NOVA COLUNISTA: Juliana Merij - O que acontece do lado debaixo da linha?

Essa semana passei por uma situação que me fez pensar muito na ‘educação a distância’. Qual distância? Distante de quem?

Fomos, um grupo de amigos e eu (mantendo distanciamento e todos os cuidados necessários), levar cestas básicas para algumas famílias e nesse universo pedagógico a gente tem que perguntar, perguntar, perguntar. Existe no professor uma curiosidade, quase uma síndrome docente, de querer saber. Foi quando, ajudando a senhora da casa a tirar os mantimentos das sacolas, eu fiz a pergunta da qual morrerei de vergonha enquanto eu existir:

– As crianças estão acompanhando as aulas on-line?

A senhora sabia do que eu estava falando, ela tinha plena consciência do que são aulas on-line. A sem consciência ali, era eu!

Ela não me respondeu. NADA. Ela só levantou os olhos da sacola e me olhou dentro dos olhos. Certeza que ela enxergou a olho nu meu sangue correr pelo meu corpo. Meu rosto queimava. Para que eu fiz essa pergunta? Para quê?

Sem dizer uma palavra sequer, o olhar dela disse tudo. Naquela casa não tinha nem celular. Não existia acesso. Nem computador. Nem internet… Nem comida.

E eu fico me perguntando como essas crianças fazem parte da transição do ensino presencial para o ensino a distância.

Aulas on-line. Sites. Links. Hangouts. Youtube. Zoom. Skipe. E-mails.

Tudo isso… numa linha abaixo da pobreza? Tudo isso… na mais absoluta miséria?

Não. A educação não foi ‘ajustada à realidade’. A educação foi ajustada a algumas realidades. Porque a dessa casa onde eu estive também é uma realidade e lá não tem ajustes… só para driblar a fome e a falta de quase tudo.

Ela só levantou os olhos da sacola e me olhou dentro dos olhos. Bastou para que imediatamente eu lembrasse que, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, mais de 30% das mortes que acontecem todos os dias estão relacionadas às causas da pobreza extrema, tais como fome, diarreia, pneumonia e tuberculose. Morre-se por doenças que poderiam ser prevenidas e curadas com custo muito baixo. E eu perguntando sobre aulas on-line?

Aulas on-line? Sério?

Nas casas de alguns alunos a tecnologia não chegou. Famílias que estão na linha da pobreza extrema convivem com um enorme sofrimento diário. E podem estar em uma situação duplamente difícil ao verem suas crianças longe da escola e sem o acesso ponto-com-ponto-br.

Há uma preocupação (legítima, inclusive) sobre a qualidade dessas aulas e sobre as estratégias do ensino remoto. Buscar soluções de recursos digitais de aprendizagem, baseadas na modalidade Educação a Distância (EaD) é uma forma de não deixar a peteca cair. De minimizar a lacuna a que esse momento de pandemia nos levou. Grito! Mas o meu grito é por um plano muito bem traçado para o retorno. Por estratégias que incluam esses alunos que vivem entre a pobreza e abaixo dessa linha. Um plano que trate com dignidade os alunos que ficaram totalmente isolados. Falo de isolamento social e intelectual. Um plano justo, abrangente e factível, em especial factível para diminuir a desigualdade educacional que se agigantou nesse período sem aulas presenciais.

Ela só levantou os olhos da sacola e me olhou dentro dos olhos e me fez lembrar que ensino a distância eles sempre tiveram.

É com o ensino verdadeiro, profundo e honesto que desejo que o país se comprometa.

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Juliana Merij é pedagoga, pós-graduada em psicopedagogia clínica e institucional. Trabalha atualmente como consultora pedagógica. Atua na Educação desde 1987. Leciona ‘Didática, Ética e Trabalho Educativo’ e ‘Técnicas e Metodologias para a pós-graduação’. Fundadora e membro do ‘Lugar de Menina’ – grupo de estudos sobre o empoderamento feminino e sororidade. Autora do livro ‘Poemas para a Sala de Alma’ e do romance ‘Asas ao Coração’.