MONÓLOGOS FILOSÓFICOS - Um debate para Górgias ou uma aula sobre ego.

 

Quantas vezes você imagina que um professor escuta do seu aluno ou aluna: ‘isso não acontece na vida real…’?

Eu ouvi uma, pelo menos. Apesar de ser professora de uma disciplina que se constrói no campo das ideias, carrego comigo a certeza de que posso (e devo) materializá-la para as minhas turmas, mas semana passada não deu e eu tive que concordar: eu sei que não acontece na vida real, mas isso existe ou pelo menos já existiu…

Falávamos dos Sofistas e do mundo de possibilidades que esses sujeitos trouxeram para a linguagem. De uma forma brilhante, eles mostraram como comunicar pode ser uma estrada com muitas bifurcações. Com Sócrates (o pai da Filosofia!) e os Sofistas o pensamento tomou um novo rumo. Havia agora, no século V a.C., uma ênfase na experiência humana, no domínio dos valores e no problema do conhecimento. Tais perspectivas ocorreram devido ao desenvolvimento da pólis (cidade), mais exatamente a partir do exercício da cidadania dentro dela, da opinião, da discussão, da deliberação e votação nas assembleias públicas. É a expressão da individualidade humana, cujo florescer se dá por meio do debate, que faz nascer a politika, libertando os cidadãos dos desígnios divinos e permitindo a eles tecer seu destino na ágora (praça pública).

Para dar aos jovens uma educação que os permitisse o padrão de um bom orador em suas falas públicas, substituiu-se a educação antiga dos poetas pela dos sofistas. Afinal, eram eles mestres da oratória e/ou de retórica e o bem falar e argumentar eram agora artes dignas de bons cidadãos. É nesse contexto que eles iniciam os jovens gregos em práticas indispensáveis para uma assembleia democrática. Ali, tínhamos a persuasão como arma para a defesa de posição ou opinião. Para tanto, ensinavam o valor que há em conhecer as doutrinas ou opiniões divergentes. Desse modo poderiam transmitir, a partir de uma lógica nascente e um raciocínio transparente, concepções esclarecidas capazes de driblas as teses adversárias.

Falava eu, naquele momento da aula, sobre Górgias. Sofista de um ceticismo radical resumido em três teses: 1. nada existe; 2. se alguma coisa existisse não a poderíamos conhecer; 3. se a conhecêssemos não a poderíamos manifestar aos outros.

O que ele quer dizer com isso? Perguntei aos meus alunos do 1°. ano do ensino médio, já indo a um exemplo simples para esclarecer: Se eu pedisse – para cada um aqui – que escrevesse um texto definindo quem é a colega de turma de vocês, Maria Eduarda (Duda). Podemos considerar que para cada um aqui ela seria definida de um jeito? Vocês me trariam textos diferentes, únicos sobre ela. Alguns pontos até poderiam estar em comum, mas seriam desiguais no todo. Isso acontece porque são muitas as definições que podemos ter de algo ou alguém e nenhuma delas precisa estar certa (ou errada). A Duda pode ser ou não ser todas essas leituras e isso nos traz a reflexão: há uma verdade sobre quem ela é? Para Górgias, um debate pode e deve sempre ocorrer, porque prevalecerá a melhor leitura apresentada sobre realidade.

Foi aí que a Julia falou: professora, isso não acontece na vida real… As pessoas não conversam mais e se você tenta explicar alguma coisa que elas não concordam, elas gritam. Não existe diálogo.

Eu tentei mais uma vez abordar o Górgias por outra perspectiva, mas ouvi dela num tom agoniante: isso não existe…

Entendi que era hora de dar um tempo no Górgias e coloquei: isso pode não estar acontecendo na realidade, mas por que não acontece? Sendo retórica, eu mesma respondi: porque estamos cheios de ego, cheios de vontade de fazer prevalecer o nosso ponto de vista e isso impede qualquer tipo de diálogo.

Nesse momento um aluno levantou o dedo e perguntou: professora, como a gente faz pra controlar o ego? Eu tinha a resposta no bolso (digo, no celular) – carrego comigo quase como mecanismo meditativo. Li para eles um pequeno texto intitulado ‘Armadilhas do ego’ do Mooji, professor espiritual jamaicano:

”Se você acha que é mais ‘espiritual’ andar de bicicleta ou usar transporte público para se locomover, tudo bem, mas se você julgar qualquer outra pessoa que dirige um carro, então você está preso em uma armadilha do ego. Se você acha que é mais ‘espiritual’ não ver televisão porque mexe com o seu cérebro, tudo bem, mas se julgar aqueles que ainda assistem, então você está preso em uma armadilha do ego. Se você acha que é mais ‘espiritual’ evitar saber de fofocas ou notícias da mídia, mas se encontra julgando aqueles que leem essas coisas, então você está preso em uma armadilha do ego. Se você acha que é mais ‘espiritual’ praticar Yoga, tornar-se, comprar só comidas orgânicas, comprar cristais, praticar reiki, meditar, usar roupas ‘hippies’, visitar templos e ler livros sobre iluminação espiritual, mas julgar qualquer pessoa que não faça isso, então você está preso em uma armadilha do ego. Sempre esteja consciente ao se sentir superior. A noção de que você é superior é a maior indicação de que você está em uma armadilha egóica. O ego adora entrar pela porta de trás. Ele vai pegar uma ideia nobre, como começar a fazer Yoga e, então, distorcê-la para servir ao seu objetivo de fazer-se sentir superior aos outros; você começará a menosprezar aqueles que não estão seguindo o seu ‘caminho espiritual certo’. Superioridade, julgamento e condenação. Essas são armadilhas do ego”.

Terminei de ler o texto e repeti: Superioridade, Julgamento e Condenação são as armadilhas do ego.

Achei que naquele momento eles (e eu) já tínhamos muita coisa para pensar. Encerrei a aula. Semana que vem a gente continua, disse.

Imagem por Pixabay.

Quem sou: Roberta Melo, graduada, especialista e mestre em Filosofia; professora com quase 15 anos de carreira; autora do livro ‘Ressentir ou Afirmar? Perspectivas nietzscheanas sobre a dor’, editora Appris, 2018; autora de verbetes de Filosofia na Enciclopédia virtual ‘knoow.net’; apresentadora de vídeos sobre Filosofia no canal ‘Sopro de Atena’ (https://www.youtube.com/soprodeatena).