DIVERSIDADE E INCLUSÃO NAS EMPRESAS - A narrativa que destrói, mas seguimos fortes! Por Jovanka de Genova.

Um dos casos mais chocantes noticiados pela imprensa nas últimas semanas foi o dos trabalhadores resgatados em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, que estavam vivendo em situação análoga a escravidão em vinícolas da região da Serra Gaúcha. Isso aconteceu no final de fevereiro, quando um grupo de 200 homens – em sua maioria negros e vindos da Bahia – foram encontrados nesta realidade. Apesar do horror que isso possa parecer para muita gente, ainda há outras que seguem com discursos xenofóbicos e racistas sobre esses e muitos outros casos que vivenciamos dia após dia.

Confesso que ainda tenho esperança de não ter que ouvir ou ler mais esse tipo de notícia de pessoas preconceituosas. Também gostaria de não vivenciar falsas promessas de trabalhos justos, moradia e refeição para trabalhadores que buscam apenas o seu sustento. Pessoas que buscam sobreviver diante da crise econômica que vivemos atualmente, principalmente após a pandemia de Covid-19. Pessoas que precisam, porque não há outra escolha, se submeterem a esse tipo de situação. Mas em troca, são colocadas em lugares sem qualquer condição básica de uma vida saudável. É humilhante e parece não ter fim.

São trabalhadores que foram levados ao pior lugar que um ser humano pode chegar, que é ser destratado por ser quem é. Por serem negros, pobres e nordestinos. Pessoas que foram contratadas para trabalhar, mas foram julgadas e escravizadas. Deixaram seus lares, famílias e amigos para serem maltratados longe de casa. Tudo isso parece muito improvável de acontecer em pleno 2023. Debatemos tanto sobre boas formas de trabalho, de lidar com funcionários, de ter empatia, de trazer diversidade para dentro das empresas, do ambiente de trabalho. Mas parece que nossa conversa ainda está restrita a um grupo de pessoas, porque casos como esse ainda existem no Brasil e não param de nos chocar.

E o que a gente espera, quando situações como essa são descobertas, é que os empregadores, o poder público e os políticos saiam em defesa dos trabalhadores. Oras, são eles que estão sendo tratados desta forma inadmissível. Mas são eles que são os julgados. Vamos a alguns fatos. O Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CICBG), diante deste cenário, culpa sistemas assistencialistas, como o Bolsa Família, pela falta de mão de obra na região, o que acaba deixando muitas pessoas inativas e possibilitando que outras, de outros estados, principalmente, sejam colocadas nesta situação de escravidão. Apesar de condenar esse tipo de atitude das vinícolas, o CICBG não respeitou os trabalhadores que ali sofriam, não tentou resolver o problema onde ele existe. Mas culpou os pobres, aqueles que quase não têm escolhas e são submetidos a situações extremas.

Todo esse ideal xenofóbico de que pobre e nordestinos são preguiçosos, também está na fala do vereador de Caxia do Sul, Sandro Fantinel. Sim, um homem público que, entre suas tantas obrigações e atividades, tem o dever de zelar pela defesa e bem-estar dos indivíduos de seu município. De acordo com ele, os empresários da região sul não deveriam mais contratar “gente lá de cima”, pessoas que estão acostumadas a viver na praia e tocar tambor. Ele completa sugerindo que esses mesmos “empregadores” contratem argentinos, que são mais limpos e mais corretos. O que não me parece correto é ele fazer discursos deste teor, ainda mais pela posição que ocupa.

A sensação que tenho é que seguimos vivendo no século XIX, em que negros eram escravizados e que, mesmo depois de conquistarem sua liberdade, não tiveram condições de se estabelecerem como trabalhadores formais, como os brancos eram. Afinal, oportunidades são dadas aos montes para os brancos e descendentes de europeus. Aos negros e pobres, é dada a escravidão. Isso é desde muito tempo. Conseguem ver a semelhança no discurso e na história? Vamos a alguns números que podem deixar mais claro tudo isso. Apesar do trabalho escravo ter sido abolido desde 1888, em 2022, 2.575 pessoas foram resgatadas em situações análogas a escravidão. Isso em 16 dos 20 estados em que ocorreram ações.

Os dados foram divulgados pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego e revelam ainda que, desses trabalhadores, 92% eram homens, 51% residiam na região nordeste e outros 58% eram naturais dessa região. 83% deles se autodeclararam negros ou pardos e 15% brancos e 2% indígenas. Esses são números que deixam evidente que o trabalho análogo a escravidão tem um público padrão, uma parcela da sociedade mais vulnerável. Não aconteceria com qualquer um, não aconteceria com o Sandro ou com os funcionários do CICGB, por exemplo.

Apesar de ter sofrido prejuízos, como a expulsão do partido e, mais recentemente, indiciamento pelo crime de racismo, o vereador ainda tem espaço de defesa, tem a chance de se defender e lutar pelos seus direitos. Teve a chance de se desculpar, dizer que teve um lapso mental que o fez reproduzir uma fala xenofóbica do início ao fim. E mesmo depois disso tudo, se for considerado culpado, ainda é pouco comparado ao que esse tipo de discurso é capaz de destruir. Quantos sonhos, famílias e vidas o preconceito não pode acabar?

E isso não está apenas em cidades do interior ou na área rural. Essas ideias xenofóbicas estão presentes quase que no cotidiano de todos os brasileiros. Estão no trabalho e nas relações pessoais. Nas relações de poder e nas tomadas de decisões. E o motivo disso tudo é falta de empatia, de reconhecer aquele que vem de outro lugar como um igual. Um sentimento que está em falta entre nós, mas que lutamos diariamente, se for preciso, para que essa situação mude e a gente não precise mais nos conformar com isso.

Fontes:

https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/noticias-e-conteudo/trabalho/2023/janeiro/inspecao-do-trabalho-resgatou-2-575-trabalhadores-de-trabalho-analogo-ao-de-escravo-no-ano-passado

– https://radiocaxias.com.br/portal/noticias/policia-civil-indicia-vereador-sandro-fantinel-por-crime-de-racismo-146960

https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/02/trabalho-escravo-vinicolas-no-rs-culpam-assistencialismo-por-falta-de-mao-de-obra.ghtml

Jovanka de Genova é educadora e gerente de educação, com mestrado em Educação, Arte e História da Cultura, e com mais de 17 anos de atuação na área de comunicação organizacional e educação corporativa, em especial na gestão de cursos e soluções educacionais. No LinkedIn: www.linkedin.com/in/jovankadegenova.