brasil, diferentemente de voltar atrás em discursos, mantenha múltiplos discursos, com vistas a consolidar apoios em grupos de linguagem e de perfis substantivamente distintos. E disso, eu me pergunto, não se poderia deduzir alguma pluralidade? Os ideólogos e historiadores que fazem uso de um ponto de vista fixo não conseguem enxergar as diferenças substantivas entre as pessoas que eles incluem sob um só rótulo de extrema direita, como ‘bolsominions’, ‘nazistas’, ‘fascistas’, ‘terraplanistas’, dentre outros apelidos e apelos que encontraram para condenar e debochar, com insultos generalizados na esfera pública virtual, quem quer ofereça apoio gratuito ao Governo. Poucos denominam lucidamente o que eles realmente são: bolsonaristas. Essa cegueira, efeito de paixão política, refletindo lealdades pessoais baseadas em aspectos emotivos, ou antipatias instantâneas, acaba por fornecer uma espécie de máscara que desvia o olhar do cidadão da conduta efetiva dos agentes de governo e da sua adequação para promover o bem público. A ideação demasiado crítica dificulta ter conhecimento de quem realmente é o representante e do que ele deve ser, para cobrá-lo em sua tarefa de nos representar em sua função. Fica ao eleitor a impressão de que a oposição atua como se tivesse interesse permanente no pior dos cenários, ou como se não se importasse em corroer e depredar a função de autoridade pública que, posteriormente, outra pessoa fará uso.

Menos intelectuais ainda arriscam vir a público para encarar a difícil tarefa de enxergar aspectos positivos e problemas de um Governo com o qual, direta ou indiretamente, precisam coexistir… Sob pena e receio de também ser rotulados e excluídos pelo politicamente incorreto? Na verdade, constatamos uma ausência de reflexão que tenha um ponto de partida, mas não uma conclusão obrigatória. A obrigatoriedade de se condenar o Governo, e tudo que o que o Governo defenda, não costuma produzir a liberdade necessária para o pensamento encontrar sínteses e novidades que façam avançar o debate público. Talvez também tenham medo de contaminar seu pensamento com algo ‘impuro’ que caracterizam como odioso, de abrir-se à violência do outro; sim, há uma eugenia de ideias, um arianismo ideológico em muitos círculos intelectuais, que se ufana da falta de abertura à dialética que defende em tese.

Qual esperança temos? Quem perfaça essa abertura arriscada, assumindo os padrões que bem conhecemos de oferecer a face, há de ter coragem. O orgulho e a vaidade não permitem a intelectuais prestigiosos arriscar suas reputações nisso… Sobra, portanto, apenas a velha e surrada moral cristã, judaica e católica, dita na surdina sobre ouvidos de pedra.

Pouco se recordam os intelectuais que reclamam de um Brasil de hoje odioso, meio ao deboche e débacle, da memória filosófica: da função absolutamente distinta da filosofia, de provocar o sujeito comum a pensar e pesquisar, para buscar seu argumento, e dar início a simular um pensamento próprio. Pessoas esclarecidas vêm tomando declarações irreverentes, de propósito e esfera claramente filosóficos, como tresloucadas e abusivas, apenas para conformar seus pré-discursos. Tornam-se chatos. Querem rebater panelas com panelas regulamentando o ritmo, ao tornar tudo falsificável, e assim estragam o clima espontâneo de revolta que permite a formação de novas amizades e afetos sem origem e destino, o que coloca as coisas em movimento. Submeteram-se à expectativa ponderada de alternância, reduziram-se ao cálculo político, perderam a paixão do pleito… Um filme já visto pelos brasileiros sociais-democratas.

Contudo não se pode dizer que observar fatos para encontrar um juízo pré-definido, e assim ensiná-lo, possa ser caracterizado como uma atividade intelectual; isto recuso. Afinal, a realidade brasileira é algo muito mais complexo que possa se deduzir de uma notícia de jornal, de um relatório de ministério, de um post de Twitter por algum decisor alcoolizado no carnaval, seguido por uma pronta avaliação sobre o fato, ou sobre a opinião publicada. E quanta coisa há que não está publicada! A maior parte da atividade cultural é, por definição, não declaratória, nem discursiva… O que deixa de ser publicado é talvez tão ou mais importante, para avaliar o ambiente político que temos, quanto o que é.

A oratória do deputado que todos abominam sob o cartaz de ‘quem gosta de osso é cachorro’, referência às ossadas de mortos da ditadura, era o mesmo parlamentar que votava com o Partido dos Trabalhadores com alto grau de disciplina, partido para o qual, aliás, fez campanha, tendo disso recebido de volta apoio… Há aspectos indigestos como esses que nenhum pensador sério poderia ignorar, antes de querer definir ‘o Brasil de hoje’ como odioso. Ao menos não sem recair em desonestidade intelectual, pois as alianças políticas não se tornam repentinamente repulsivas de ontem para hoje, apenas porque foi lançada uma candidatura avulsa e concorrente. Ou, para ficar apenas na superficialidade da esfera política eleitoral, a fim de compreender, antes de mais nada, como um partido de direita, antes desconhecido e sem base eleitoral, obteve a Presidência da República.

O combate ao ódio por meio do ódio; eis o que temos hoje na campanha eleitoral permanente que se estabeleceu entre situação e oposição, e nessa dinâmica se comprimem e se atropelam moderados, juntamente com qualquer ideal de encontrar um meio termo, ou estabelecer um diálogo no domínio discursivo; note-se bem, porque é desejável monopolizar o bem. Pois é preciso arguir o seu monopólio para criticar na direita a ausência de capacidade de diálogo. Mas para se desejar o diálogo, é necessário ser capaz assumir o pressuposto do outro, ao menos para refutá-lo; pois se não há nenhum denominador comum entre violentos, alguém precisa engolir alguém.

O Brasil, no entanto, não depende das pré-condições de um diálogo, nem se confunde com anotações sobre um Governo, ou com o discurso de um governante. Quem se lembrava quem era o Presidente do País à época da gripe espanhola, em 1917, antes desta epidemia? Ter uma perspectiva de maior longo prazo é indispensável para saber e conhecer o Brasil que temos hoje, o qual será também o Brasil que teremos amanhã… As mudanças de identidade e de ambiente institucional, por definição, não ocorrem de um ano para o outro, nem talvez de uma década para outra, nem de cima para baixo, nem por mera vontade de uma cúpula intelectual que se reafirma e endossa mutuamente suas opiniões. A estrutura da sociedade brasileira tampouco é o que define o Brasil, pois a identidade coletiva escapa à classificação sociológica: pois nela se inscreve tanto a memória quanto um tempo imemorial, feito de história e também de vontades. Além do que identificar as novas propostas políticas com os assentamentos de privilégios construídos, como afirmam ser o que defende a pauta conservadora, é contrariar frontalmente a realidade: pois se é justamente a atual estrutura de privilégios um dos alvos preferidos de combate dos conservadores e liberais, os quais dizem detestar mecanismos que excluam o mérito e a necessidade de inovação.

Haverá algum dia um grupamento conservador com o qual partidos de esquerda dialoguem, ou gostem de dialogar? Jamais vi isso em nenhum país. Quando não ocorre a pronta recusa e deboche, a relação que se estabelece é necessariamente de negação do papel político que qualquer grupo conservador possa vir a exercer, determinando uma definição de conservadorismo; para excluir os conservadores, convenientemente, da definição criada.

O que temos hoje é, como resultado disso, lamentavelmente, um grupamento de conservadores que não se importa com o que o pensamento intelectual de esquerda define, diz ou pensa: que, para citar um internauta qualquer delirante, ‘escolheu chutar o inimigo no traseiro’. E um grupamento que inclui muitas vezes os liberais de direita no grupamento adversário; afinal, faz parte de ser bruto e macho, ou macha, não conseguir discernir muito os discursos sofisticados.

Mas o Brasil continua um país mais divertido que trágico; e para concluir isto, eu logicamente tenho antes de me desfazer de qualquer paixão política, entendendo como paixão política o que me impede de contestar os fatos e a realidade que vêm sendo defendidos desde um ponto de vista político definido.

Que fatos positivos poderíamos encontrar como ponto de partida hoje, para elogiar o que temos? Afinal, em qual outro país se poderia encontrar em gibis o Tratado de Tlatelolco, com todos os ‘L’s; e uma proposta, em seguida, à altura de declarar-se o que se é? Sempre é inovador ver responsabilidades sendo assumidas; e à esfera pública correm sempre os responsáveis, querendo acudir-se em algo. Embora se possa encontrar outros líderes mundiais que desgovernem opositores por meio das redes sociais, em nenhum outro país no mundo a autoridade política de maior hierarquia teve seus textos bloqueados pela própria rede social. Isso, apesar de inicialmente perturbador, note-se, agrada ao cidadão brasileiro, porque confere um maior grau de liberdade de expressão ao qual não estamos habituados. Afinal, se a autoridade máxima erra e persiste no erro, o cidadão comum, pensa ele, não pode ter, também, alguma margem de errar? Disso emerge o coleguismo invisível a olho nu, baseado, no íntimo, em uma falibilidade mútua. Para o brasileiro, manter a vulnerabilidade de um governante em vista é importante para tê-lo debaixo de sua governabilidade, ainda que sob o véu de um imaginário coletivo, pois cada cidadão observa pacientemente o que lhe rende sua escolha política racional; as opiniões sempre em movimento. Fato é que, independentemente da leitura produtiva que se possa fazer do que se veicula como um atestado de demência, cada evento político descerra a possibilidade de encontrar respostas que tornam o Brasil mais interessante… Pois uma melhor compreensão precisa analisar os fatos tornando-os admissíveis, para digeri-los, ao invés de cuspi-los a uma plateia asseverando ódios.

Não me refiro apenas à necessidade de incluir no debate aspectos positivos, para que se torne possível e equilibrado um diálogo ou avaliação sobre o Brasil que temos hoje; os aspectos negativos, embora eu não possa nem deva abordá-los, por limitação de função e hierarquia, também são importantes para se enxergar um problema, quando o propósito é resolvê-lo. Salientar o que é odioso, o que causa repulsa, nos impede de enxergar aspectos reais que precisam ser superados: a negação da ciência, ou a resistência a admitir consensos científicos para atuar em conformidade com o conselho científico e técnico nas políticas públicas, por exemplo, é um desafio que precisa e pode ser explicado; pois, afinal, se não são sempre observados, por outro lado são especialistas e técnicos que estão à frente da condução dessas políticas. Se esse aspecto fosse abordado na qualidade de um problema a ser resolvido, inevitavelmente se desenvolveria a discussão sobre as razões. Desse desenvolvimento provavelmente se encontraria o contexto: o argumento, por exemplo de que, no passado, a ciência já esteve radicalmente equivocada, e que muitas pesquisas hoje, de fato, se mostram equivocadas, das quais deveríamos desconfiar sempre – sobretudo as visam predizer o futuro ou as chances de que algo aconteça. A salubridade portanto ganharia com um debate que incluísse os aspectos negativos desde um ponto de vista que vai além da crítica ao que é repulsivo, separando a opinião política da realidade o que de fato político que nos interessa, para estabelecer parâmetros importantes para a ação pública: eficiência, confiança, consenso… E com base nesses parâmetros e resultados avaliar e combater com maior eficácia o que causa dano e bom resultado ao bem público. Afinal, o resultado foi positivo, melhor ou pior que o de outros países? Perguntas que não são feitas quando nos contentamos em expressar ódio e deboche.

Seria do mesmo modo desonesto de minha parte ignorar preocupações que decorrem do atual estado de coisas no Brasil e no mundo; as pressões e constrangimentos sofridas por quem expressa meramente uma opinião pessoal qualquer sobre órgão de governo ou conduta de governante, mesmo corriqueira, na esfera virtual. E, sabemos, também existem os que reclamam ser assediados na esfera mais fluida cultural, na qual reputações são depostas, privacidades invadidas e carreiras profissionais colocadas na posição desconfortável entre a exclusão e o repúdio. Nós vivemos um tempo no qual boa parte da população ativista na política se identifica com valores liberais e democráticos garantidos nas Constituições americana e brasileira, mas cuja adesão efetivamente é baixa. A defesa desses valores de liberdade de expressão, liberdade religiosa e de liberdade de escolha política, ainda que seja de uma opção à extrema direita, torna-se uma contradição, quando a prática e comportamento dessa mesma população de ativistas, apelidados pelos seus opositores de ‘milicianos virtuais’, hostiliza a manifestação do pensamento. Essa massa coadjutora de uma autocracia, que não tolera seja manifestada uma opinião diferente da sua, atuando para constranger com insultos e desinformar, até que a opinião diferente seja retirada ou recolhida da esfera pública, não se dá conta de que, sob a iniciativa que cultua, contribui para aproximar o Brasil das restrições de liberdade que observamos na China e na Rússia, no extremo oposto do que o próprio conservadorismo almeja. Há sabedoria na liderança, para ponderar o momento de campanha, em que se é candidato, e distingui-lo do momento de governo, em que se é autoridade? Eis a esperança.

A consciência coletiva de atitudes neste momento seria um avanço para tornar o ambiente público mais salubre. Mas isto dependeria do amadurecimento desse debate público, porque permitiria a cada indivíduo discernir como deseja obter resultados de liberdades por meio de práticas restritivas. E também enxergar melhor quem deseja obter resultados de restrição de liberdades por meio de práticas não-restritivas, e assim por diante. Embora aqui se registre, nesta breve linguagem fora de moda de Parsons, uma necessidade de estar alerta ao perigo que ameaça a democracia, ignorar cláusulas pétreas constitucionais na conduta política, não gostaria de fugir ao tema proposto central que trouxe ao leitor, de questionar a conclusão de que o Brasil de hoje seria odioso; de defender o que vejo de bom e indicar todas as falhas de pensamento que me parecem, conduzem a essa conclusão equivocada. Trago este assunto das liberdades porque a recusa em avançar o debate público sobre a relação entre ideias defendidas, em contraste com atitudes, com a adesão a práticas intimidatórias, talvez esteja na origem mesma dessa falácia. O Brasil se tornou odioso porque dialogar se tornou algo evitado, sobretudo…

Sobre outras justificativas levantadas para arguir que o Brasil de hoje é odioso, os indicadores insatisfatórios e a violência institucional no Brasil, qualquer pessoa reconheceria que ainda são um desafio sério, mas que atingem não apenas lideranças de esquerda: atingem todos indistintamente. E isso é triste, muito verdade. O ódio contra o ódio, na esfera política, também é algo muito triste. Os múltiplos discursos e inconsistências nas decisões de autoridades em distintas instâncias, uma característica inerente do sistema democrático, e não autocrático, também podem sugerir que o Brasil não seja o país mais organizado do mundo; não somos a Alemanha, temos de admitir isso… Os nossos problemas existem e estão lá. Mas o Brasil é odioso a um brasileiro por causa disso? Também tenho problemas difíceis em minha vida, mas considerarei minha vida odiosa, ou me odiarei por causa disso?

Fico impressionada ao perceber que indicadores ruins no desempenho econômico-social e na esfera discursiva ainda levam os intelectuais a apontar para o Brasil de hoje como um país de pior que os demais, a ensinar que o Brasil é um país odioso na imprensa e em universidades de prestígio no exterior; mas que, ao mesmo tempo, confortavelmente ignoram outros países que têm indicadores piores e lideranças decididamente mais violentas. Então países com piores indicadores, mais assassinatos políticos e pior nível de inclusão e de violência contra minorias não revoltam, não são realidades intoleráveis? Por que não são tão ou ainda mais odiosos que o Brasil? Por que não os mencionam nem se dedicam trazer à atenção do público seus problemas e indicadores de privilégios, também? Ora, diriam então, esses intelectuais, mas outros países não são seus objetos de estudo; escolheram estudar o Brasil. Entretanto não estamos refletindo sobre o que estudamos, e sim sobre o que escolhemos odiar… Não odeiam países, sob as pretensões evocadas, que não sejam o seu próprio, e querem acreditemos que esses seriam os pretextos para odiar hoje o lugar em que nascemos… Como se amar ou odiar o País próprio, ou amar a si mesmo, dependesse de desempenho ou de circunstâncias.

No futuro, talvez muitos desses problemas sejam resolvidos, como muitos já foram, pois o futuro também é feito de vontade. Mas independentemente deles, o Brasil é um País excelente, para quem é brasileiro e o ama, e a identidade brasileira não é fruto exclusivo da ação governamental da qual se discorde. Não cabe aqui exaltar nossas virtudes de liberdades que gozamos em acréscimo, pelo anti-puritanismo de nossa cultura, ou o forte caráter dosado pelas dificuldades da vida, ou a amizade generosa que cultivamos com nossos adversários, porque uma dessas virtudes é justamente a sabedoria de reconhecer que somos menos do que achamos que somos… E com muita graça sabe o Brasil sabotar e rir de quem pensa ter encontrado a resposta definitiva para quem somos; duvidar de quem discursa sem conceder ao outro a liberdade de acolher ou não o discurso; de quem opina sem recordar que uma opinião é apenas uma opinião.

Deixo ao leitor a reboque de si mesmo, e neste mês também os votos de que tenham tido uma feliz Páscoa, nestes tempos difíceis, sem futebol; e um de meus estudos poéticos ainda inéditos, se bem ainda estou trabalhando nele.

Um estudo sobre a demagogia
Ana Paula Arendt

Dar uma ordem para pouco em seguida negá-la;
Estupidez de quem a seguiu de boa fé e se cala.
A capacidade de instar de um modo articulado e direto;
A preferência pelo processo tortuoso que pelo mais reto.
Ignorância do quanto custa e a forma obtusa de pagamento;
As lacunas em que se aprecia e deprecia para fazer rendimento.
Números sem períodos, sem outros países, sem dialogar com a realidade
Discursos onímodos para distrair das favelas da cidade.
A propaganda e a maquiagem no rosto, na rede social e no santinho
Os buracos na rua que foram tapados, mais caros que um novo caminho.
Os preços rebaixados com favores, sob aumento de oitenta por cento;
Ligar em alta voz para figurões, ocupar bem elegante um assento.
Encontrar pêlo em ovo e elogiar a higiene do galinheiro
Ficar sem crédito e predar os sonhos dos aventureiros.
Pagar jornalistas para escrever uma linda autobiografia
Ficar batendo perna à noite, dormir durante metade do dia.
Receber senadores, criticar prefeitos, demandar deputados
Esquecer o que deve fazer na função à qual foi designado.
Viajar com grandes comitivas, ser o líder e falar como referência
Polemizar com vozes passivas, dispensar tratativas, negar a ciência.
A falta de reger sob autoridade o bem absoluto do submetido
Ser incapaz de felicidade, pela dificuldade de não ter sido.
Ter como parâmetros o prêmio, a promoção e o fim da festa
Dizer como bela vocação o trabalho que evita e detesta.
Ana Paula Arendt é poeta e diplomata brasileira. Escreve mensalmente na coluna ‘Terra à Vista’.

Ressalva: os trabalhos sob o pseudônimo Ana Paula Arendt pertencem ao universo literário, refletem ideias e iniciativas da autora e não necessariamente posições oficiais do Governo brasileiro. Estes trabalhos literários buscam estar em consonância com os valores e princípios da Política Externa Brasileira relacionados ao diálogo, à dignidade humana, ao desenvolvimento e aos direitos fundamentais do indivíduo. A autora está sempre aberta a sugestões e críticas.