COMUNICAÇÃO ACESSÍVEL E SEM FRONTEIRAS - Estamos vivendo a era do totalitarismo digital. Por Bruna Ramos da Fonte.

O ano era 2009 e eu estava finalizando a biografia do compositor Roberto Menescal quando conheci o escritor Paulo Coelho sem saber que, nos anos que se seguiriam, ele assinaria os prefácios de dois livros meus. Fazia pouco tempo que o Facebook havia chegado ao Brasil e a rede ainda não tinha conquistado o número de usuários que conquistaria ao longo dos anos – já que ainda éramos usuários fiéis do Orkut. Eu mesma nunca tinha ouvido falar em Facebook até o dia em que o Paulo pediu para que fizesse uma conta na rede para nos falarmos com mais facilidade. Me lembro que ainda não era uma rede de navegação intuitiva como é hoje, e passei algumas boas horas em frente ao notebook criando uma conta e inserindo um conteúdo mínimo na minha página para então me conectar com ele. Como o Facebook ainda era uma novidade no mundo inteiro, Paulo tinha apenas algumas dezenas de amigos no seu perfil pessoal que, posteriormente, se converteria em uma página oficial e, ao longo dos anos, acumularia quase trinta milhões de seguidores e impossibilitaria completamente aquela interação que tínhamos no início. Olhando para trás, confesso que, naquele momento, eu não imaginava que, em pouco mais de uma década, a nossa vida seria tão conectada ou que seríamos tão dependentes das redes.

Mais de uma década se passou e o Facebook hoje é a rede que acumula o maior número de usuários ativos no mundo inteiro. Ainda que no Brasil – onde a rede campeã em número de usuários é o YouTube, um dado que nos diz muito sobre o comportamento do consumidor e do público brasileiro –, muitos usuários ativos ou ex-usuários insistam em dizer que o Facebook está morrendo ou “respirando por aparelhos”, não é isso o que nos diriam os profissionais autônomos, empresas e empreendedores que dependem da existência da rede para a comercialização de produtos ou para a manutenção dos seus negócios e networks. Mas, ainda que fosse essa a realidade e o Facebook enquanto rede social estivesse com os seus dias contados como aconteceu com o Orkut, precisamos nos lembrar de que não se trata apenas de uma rede social, mas sim de um conglomerado – Facebook Inc. – ao qual pertencem diversas redes sociais, incluindo Instagram, WhatsApp e Messenger. Portanto, não é exagero dizer que a empresa fundada por Mark Zuckerberg hoje detém – em escala mundial – um número infinitamente maior de informações do que qualquer governo ou agência de serviço secreto um dia sonhou ter nas mãos; informações capazes de mudar completamente o rumo dos acontecimentos ao redor do mundo, definir resultados de eleições e manipular as massas justamente com aquele elemento que os governos totalitários costumam combater: oferecendo liberdade de expressão. Ou melhor, nos oferecendo a sensação de estarmos exercendo essa liberdade na sua plenitude, sem nos darmos conta de que, a forma como nos movimentamos nas redes, acontece de forma assistida e monitorada. Essa pseudoliberdade de expressão nada mais é do que uma grande pegadinha, na qual caímos voluntariamente cada vez que fornecemos uma nova autorização de acesso a um simples joguinho, por exemplo.

Podemos dizer – sem medo de errar – que os nossos computadores e smartphones nos conhecem muito melhor do que qualquer pessoa que conviva conosco uma vida inteira; eles sabem dos nossos hábitos e preferências do início ao fim. São tantos os aplicativos que adotamos para “facilitar o nosso dia a dia” e, sem perceber, constantemente fornecemos dados valiosos que desenham os nossos perfis enquanto consumidores e cidadãos – tanto na instância individual quanto coletiva. O seu smartphone hoje sabe o quanto você dorme, o quanto come ou até se pratica atividade física; ao coletar seus dados e monitorar o seu comportamento, ele está sempre pronto para oferecer justamente aqueles produtos ou serviços que você precisa de forma personalizada para atender as suas necessidades. Muitos ainda não se deram conta deste fato e, frequentemente, vejo pessoas surpresas questionarem como os seus smartphones “adivinharam” que estavam precisando desse ou daquele item. Itens estes que acabam consumindo – muitas vezes sem que haja nenhuma necessidade –, pois, acostumados a dividir a nossa atenção com diversas telas de forma simultânea – já que, quando chega o final do dia e estamos em casa, é bastante comum nos vermos conectados à televisão, computador e smartphones ou tablets ao mesmo tempo –, a nossa atenção difusa faz com que passemos a agir de forma impulsiva, favorecendo assim a compra de objetos, serviços ou ideias sem que haja qualquer tipo de reflexão prévia.

Nesses anos que nos separam da criação da minha primeira conta no Facebook, observo o quanto tudo o que vivemos gradativamente nos convidou a trocar o físico e palpável pelo digital – como o cartão do seu banco, por exemplo, que saiu da sua carteira de couro direto para a wallet do seu smartphone. E não é só isso: quantos aparelhos, acessórios ou suportes físicos e impressos os nossos smartphones substituíram ao longo do tempo? Agenda, calendário, índice telefônico, relógio, rádio-relógio, cartões de crédito, bilhetes de embarque, caixa eletrônico, calculadora, bloquinho de anotações, dinheiro em espécie, rádio, gravador de voz, câmera fotográfica, mapas: todos esses itens juntos hoje cabem na palma da nossa mão. Mas só quem já teve o seu celular danificado ou roubado conhece a frustração que experimentamos ao perceber que toda a nossa vida está centralizada naquele aparelhinho; é como se você perdesse o passaporte para o seu próprio mundo, pois sem ele não trabalhamos, não nos comunicamos e não compramos.

Em um mundo que gira em torno de uma conexão com a internet, basta uma queda na rede que a vida paralisa: você vai a um supermercado e mesmo com milhares de produtos à venda nas prateleiras e dinheiro disponível na conta, não pode comprar nada porque “o sistema está impossibilitado de processar a venda”. Por essa razão, penso que hoje se torna cada vez mais urgente buscar um equilíbrio entre o analógico e o digital, para que tenhamos sempre que possível um plano B que não dependa de conexão. É ter a hora no celular, mas não deixar de usar o seu relógio no pulso; é ter a sua wallet digital, mas não deixar de andar com algumas moedas para o parquímetro; é ter a sua agenda no celular, mas não deixar de anotar aquilo que é importante na sua agenda anual de papel. Realmente acredito que é isso o que está nos faltando para que possamos caminhar nesse mundo digital com mais segurança e tranquilidade, sem nos deixarmos levar completamente por este território sedutor que é a nossa sociedade em rede.

No conto de Hans Cristian Andersen – “A roupa nova do Rei” – um bandido se passa por alfaiate e cobra uma fortuna para tecer para o Rei uma roupa que, supostamente, apenas as pessoas mais inteligentes conseguem ver. Com este discurso, ele convence a todos – que se deixam manipular para não parecem menos inteligentes –, que confirmam a beleza de uma peça de roupa que não existe. Ao acreditarmos que, ser inteligente é estar inteiramente conectado e conceder sem pensar todas as permissões de acesso à nossa privacidade que o tempo inteiro nos são solicitadas, cometemos o mesmo erro deste Rei e da sua corte. O nosso grau de dependência da conexão passou dos limites e já estamos começando a pagar um alto preço por isso: o preço de nos tornarmos voluntariamente servos deste Estado digital que não podemos enxergar, mas que está infiltrado em todos os nossos poros.

Bruna Ramos da Fonte é biógrafa, escritora, fotógrafa ensaísta, professora e palestrante. Especialista em Leitura e Produção Textual com Aperfeiçoamento em Psicanálise Clínica e MBA em Jornalismo Digital, é criadora da sua própria metodologia no campo da Escrita Terapêutica. É autora de diversos títulos, incluindo “Escrita Terapêutica: um caminho para a cura interior” (Letramento, 2021) e as biografias de Sidney Magal e Roberto Menescal. Visite: www.brfonte.com