MONÓLOGOS FILOSÓFICOS - O que a Filosofia tem a ver com as fake news?

Em toda a existência da Filosofia, esta nunca deixou de sofrer ataques dos mais diversos. Talvez o grande problema esteja ainda na primeira pergunta:

– Filosofia para quê?

Este é meu primeiro texto aqui e me prestarei a responder essa pergunta com aquilo que os olhos podem ver – uma prática. Aliás, esse será, sempre que possível, o caminho a ser seguido por mim. Afinal, comunicar é preciso! Com clareza, precisão e, principalmente, com ética!

No ano de 2018, em meio às escandalosas fake news, idealizei uma proposta de trabalho na qual a Filosofia poderia nos mostrar o quanto ainda fazemos mau uso da razão, como diria nosso querido René Descartes. As notícias falsas divulgadas nos meios de comunicação, comumente chamadas de fake news, são escritas e publicadas, na maioria das vezes, com a intenção de enganar, obter ganhos financeiros ou políticos. As manchetes costumam ser sensacionalistas, exageradas ou evidentemente falsas. Na prática, o que vemos é a distribuição deliberada de desinformação ou boatos e a completa falta de compromisso com a verdade. Mas onde entra a Filosofia nisso tudo?

Havia combinado com as minhas duas turmas do 2°. ano do ensino médio que faríamos, ao longo do 1°. trimestre, pequenos testes semanais referentes aos conteúdos do período. Quando corrigi o teste referente a Descartes tive a clara percepção de que não fazia sentido para a vida deles obter simplesmente informações sobre o método cartesiano ou o que significava o conceito de gênio maligno. Então resolvi dividir com as turmas a minha angústia e propus um trabalho prático que desse sentido ao que tínhamos estudado em sala.

A proposta de trabalho

Foi assim que apresentei a ideia: René Descartes criticou tudo aquilo que aprendeu na escola porque sentia que não repousava em fundamentos ou princípios sólidos. Pelo contrário, limitava-se a propor conhecimentos apenas verossímeis, ou seja, só aparentemente verdadeiros – não fornecia nenhuma certeza. Portanto, para se fundar na certeza, o conhecimento deveria começar pela busca de princípios absolutamente seguros.

Para Descartes, o homem possui condições inatas para chegar a tais princípios, já que é um animal racional, possuidor de uma igualdade de bom senso ou razão. Portanto, todos temos a capacidade de bem julgar e de discernir o verdadeiro do falso. Porém, nem todos os homens utilizam corretamente a razão e o seu mau uso os remete ao erro.

O ponto de partida cartesiano para o problema do conhecimento é a aplicação de um método seguro que permita conduzir bem a razão para o alcance da verdade nas ciências. Propõe assim um método que nos permita conhecer o maior número possível de coisas, com o menor número possível de regras. Descartes estabeleceu um método universal, inspirado no rigor da matemática e no encadeamento racional. Elaborou para isso quatro regras:

– Regra da evidência. Jamais aceitar algo que não seja intuitivamente evidente. Devemos evitar toda precipitação e todo preconceito, aceitando apenas aquilo do qual não posso duvidar;

– Regra da análise. Dividir o problema em partes para melhor resolvê-lo;

– Regra da síntese. Ordenar meus pensamentos, de forma que parta dos problemas mais simples aos problemas de difícil resolução;

– Regra da enumeração ou desmembramento. Fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais que se tenha a certeza de nada ter omitido.

Diante do cenário atual em que a noção de verdade se diluiu entre opiniões e mentiras e com o propósito de aplicar a teoria filosófica de Descartes à vida cotidiana, pesquisem TRÊS notícias, de cunho duvidoso/polêmico, divulgadas nas redes sociais dos integrantes do grupo (3 ou 4 membros); apliquem as quatro regras do método cartesiano para a verificação da autenticidade das notícias e republiquem a notícia na rede com a análise feita pelo grupo. O resultado final deve ser apresentado, em formato de seminário, apresentando as fases anteriores com destaque para as fotos (prints) das notícias escolhidas publicadas na rede social e para as fotos do resultado da aplicação do método na mesma rede social, cuja notícia foi retirada. Tanto as fotos das notícias como dos resultados devem fazer parte da apresentação do seminário.

O resultado

Eles gostaram da ideia, mas ao longo do processo ficaram inseguros quanto a aplicação do método, o que nos rendeu várias discussões sobre as notícias que traziam. Expliquei o trabalho a partir de vários modelos de investigação (outros sites de notícias, livros, pesquisas acadêmicas) e os acalmei sobre como ‘amigos’ de suas redes receberiam as análises feitas por eles. Fiz questão de ressaltar que o que importa é a verdade de uma notícia e não a opinião enganosa que agrada.

Quando os resultados começaram a ser postados na rede, sem que houvéssemos combinado, eles foram marcando o meu perfil nas postagens e foi muito gratificante ver pais, amigos (meus e deles) percebendo o valor e a importância daquele trabalho tão esclarecedor.

No final do processo, todos aprendemos – a pesquisar e avaliar antes de repassar notícias; que existem infinitas formas de dar a aparência de verdadeira a uma notícia falsa e que quando nos dispomos a pensar um pouco sobre nossas ações tornamos este mundo um lugar melhor.

Abraço!

Quem sou: Roberta Melo, graduada, especialista e mestre em Filosofia; professora com quase 15 anos de carreira; autora do livro ‘Ressentir ou Afirmar? Perspectivas nietzscheanas sobre a dor’, editora Appris, 2018; autora de verbetes de Filosofia na Enciclopédia virtual ‘knoow.net’; apresentadora de vídeos sobre Filosofia no canal ‘Sopro de Atena’ (https://www.youtube.com/soprodeatena).