Ela não havia se preparado para receber a felicidade.
Por toda a vida preparou-se para tristeza
com extrema vocação para a tragédia.
As peças de luto povoavam o guarda-roupa escurecido de precauções.
O seu olhar pousava solene
na quina das suas hesitações,
no ermo das suas memórias mais atávicas,
no doloroso breu das suas cicatrizes.
Para a felicidade não tinha roupa,
não havia se preparado à altura.
Não tinha cores,
nem roupas claras.
Não tinha colônia,
nem tinha sapato.
Não tinha cacoete para dizer coisas felizes,
nem vocabulário para a ocasião.
Não havia treinado o corpo
para o êxtase borbulhante dos sorrisos largos
e todo o universo de maravilhas indomáveis
que a vida traz.
Até que um dia a felicidade bateu à porta.
Não a reconhecendo de pronto, mandou ir embora
afinal, foi treinada para recusar o inesperado
Outra ocasião, novamente bateu à porta a felicidade,
mas desta vez demorou a alcançar a fechadura,
ocupada que estava com os afazeres do luto.
Naquele momento constatou que a felicidade não se demora
pelos umbrais por onde peregrina.
Até que um dia ficou à espreita em sua janela
de tocaia pela fresta
esperando a felicidade passar.
Os dias correram com as nuvens,
com os dias,
com as noites
e com os ventos que recolhem as marés.
Os dias enrugaram seu rosto, seu corpo e poderes.
Os dias branquearam os seus cabelos
e escureceram seus olhos
Os dias disseram da felicidade.
Os dias eram a felicidade
que durante anos deixou passar.
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Mariana Vieira é escritora, poeta, artista plástica e advogada. Formou-se em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), atuando notadamente na defesa dos Direitos da Mulher. É autora dos livros “Sinto muito, eu te amo – a poética dos afetos” e “Poética dos absurdos”.
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Imagem de chamada: Mariana Vieira.