P'ra hoje: riso 'al dente'. Por Renata Quiroga.

Por que a guerra? A indagação, debatida entre Freud e Einstein, parece permanecer sombreada de dúvidas em torno das moções da agressividade humana. A transição da metade final do século XIX para a primeira metade do século XX apresentou mudanças extremamente relevantes para a história. A começar pela urbanização que funcionou como grande guarda-chuva para fatores como o crescimento populacional, transformação do sistema de transporte e tonificação do capitalismo como ordenação política. Envolvendo toda essa reviravolta no funcionamento das sociedades, as duas grandes guerras atravessaram algumas gerações da modernidade e deixaram suas truculentas cicatrizes na pele humana.

A Primeira Guerra Mundial (1914-1918), por exemplo, imprimiu no cenário da humanidade suas marcas de violência e proximidade com a morte. A dinâmica das batalhas ganhou amplitude de dimensão em função da tecnologia embarcada nos armamentos. Neste momento, a morte era alcançada pelo uso de aviões, submarinos, raios-x e a toxidade letal espirrada por gases em milhares de pessoas. O poderio bélico de alta performance garantiu os caminhos da barbárie em direção à população mundial, que passou a viver a tragédia das carnificinas e devastações.

A violência não só foi redimensionada por sua forma tecnologicamente robusta, mas o número aniquilante de óbitos produzido pela guerra permitiu que vida e morte fossem vizinhas geminadas. Anteriormente, a morte de pessoas gratas aos afetos uns dos outros ocorriam uma a uma. O horror da brutalidade fez com que as notícias informassem o falecimento de dezenas de milhares de atingidos diariamente, muitos deles amigos, parentes ou familiares.

Em 2021, o episódio ‘Covid-19 – ano 2’ remonta o espetáculo da guerra pelo drama vivido pelas mortes de milhares de indivíduos, ceifados pelo poder destruidor de um vírus invisível. Aliado ao terreno mortífero, as consequências da passagem da Covid-19 impactam o mundo com conflitos políticos, desemprego, crises econômicas e fome aguda, registrada por números atuais em aproximadamente trinta por cento da população global lutando contra seus níveis emergenciais.

Tempos de isolamento, restrição de circulação entre países, temor de um inimigo em sentinela, viver respirando morte. Essa descrição tanto serve para o contexto europeu das guerras, quanto reflete o período atual da regência trina: Vírus-Medo-Morte. A similitude que se estabelece entre os dois momentos históricos é percebida pelo fato de ambos se distanciarem, incondicionalmente, do que pode ser considerarado “normalidade”.

Ao escutarmos os termos front, hospital de campanha, ataque ao inimigo e luta, não se sabe se a notícia foi da morte do imperador austro-húngaro ou se alguém apresenta sintomas respiratórios em Wuhan. Os dias seguintes aos dois fatos colocaram o mundo na retórica de guerra e suas consequentes mazelas sociais.

Um aspecto que faz moldura nesta paisagem é a formação de alianças. Tais acordos, que têm a função de dar contorno ao caos vivido, tanto em guerras quanto nas pandemias, objetivam soluções em conjunto para a crise e o combate à vulnerabilidade.

Nessa rua tumultuada de mão e contramão, o caos evoca alianças e a tentativa de formá-las provoca novo estado de tensão entre pensamentos divergentes. Diante de uma espécie de alistamento forçado em um mesmo exército, pessoas absolutamente distintas lutam contra a pandemia, cada qual ao seu entendimento.

A introdução da vacina, e sua eficácia no combate ao vírus possibilita a futura mudança do status de pandemia para epidemia e, posteriormente para endemia. Tal horizonte nos permite sonhar com dias melhores. Não somente sonhar, mas entendermos a realidade e nos prepararmos, na medida do possível, para as necessárias reconstruções do pós-guerra. Um dos pontos cirúrgicos é a preocupação com a pandemia da saúde mental – que divide opiniões e pós-verdades nascidas do pensamento popular.

Certo dia, um amigo postou em suas redes sociais frases feitas popularizadas pelo senso comum com as quais ele declarou certa antipatia. O jogo da postagem conquistou adeptos entre seus seguidores que contribuíram com frases em sua timeline. Minha contribuição foi “Seja leve”. Justifico minha escolha porque, de cara, implico com verbos no imperativo (risos). Penso que a divertida brincadeira me levou a reflexão acerca da polarização entre negatividade e positividade, uma dupla importada dos estudos físicos das cargas elétricas, mas que parecem fazer pouco sentido no campo metafísico.

A ideia de que a exposição de frustrações e conflitos internos implica em formação de estados depressivos prejudiciais ao indivíduo está ligada à constituição da moralidade do positivo. A tendência positivista pode até ser muito bem intencionada, prevê o uso de jargões com mensagens de alto astral, pensamento positivo e toda explicação enunciada pela eterna felicidade de Pollyanna, personagem de Eleanor H. Porter.

Os sujeitos negativos percebem e se incomodam com a ilusão colorida do mundo positivo. Já os entusiasmados com ideias positivas não suportam a quantidade de conflitos e tensões trazidas pelo pessoal que se junta ao grupo, na mesa do bar, para falar das tristezas da existência e aguar o chope dos contentes.

Contudo, viver somente as dores dos crescimentos pode nos afastar das boas risadas, assim como a boa intenção pode estar cheia de inferno quando, na tentativa desenfreada de ser feliz, erramos a mão e tentamos destruir a indestrutível realidade. A questão balizada em oposições filosóficas retira do contexto a perspectiva da coexistência dos maus e bons tempos. Ser leve é tão ilusório quanto o ser dramático do pesado. O túnel e a luz nasceram um do outro e seguem a vida acendendo e apagando os caminhos de quem vem dentro. Talvez a saída para os momentos do apagão das guerras, das pandemias ou do nosso auto beco, seja o riso. Mas, quando o humor sucumbe ao terror, o que nos resta? Talvez a possibilidade de fazermos um movimento arqueológico de escavação dentre o auto destroço, no sentido de acharmos uma espécie de cópia perdida do nosso palhaço, aquele que, na realidade do picadeiro, se multiplica em gargalhadas para rir e fazer rir, aquele que mesmo quando sai do palco esquece a gargalhada na plateia.

… Não há paciência para verdades ou conselhos
Entre leve e pesado: que se pese o levado,
O solto, o desarmado riso firme da resistência…

Imagem: “Palhacinhos na gangorra”, de Cândido Portinari.

Renata Quiroga é psicanalista, coordenadora de Serviço Social, Psicologia, Psicanálise e Psicopedagogia – PSFP.