Questão de gentileza. Por Juliana Fernandes Gontijo.

– Coelhinho! A minha filha quer te fazer uma pergunta. Conversa com ele, Alice!

Março de 2007. A última apresentação da peça no último fim de semana de um grande festival anual de teatro em Belo Horizonte, considerado um dos maiores do Brasil. No foyer da casa de espetáculos, uma jovem senhora abordou a atriz principal exatamente com a seguinte pergunta, porque a menina tinha vergonha de falar:

– O coelhinho da Páscoa dá ovo para quem chupa bico?

E a personagem rebateu, encarando a linda menininha no colo da mãe:

– Mas quem usa chupeta ainda? Quantos anos você tem?

Com dificuldade, Alice sinalizou “3 anos” com os dedos.

– Não! O coelhinho não dá ovo para quem usa chupeta… Você já é uma mocinha. E mocinha não chupa mais bico.

Alice, a mãe e outros familiares tiraram fotos com o coelhinho, despediram-se e sumiram na multidão.

Uma semana depois, a atriz que interpretava o coelho recebeu uma ligação da produção do espetáculo.

– Oi. Tudo bem? Você disse para alguém na última apresentação que o coelho não dá ovo de Páscoa para quem chupa bico?

– Sim, eu disse. Foi para uma menininha chamada Alice. – Aquilo realmente deixou a atriz surpresa.

– Bem, a mãe da menina ligou desesperada (essa foi a palavra) para a organização do festival. Ela quer saber onde a peça vai ser apresentada novamente, porque a filha disse que só para de chupar bico se entregá-lo para ao coelhinho.

– Sério? – Ali vieram pensamentos mirabolantes na cabeça da atriz em poucos segundos. “Vou pegar esse bico!”.

– Do jeito que você é, se eu te conheço de verdade, você vai pegar esse bico…

– Eu posso? Você me dá autorização para usar o figurino da produção e ajudar essa mãe? Afinal a personagem tem “dono”, né?

– Pode, não há problemas. O nome da mãe é Angela.

– Onde eu encontro essa pessoa?

O produtor passou o telefone e “toda feliz” a atriz ligou para o local. Era um número terminado em 0000. Pensou ser uma grande empresa, com vários ramais, onde trabalhariam talvez centenas ou milhares de funcionários. E foi mais ou menos isso. Descobriu ser um órgão público com alguns escritórios dentro do estado. Para a atendente, a atriz explicou a situação dramaticamente, temendo uma “represália” do outro lado da linha, como pedofilia, por exemplo.

– Moça, eu não sou doida! Sou atriz e recebi uma ligação de uma pessoa que trabalha aí e se chama Angela. E eu gostaria de ajudá-la.

Veio a decepção. A atendente disse que eram quatro escritórios no estado. Um na capital, mais três no interior e sete funcionárias com o nome de Angela. No entanto, repassou os números de telefone e completou:

– Se você quiser vir ao prédio da Secretaria, converse na Recepção que eles falam onde trabalham essas funcionárias. Quem sabe isso ajude você.

“Pelo menos, são só sete pessoas…”. Anotou os telefones, mas saiu decidida a ir até o órgão da cidade. Daria muita sorte se Angela não fosse uma das funcionárias de uma cidade no interior. Ela poderia ter passado férias na capital e já ter retornado para casa…

Chegou ao local e contou a mesma “história”. A recepcionista deu os andares onde “as Angelas” trabalhavam. Lá se foi a atriz em busca de Angela.

Enquanto estava no elevador, arquitetava as falas com a mãe. Era preciso tomar cuidado na abordagem para a mulher não recusar responder às perguntas.

Na Recepção de um determinado setor, pediu para chamar a funcionária. Alguns minutos depois, a primeira Angela se apresentou e a atriz começou sua indagação:

– Tudo bem? Não leve a mal a pergunta: você tem uma filha de uns três anos que se chama Alice?

– Sim, respondeu com receio.

– Você a levou no teatro recentemente?

Mais receosa ainda ela respondeu que sim, e a atriz devolveu com um saudoso cumprimento:

– Muito prazer, eu sou o coelhinho.

Um grito de felicidade ecoou no setor:

– Eu não acredito que você está aqui. Não é possível! Angela tinha um brilho incomum nos olhos e dizia não imaginar que houvesse uma resposta para o pequeno problema com filha. Ela realmente não acreditava que aquilo estivesse acontecendo. Apresentou a moça para algumas colegas da repartição, dizendo que era a atriz da peça que estava ali “em carne e osso”.

– Uma atriz responder ao “apelo” de uma mãe? Isso é incrível! – Dizia muito feliz.

As duas conversaram por uns 30 minutos e ela contou que já estava, há algum tempo, querendo tirar a chupeta da filha, porém era difícil. A atriz disse que tinha o propósito de ajudar, bastava Angela querer. Não lhe custaria nada. Era o mínimo que a artista poderia fazer para retribuir as palmas da plateia, o carinho do público. Era questão de gentiliza! A mãe disse que iria pensar “direito” na proposta e analisar mesmo se era exatamente o que a filha “queria”.

– Podemos marcar para o dia da Páscoa, se você quiser. Eu “vou de coelho”, pego o bico, entrego o ovo, devolvo a você (caso dê algum problema) e vou embora, simples assim. Eu só quero ajudar nisso. Como falei, não me custa ser gentil.

– Quanto você cobra? Você precisa receber, não é justo. Vai gastar o seu tempo, é Páscoa! Mas você faria isso por nós? Perguntou surpresa.

– Claro! Só não vou de ônibus, vestida com o figurino, porque a cidade inteira vai me pedir ovo de chocolate. Usarei o seu banheiro de “camarim”…

Mãe e atriz continuaram a conversa por mais algumas semanas e no dia da Páscoa, a moça foi à casa de Alice. Conforme o combinado, ela chegou às escondidas, trocou-se no banheiro e a garotinha já estava lá toda fantasiada de coelhinha para receber a vista do coelho. A mãe até marcou pegadas com farinha no chão para criar um ambiente propício à brincadeira.

Quando Alice encontrou o coelho ao lado do sofá, atrás da cortina, seus olhinhos brilharam, tamanha sua felicidade em se encontrar com o “amiguinho”.

Os dois brincaram por alguns minutos e Angela entregou a chupeta para Alice. O bico estava cuidadosamente embalado em um saquinho de plástico. A mãe contou à filha que o coelhinho iria dar o objeto a uma criança de família humilde, que não tinha condições de comprar um bico. Alice entregou muito feliz, sabendo que iria ganhar um ovo de chocolate. A menina e o coelhinho brincaram por algumas horas. Angela e o marido ficaram muito felizes com aquele “reencontro”. Fizeram fotos e a mãe registrou o “acontecimento da chupeta” no livro de memórias da filha.

Ela não queria que a atriz saísse dali sem um pagamento e insistiu em dar-lhe pelo menos o dinheiro do táxi e ainda a presenteou com um ovo de chocolate. Ao fim daquela “apresentação”, a atriz saiu da casa de Alice muito realizada, feliz em poder ajudar uma desconhecida naquele caminho educativo. Mesmo sem entender de teorias pedagógicas, a atriz ajudou a mãe em um combinado aliado a uma brincadeira, “marcando” assim, de alguma forma, a infância de Alice.

Como toda criança, a menina teve dificuldades de adaptação e Angela sofria também, porém se mantinha firme na decisão. Por algumas semanas, a mãe comentou que foi um pouco difícil fazer a menina entender que era preciso largar a chupeta. No entanto, ela conseguiu segurar a “história da criança sem recursos ganhar o bico do coelhinho” e não voltou atrás. Hoje, a adolescente deve estar com 18 anos. Na certa, não se lembra do fato, porém as fotos registraram o encontro com o coelhinho que se tornou uma grande e feliz lembrança de infância guardada no livro de memórias de Alice.

Observação: por direitos autorais, a foto deste encontro não pôde ser publicada nesta coluna. Essa é mais uma das minhas grandes lembranças proporcionadas pelo teatro.

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.