COMUNICAÇÃO ACESSÍVEL E SEM FRONTEIRAS - As artes não têm fronteiras: sobre Charles Aznavour e a minha busca pelas mais diversas linguagens artísticas. Por Bruna Ramos da Fonte.

No final da década de 1940, Edith Piaf presenteou Charles Aznavour com uma Super-8 que passou a acompanhá-lo nas suas viagens e turnês pelo mundo. Durante décadas, ele filmou cenas da sua própria rotina familiar e do dia a dia daqueles lugares que visitava até que, no final de sua vida, decidiu compartilhar aquele material que permanecera guardado durante tanto tempo com o cineasta Marc di Domenico, com a intenção de converter aquelas cenas soltas em um filme que contasse a sua história através do seu próprio olhar. O resultado é o belíssimo “Aznavour por Charles” (França, 2019), um mergulho na mente e no coração deste que foi um dos maiores artistas do século XX. Construído a partir da combinação entre as imagens captadas pelo artista e pensamentos seus extraídos de anotações pessoais e entrevistas concedidas ao longo da sua carreira – com narração do ator Romain Duris –, logo nos primeiros minutos do filme, uma frase de Charles resume e justifica a pluralidade da sua arte: “Às vezes, o presente é como um tapa na cara, não dá tempo de transformá-lo em palavras ou em música. E é a câmera que o capta melhor”.

Peço licença para me apropriar desta frase, pois acredito que seja a melhor definição para o meu trabalho, capaz de traduzir com propriedade a minha relação com palavras, música, fotografia, cinema e dramaturgia. Como herança do pensamento da Primeira Revolução Industrial – que segregou áreas que até então habitavam o mesmo universo –, tendemos a observar o mundo de forma parcial e limitada, acreditando que os elementos que compõem as nossas vidas – e, consequentemente, a arte e os discursos que produzimos – vivem em mundos distantes. Mesmo nós que somos artistas e comunicadores, por vezes nos esquecemos de que, no final das contas, as mais diversas linguagens às quais temos acesso estão integradas e se complementam, pois cada uma delas tem a capacidade singular de expressar facetas de uma mesma ideia, e é a combinação destas facetas o que enriquece o resultado final do nosso trabalho. É como a dinâmica do jornalismo no contexto do mundo digital: ao ler uma notícia na página de um veículo de comunicação online, temos uma matéria escrita que descreve os fatos e ativa a nossa imaginação na composição daquele cenário no qual o fato se deu. Mas é a presença de uma galeria de fotos o que faz com que sejamos capazes de visualizar com precisão a dimensão dos fatos narrados em palavras. Ao mesmo tempo, é a presença de um vídeo registrado por um jornalista amador, por exemplo, o que confere movimento, som e voz àquela notícia que estamos lendo. Assim, uma linguagem não anula a outra, pelo contrário: elas se complementam e enriquecem a informação inicial que, sem esta hipertextualidade, definiria aquele acontecimento de forma superficial e empobrecida.

Quando criança, meu sonho era ser cantora e escritora. Sonhava com o dia em que cantaria as minhas próprias canções, mas a timidez me fez parar de cantar e trocar a minha própria voz pelo som do piano e pelas palavras silenciosas gravadas nas páginas dos livros que escrevi. Porém, ao longo dos anos aprendi que escrever e lançar livros pode ser uma atividade extremamente angustiante, devido à demora que envolve as etapas da criação literária e publicação: da ideia inicial até a conclusão do processo de escrita e revisão alguns anos podem se passar. E quando o livro enfim está pronto se inicia uma nova saga em busca de uma editora que possa se interessar por aquele projeto. Com isso, não é raro que o autor leve cinco, dez ou quinze anos para ver uma ideia chegar às prateleiras das livrarias. É por esta razão que hoje oriento meus alunos a desenvolverem outras atividades em paralelo à escrita, para que não vivam integralmente a angústia da demora que está inevitavelmente associada a este processo. No início da minha carreira como biógrafa, passei alguns anos focada quase que exclusivamente na escrita, pois acreditava que, naquele momento, precisava me dedicar inteiramente àquela prática a fim de desenvolvê-la com propriedade. Mas, deixar outros projetos de lado e restringir a minha expressão artística ao campo da escrita me conduziu a um quadro de ansiedade como nunca antes havia experimentado e, com isso, aprendi que este seria um caminho extremamente prejudicial para a minha mente de natureza ansiosa. Foi nesse momento que a fotografia – uma prática que me acompanhava desde criança, mas sempre desenvolvida de forma muito esporádica e descompromissada – passou a fazer parte do meu dia a dia, ocupando um espaço novo na minha vida e atuando como o ponto de equilíbrio que eu tanto precisava naquele momento.

A fotografia e o vídeo fizeram parte da minha rotina desde cedo: minha mãe sempre gostou muito de fotografar e registrar os nossos momentos em família. Me lembro muito dela preocupada em comprar filmes, da surpresa que era abrir o pacote com fotografias reveladas e das tardes que ela passava organizando álbuns e negativos. A relação dela com a sua câmera era tão próxima que, quando se separou do primeiro marido, teria sido capaz de deixar tudo para ele no divórcio – menos a câmera que um colega de trabalho havia trazido para ela dos EUA e que acabou se tornando um entrave no momento da separação dos bens. Ao mesmo tempo, meu pai sempre gostou de fotografar a natureza e eu me lembro dele – em uma época na qual os recursos eram muito mais escassos – colocando peneiras e outros objetos acoplados na lente para testar diferentes efeitos e texturas nas fotografias que fazia e, com isso, me ensinou a desenvolver a criatividade e a trabalhar sempre em busca de extrair o máximo possível dos recursos em mãos. Me lembro também dele com a sua JVC sempre apoiada no ombro, e é graças a isso que hoje temos registros belíssimos dos nossos aniversários, nascimentos e batizados. E, pensando melhor sobre a presença da fotografia na minha família, acredito que também existe algo de muito simbólico no fato de que, o único objeto pessoal do meu avô paterno – Alvaro, que morreu muito antes do meu nascimento – que chegou às minhas mãos foi uma Hit – uma câmera espiã de fabricação japonesa com cinco centímetros de comprimento – e, das poucas coisas que sei sobre o meu avô, posso afirmar com segurança que ele era um apaixonado por câmeras e fotografias.

Apesar de ter crescido cercada por câmeras e rolos de filme, nunca pensei em trabalhar com a fotografia e fotografar era algo que eu fazia poucas vezes por ano, principalmente durante as férias que passávamos no sul de Minas Gerais entre vacas, galinhas-d’angola e cafezais. Mas, naquela tarde em 2010, eu estava em reunião com a gerência de uma livraria na qual aconteceria o lançamento de um dos meus livros e, em um dado momento, alguém na mesa se encantou com a fotografia de fundo do meu celular. Quando descobriram que eu era a autora daquela fotografia, imediatamente fui convidada para expor o meu trabalho na galeria da loja. Após o início da exposição, alguns jornalistas que frequentavam aquele espaço começaram a publicar espontaneamente sobre o meu trabalho e foi assim que uma série de convites começaram a acontecer: me tornei uma das primeiras fotógrafas com exclusividade Sony no Brasil, assinei um contrato de colaboração com a Getty Images e tive a oportunidade de expor o meu trabalho em todo o Brasil e no exterior. A minha história com a fotografia é uma das passagens mais interessantes da minha vida, pois nunca foi algo que busquei, mas que aconteceu com muita naturalidade, a partir de uma aptidão que herdei da minha família. E foi assim que a fotografia se tornou uma segunda atividade profissional que, além de ter me resgatado daquela angústia que a literatura estava causando, me rendeu convites inimagináveis e me levou a conhecer pessoas e lugares inesquecíveis. E é claro que, com isso, a minha escrita também se enriqueceu bastante, pois vivi experiências que, quando não registradas em imagens, se converteram em textos, poemas e músicas.

Me sinto muito confortável em saber que tenho diversas linguagens à minha disposição para expressar as ideias, pensamentos e sentimentos que povoam a minha mente e o meu coração. Na hora de criar, uma linguagem se combina e se entrelaça à outra – como inevitáveis extensões que são de si mesmas –, na criação de uma arte cada vez mais rica, profunda e expressiva. E é em nome dessa mesma arte – através da qual me comunico com o mundo ao meu redor – que estou sempre em busca de novas linguagens e possibilidades. Aliás, recentemente senti que havia uma voz presa na minha garganta e decidi, enfim, deixar a timidez de lado e resgatar aquele longínquo sonho de cantar as minhas próprias músicas, o que tem sido uma experiência encantadora.

Penso que, para quem tem muito a dizer, uma única linguagem nunca será suficiente. Além do mais, existem situações e sensações tão profundas que se tornam impossíveis de serem expressas de forma limitada e, neste caminho, se torna essencial pedir o auxílio de outras linguagens que se complementem e formem um mosaico de cores, sons, letras e formas que originalmente nasceram para orbitar no mesmo universo. Afinal, as artes não têm – e nunca tiveram – nenhum tipo de fronteira: somos nós que temos esse hábito de construir muros em lugares onde a superfície deveria ser plana e acessível.

Alvaro, meu avô paterno, fotografando sua mãe com uma Toyocaflex na década de 1960.

Imagem: Bruna Ramos da Fonte / Alvaro Ramos da Fonte

Bruna Ramos da Fonte é biógrafa, escritora, fotógrafa ensaísta, professora e palestrante. Especialista em Leitura e Produção Textual com Aperfeiçoamento em Psicanálise Clínica, é criadora da sua própria metodologia no campo da Escrita Terapêutica. É autora de diversos títulos, incluindo “Escrita Terapêutica: um caminho para a cura interior” (Letramento, 2021) e as biografias de Sidney Magal e Roberto Menescal. Visite: www.brfonte.com