NO CORAÇÃO DAS COISAS - Coração na balança. Por Mariana Machado de Freitas.

Na semana passada, falei do coração entre pesos. Isso fez com que lembrasse do coração posto na balança, que é parte da simbologia egípcia.

Pelo que nos chega da cultura egípcia antiga, quando os mortos passavam pelo processo de mumificação, todos os órgãos eram retirados do corpo e colocados em urnas, exceto o coração. O coração deveria permanecer com o morto para que prosseguisse com ele no além. Possivelmente, o coração físico guardaria o lugar de seu símile sutil, que seguiria com a alma do morto. Não sei. A grande questão é que o coração do morto, no além, deveria ser pesado na balança, tendo por contrapeso, a pena de Maat, deusa que representava a justiça, a retidão, a verdade e que levava uma pena de ave junto da cabeça

No julgamento dos mortos, aquele cujo coração pesasse mais do que a pena tinha sua condenação. Já aquele cujo coração pesasse menos do que a pena teria sua passagem para uma excelsa morada.

Mas como pode um coração pesar menos que uma pena? O que faz pesar um coração?

No julgamento dos mortos eram feitas as confissões negativas que o morto deveria declarar de maneira honesta: 01-Eu não pequei, 02-Eu não roubei com violência, 03-Eu não furtei, 04-Eu não assassinei homem ou mulher, 05-Eu não furtei grãos, 06-Eu não me apropriei de oferendas, etc. São, no total, 42 confissões negativas.

As confissões apresentam, de modo didático, os delitos que maculavam a alma e que faziam com que o coração pesasse.

O coração bombeia e recolhe o sangue que passa por todo o organismo. Cada descarga hormonal, cada alimento ingerido, cada respiração impregna o sangue com suas impressões. Os seres humanos recebem suas impressões através dos sentidos e, a seguir, todas as reações químicas desencadeadas são impressas no sangue. E este sangue circula do coração para o coração de volta, num ciclo ininterrupto. Para os egípcios, o coração guardaria a memória de cada acontecimento e seria capaz de conter toda a história do indivíduo.

Se pensarmos em qualquer vida humana, e talvez se aplique à vida dos Faraós, mesmo sendo espécies de semideuses, é quase impossível que uma vida transcorra sem erros e sem pesos ao coração.

Existem diversos santos cristãos que cometeram pecados terríveis. Imagine o peso no coração do devasso Agostinho ou do Assassino Saulo? E, no entanto, o coração deles despojou-se dos pesos e alcançou a leveza capaz de os colocar diante de Deus.

Então, nesse exercício de conjectura, podemos pensar que o coração, sim, pesa a cada mínimo tropeço. Mas também parece certo que, uma vez que o peso seja reconhecido, existe a possibilidade de iluminação sobre a questão e a eliminação do peso.

Isso me faz pensar sobre o perdão. Na etimologia da palavra ‘perdoar’ existe o latim ‘perdonare‘ (per = completo, total + donare = dar, entregar, doar). Perdoar é entregar total e completamente a mágoa, é renunciar à ruminação da ofensa, é não guardar rancor, é estar liberto daquele sentimento que, por ser guardado dentro do coração, faz mal ao dono do coração. A pessoa que cometeu a ofensa não está sentindo a dor do rancoroso. A dor do rancor dói no coração que o carrega. Perdoar é isso: renunciar completamente àquela dor, porque quem a carrega é o seu coração. E ele dói e pesa, acumula pesos que te afastam de excelsas moradas.

Já que entrei na etimologia, uma outra palavra perfeita é ‘misericórdia’. À primeira vista, pode parecer que queira dizer ‘coração miserável, que não acumula riqueza para si’. Talvez eu já tenha ouvido algo assim. Ou sonhei. Não importa. A questão é que essa interpretação está errada. Misericórdia é formada por ‘miserere’ (sentir piedade, sentir compaixão) associado a ‘cor’ (coração). Então, significa ‘sentir piedade no coração’. Já miséria, que não tem nada a ver, vem do latim ‘miser‘, que significa ‘infeliz, desafortunado, desprezível’.

Muitas vezes, se diz que a misericórdia precisa sempre andar junto com a justiça, a justeza, a régua, porque misericórdia é facilmente confundida com permissividade. E permissividade é uma forma de abandono, de não se importar, de não carregar no coração com compaixão e piedade. Ou seja, parece ser preciso ser misericordioso de modo justo e justo de modo misericordioso. Parece uma máxima para juízes, mas a cada instante da nossa vida, a cada decisão, precisamos ser juízes de nós mesmos, não?

Uma outra palavra linda é ‘coragem’. Coragem é palavra derivada de coração, pois em outros tempos esse órgão era considerado a sede da coragem e da inteligência. E isso nos informa um pouco sobre a expressão ‘saber de cor’. Já ouviram? Não é saber de cor, cores, coloridas. É saber de cor como se tivesse um acento agudo no ‘o’ (cór). Então, saber de cor, é saber de coração. É um aprendizado tão vívido e arraigado que faz parte já da própria pessoa.

Bem, do coração na balança egípcia parece que cheguei ao coração do dicionário, o órgão que bombeia palavras.

Vou ficando por aqui. Boa semana! Até o próximo domingo!

Mariana Machado de Freitas é gaúcha, Mestre em Artes Visuais, poetisa, escritora e buscadora da essência e do coração das coisas.