Gusttavo Lima, Anitta e a Lei Rouanet. Por Raquel da Cruz.

Nas últimas semanas, escrevendo um artigo para uma disciplina do meu mestrado, entrei em contato com dois autores que finalmente me fizeram entender algo que eu queria poder explicar faz muito tempo.

Morin e Cyrulnik me ensinaram que a vantagem que separa o ser humano de todos os outros animais é a habilidade de contar histórias. Eles não dizem isso com essas palavras, mas, no final, essa é a conclusão. Vou explicar melhor. O ser humano tem a capacidade de criar uma virtualidade, isto é, algo que simboliza a realidade, para que a disseminação de certas técnicas possa ser passada de indivíduo para indivíduo com mais facilidade. Esta transmissão de conhecimento, então, cria uma coletividade que chamamos de cultura. Vamos pensar, por exemplo, no homem primitivo que acabou de descobrir a agricultura. É mais fácil para ele usar sinais, reconhecidos por todo o grupo do qual faz parte, para explicar a seus pares como cultivar a terra. Sem esses símbolos, este conhecimento ficaria restrito. Assim, conforme descobrimos as palavras e procedimentos mais complexos como a imprensa, os meios de comunicação de massa e as redes digitais, estamos, na verdade, descobrindo atalhos para dar significado à vida. É por meio destas virtualidades que conseguimos registrar nossos hábitos, costumes, valores e construir uma memória.

Também é importante dizer que essa representação, esses símbolos, podem ser concretos, como no caso do registro das técnicas que permitiram o desenvolvimento da agricultura, ou bens abstratos, como no caso da arte. As manifestações artísticas são capazes de criar uma magia a ponto de estimular a imaginação. A imaginação, portanto, é o que alimenta o sonho e a construção de utopias. Por consequência, o sonho e a utopia geram esperança. E, finalmente, a esperança é o que nos faz nos movermos.

Esses autores que mencionei ainda dizem que é na infância que aprendemos, com a nossa família, os padrões da sociedade em que nascemos. Na adolescência, experimentamos, recombinamos e criamos novos padrões. Já, na vida adulta, temos condições de transmiti-los, formando um ciclo de aprendizagem. Se formos olhar pela Filosofia, pela Teoria do Caos, poderíamos dizer que a humanidade se faz na ordem e na desordem que é a cultura.

Por que estou contando isso? Para dizer que cultura, educação e política fazem todas parte de um mesmo processo. E que, por mais que tendamos a tratar a cultura como apenas sua mercantilização – o que numa sociedade capitalista é até certo ponto legítimo – ela é muito mais do que isso. Ela é um instrumento de defesa e conquista de interesses. Qualquer interferência no processo virtualização / imaginação / sonho-utopia / esperança / ação modifica diretamente as escolhas políticas de um indivíduo. Não é à toa que vemos em muito projetos políticos a tentativa de retirar o direito de virtualização e de imaginação das pessoas. Assim, quando políticas públicas não garantem nem o mínimo ao cidadão ao mesmo tempo em que destroem o acesso à cultura, o que se pretende é a impossibilidade de participação na vida pública.

Imaginação, criatividade, não são luxos apenas do Brasil de 2022. A própria ideia de ócio, na Antiguidade, já defendia a noção de que esses itens deveriam ficar restritos a poucos. Era assim que se legitimava a escravidão, por exemplo. Afinal, para o pensador ficar livre para o ócio era necessário que alguém cuidasse da casa, da prole, do alimento, do dinheiro…

Mas… o que isso tem a ver com o título deste texto? De novo, tudo! Porque a cultura é a representação simbólica de um povo e porque ela garante a participação cívica, o poder público deve ter programas específicos para garantir sua existência. Há vários modelos ao redor do mundo. Aqueles que a tratam em paridade com a saúde, a educação, a infraestrutura; aqueles que incluem a iniciativa privada; aqueles que incluem vários setores para tomar decisões…

A Lei Rouanet, e aqui chegamos ao ponto principal, era um projeto que envolvia algumas dessas questões. Vou explicar aqui e daí, no final, você decide se era desvio de dinheiro público e se realmente há “mamateiros”. Para quem quiser, o link para o texto na íntegra é este: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8313cons.htm

O Fundo Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), como é o nome oficial da Lei Rouanet, prevê as três formas. De acordo com o texto legal: “captação e canalização de recursos por meio de três mecanismos”.

O primeiro, é Fundo Nacional da Cultura (FNC), um incentivo feito diretamente pelo Estado à Cultura, por meio de orçamento da União. É destinado, por meio de editais de seleção, a projetos com maior dificuldade de captação pelo mercado, ou seja, que por causa da pouca visibilidade midiática dos bens/artistas envolvidos, provavelmente não receberiam a atenção de grandes empresas. De acordo com o Portal da Transparência, site do Governo Federal, até o dia em que eu escrevo este texto (20/06/2022), foi gasto com o FNC um total absoluto de ZERO reais no ano de 2022 de uma despesa prevista em R$ 1,63 bilhão. Os dados de 2018 para cá, que é o disponibilizado pelo sistema, também não são nada animadores.

A segunda forma de incentivo é pelo Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart). Esta aqui é uma parte muito interessante da lei porque permite a construção de um fundo de captação no mercado financeiro, com o intuito de selecionar projetos com alta viabilidade econômica. Ele prevê lucro ao investidor e, se for o caso, o Estado pode “emprestar” dinheiro a grandes produções que devolverão uma porcentagem.

A terceira forma é o incentivo fiscal e o mecenato, propriamente como percebemos a Lei Rouanet. Neste caso, parte do Imposto de Renda que uma empresa ou pessoa física pagaria à União é redirecionada a projetos culturais da escolha do próprio contribuinte. O principal problema dessa modalidade é que há a tendência de se financiar artistas já conhecidos no mercado, deixando de fora a produção local. Aliás, como já mencionei, o FNC funciona para minimizar esta questão.

A Rouanet não é a única que incentiva a cultura. Há outras, como a do Lei do Audiovisual e, durante a pandemia, por exemplo, foi aprovada a Lei Aldir Blanc para assegurar que trabalhadores da cultura não perdessem renda com o fechamento e as restrições do setor. A Lei da Meia-Entrada é destinada a um público específico, mas também garante a venda de ingressos a preços mais acessíveis. É possível também que os estados da federação criem suas leis próprias de incentivo à cultura, como é o caso de São Paulo. Aliás, houve uma época em que havia um Vale-Cultura. Lembram disso? Trabalhadores recebiam um auxílio para gastar com livros e ingressos numa parceria de isenção fiscal com o Governo Federal. Isso foi durante o Governo Dilma.

A cultura, enquanto um mercado, também é conhecida por ser lucrativa e por movimentar várias camadas de trabalhadores. Do pipoqueiro à camareira, esta é uma cadeia altamente produtiva e que precisa ser aquecida por toda a sociedade. É preciso que as pessoas sejam estimuladas a frequentar museus, feiras, teatros, cinemas, estádios e que todos esses ambientes oferecem uma gama variada de atrações. A palavra “variada” aqui, está sendo usado como sinônimo de diversidade. Pois, como já falei em um texto anterior, todas as formas e manifestações culturais são bem-vindas. Aliás, também queremos pluralidade para garantir que os padrões sociais sejam recombinados.

Quando um artista diz que prefere receber “dinheiro do povo”, ele advoga contra sua própria classe. Da mesma forma, quando apoia governos que desmantelam os setores criativos. Em situações como esta, do que a cultura mais necessita é transparência. Mais do que isso, precisa de operadores que lutem por ela e pelos valores que a virtualidade de suas narrativas dissemina. A cultura, em sua essência, pressupõe subversão, e é na arte que encontramos a possibilidade desta ação. Só assim seremos capazes de continuar evoluindo.

Ah! O que isso tem a ver com a Anitta? A maneira com qual escolhemos ver as mulheres e determinar qual o lugar delas na sociedade é uma construção cultural. Então, talvez já até tenhamos passado da hora de recuperarmos nossos espíritos jovens e reorganizarmos os padrões culturais.

Imagem: Pexels / Vishnu R. Nair.

Raquel da Cruz é mestranda do PPGCOM / Unesp e bacharela em Comunicação Social – Relações Públicas pela UEL. Concluiu sua especialização pelo GESTCORP da ECA-USP. Tem interesse em assuntos que envolvem relações públicas, celebridades, fãs e letramento transmídia.