OBSERVE-SE - Ensaio sobre Soror Juana Inés de La Cruz. Por Mariana Vieira.

A era barroca nos remete a conceitos bem definidos sobre os contrastes que marcaram aquela época. Rococós, arabescos, contrassensos e até mesmo os morticínios deliberados acabam sendo, invariavelmente, as imagens que povoam o imaginário daqueles que evocam esse momento histórico.

Os atributos extremados daquele período, bem como os seus dogmas e pestes que por vezes dizimavam gerações, nos conduzem a uma identificação quase que imediata com os desafios da atualidade, de modo a nos tornar verdadeiros contemporâneos medievais dos seus paradoxos.

Sobre todas as coisas, vemos na polarização de ideias e na dicotomia de viver em permanente equilíbrio cínico entre o sagrado e o profano, um aspecto de extrema relevância para que haja essa identificação.

Pois é justamente com essa configuração histórica revelada em plena segunda metade do século XVII, que encontramos Sór (Irmã) Juana Inés de La Cruz, também conhecida como a “Fênix da América”.

Sór Juana Inés de La Cruz foi freira, carmelita descalça (tendo posteriormente migrado para a Ordem das Jerônimas), dramaturga e poeta que desafiou de modo agudo, mas de incansável refinamento, os valores da sociedade mexicana que, àquela altura, ainda era uma colônia espanhola, a Nova Espanha.

Para viver aquilo que parecia ser um chamado vocacional, chegou a mudar para outra ordem religiosa, mais flexível e adequada às suas demandas libertárias. Mas, na verdade, tratava-se de um conveniente disfarce para que pudesse ter acesso à cultura e ainda dispor do esteio logístico para se dedicar aos seus escritos, atividades exclusivamente masculinas, restritas também às universidades e às ordens religiosas.

Juana Inés foi uma mulher vanguardista quando ainda nem se tinha exata medida do que esta palavra representava. Feminista (apesar da impropriedade do termo que sequer era difundido à época) ela se valia da literatura como mote para a liberdade dos paradigmas da ocasião, como vemos nos versos de “Hombres Necios Que Acusáis”:

 

Hombres necios que acusáis a la mujer sin razón, sin ver que sois la ocasión de lo mismo que culpáis.

Si con ansia sin igual solicitáis su desdén, ¿por qué queréis que obren bien si las incitáis al mal?

Combatís su resistencia y luego con gravedad decís que fue liviandad lo que hizo la diligencia.

Parecer quiere el denuedo de vuestro parecer loco al niño que pone el coco y luego le tiene miedo.

Queréis con presunción necia hallar a la que buscáis, para pretendida, Tais, y en la posesión, Lucrecia.

¿Qué humor puede ser más raro que el que, falto de consejo, él mismo empaña el espejo y siente que no esté claro?

Con el favor y el desdén tenéis condición igual, quejándoos, si os tratan mal, burlándoos, si os quieren bien.

Opinión ninguna gana, pues la que más se recata, si no os admite, es ingrata, y si os admite, es liviana.

Siempre tan necios andáis que con desigual nivel a una culpáis por cruel y a otra por fácil culpáis.

¿Pues cómo ha de estar templada la que vuestro amor pretende, si la que es ingrata ofende y la que es fácil enfada?”

Mas entre el enfado y pena que vuestro gusto refiere, bien haya la que no os quiere y queja enhorabuena.

Dan vuestras amantes penas a sus libertades alas y después de hacerlas malas las queréis hallar muy buenas.

¿Cuál mayor culpa ha tenido en una pasión errada: la que cae de rogada o el que ruega de caído?

¿O cuál es más de culpar, aunque cualquiera mal haga: la que peca por la paga o el que paga por pecar?

¿Pues para qué os espantáis de la culpa que tenéis? Queredlas cual las hacéis o hacedlas cual las buscáis.

Dejad de solicitar y después con más razón acusaréis la afición de la que os fuere a rogar.

Bien con muchas armas fundo que lidia vuestra arrogancia, pues en promesa e instancia juntáis diablo, carne y mundo.

 

Tão incomum quanto paradoxal, Juana Inés de La Cruz viu na reclusão eclesiástica o ambiente ideal para afrontar os encarceramentos ideológicos e cartesianos da época, bem como os desmandos da Igreja.

Muito já se falou sobre Juana Inés como a freira que protagonizou romances os que eram explicitados em sua poesia homoerótica, supostamente destinada às figuras da Corte Espanhola. No entanto, este fato foi negado até mesmo por alguns dos seus protetores eclesiáticos que buscavam protegê-la das penas da Inquisição.

Sobre todas as coisas, Sór Juana Inés de La Cruz foi uma revolucionária odiada e amada, justo porque tocava a todos com a sua poesia.
Ao que nos parece, vislumbrando todo esse pano de fundo sobre o qual protagoniza a aparição de Juana Inés, fica a impressão de que estamos vivemos hoje, em pleno século XXI, o auge do movimento barroco, como uma espécie de regresso compulsório à nossa ancestralidade em um cenário medieval, com cores e contrastes bem próprios daquela ocasião.

Invocar a contemporaneidade da “Fênix da América”, nessa viagem literária para um período da história que ainda nos habita tão vivamente, traz à memória não somente a retrogradação das idéias que um dia acreditávamos superadas, mas também nos mostra a potência da escrita poética como instrumento de libertação.

Sór Juana Inés nos mostra que o aprisionamento do corpo e a insubmissão às regras podem nos conduzir a um processo de transmutação, a partir do acesso às nossas verdades imanentes que, a serviço da arte, promovem a verdadeira revolução.

Em um momento em que estamos todos aprisionados, tendo por vigia a sombra dos nossos medos, fica a reflexão de que as ideias precisam circular para que ganhem, de fato, os ares da liberdade.

Sór Juana Inés morreu aos 43 anos de idade, depois de cuidar de várias irmãs doentes vítimas de uma peste que assolou seu convento.

A freira libertária, contraditória e poetisa é uma mulher, por fim.

Estaríamos prontos para ela?

Mariana Vieira é poeta, escritora, letrista e advogada.
@marianavieiraescritora

Imagem de chamada: Mariana Vieira.