A resposta poderia ser muito simples: agora é hora de voltar à vida normal! No entanto, não é bem assim. Dia 19 de maio foi a data oficial para a reabertura da cidade após um ano e meio de confinamento. O que nunca poderia se imaginar aconteceu em 2020: a cidade que nunca dorme precisou se recolher.
As luzes da Times Square ficaram sem o olhar encantado dos turistas, os palcos da Broadway sem os aplausos após cada espetáculo, os parques vazios e silenciosos, as ruas sem o trânsito insuportável de carros e táxis disputando espaço. A cidade foi o epicentro no país. O coronavírus infectou mais de 202.319 pessoas na cidade de Nova York e a cidade relatou 16.992 mortes confirmadas, bem como 4.760 mortes prováveis, de acordo com o departamento de saúde da cidade (1).
Com a mudança de presidente os efeitos foram notórios – quase que imediatos – em algumas cidades do pais. A vacina veio e ainda há muita gente para vacinar, assim como muitos já foram vacinados. O plano de vacinação agora depende da população querer se vacinar. Acredite, caro leitor, não é raro encontrar pessoas que continuam a duvidar da vacina e, por isso, a recusam. O governo tem aplicado o método comportamental do reforço positivo: quem se vacinar pode ganhar um lanche, um corrida de uber de graça, e até 1 milhão de dólares (2).
Foi noticiado recentemente que tivemos o primeiro dia, desde março de 2020, sem mortes na cidade por Covid-19. Um alento, enfim. As máscaras estão saindo de cena em alguns locais permitidos, andam caindo por aqui (literalmente), enquanto isso, acompanhamos as notícias do Brasil onde as máscaras estão caindo conforme avança a CPI da Covid-19.
É um tempo de muitas perguntas ainda, incertezas e cautela. Um “entre-tempos”: entre o fim do confinamento e a liberdade de poder circular de novo. Poder circular pelos espaços da cidade (sem máscara ao ar livre) tem provocado sentimentos ambivalentes. Alguns dizem de uma sensação estranha ao poderem sair e socializar, mas ao mesmo tempo sem saber ao certo se querem ou devem fazer isso. Muito cedo, será?
Recentemente assinei a newsletter de uma artista que admiro e que me acolheu com sua arte quando eu estava récem-chegada nesta cidade, portanto, neste país estrangeiro a mim, seu nome: Patti Smith.
Smith escreve sobre muitas coisas, mas seu olhar para o cotidiano é o seu melhor, na minha opinião. Sua escrita transforma o singelo em algo grandioso, sempre apontando para o que está nas entrelinhas. Um escritora de interstícios, eu assim a nomeio.
Em um de seus últimos textos chamado “Re-entering”, Smith fala desse que chamo de um “entre-tempos” que vivenciamos agora neste território. Ela consegue traduzir em algumas linhas esse tempo confuso pós-confinamento. Descreve uma dificuldade em realizar tarefas, como ir até a lavanderia, se concentrar em uma leitura mais longa, além disso, uma certa falta de ânimo para coisas burocráticas da vida:
“Ultimamente tenho achado um tanto difícil tomar decisões, concentrar-me em um livro, redigir uma mensagem simples, lavar minha roupa, atender o telefone e, apesar de uma infinidade de assuntos disponíveis, concluir a tarefa em mãos. Existe uma ansiedade subjacente, incomum e certamente indesejada. Sei que sou perfeitamente capaz de fazer tudo o que há para fazer. No entanto, uma estranha paralisia, combinada com a diminuição do entusiasmo, parece pairar sobre tudo, como uma poeira pós-pandêmica”.
Um tempo difuso, com lacunas a serem elaboradas. O que se viveu ainda esta difícil de elaborar, já que mal podemos recordar como foi que atravessamos o ano de 2020. Ainda sobre esse tempo de transição, Smith diz:
“Há uma onda de otimismo bem-vinda, que deve ser motivo de comemoração. Então, por que está tingido de emoções misturadas? Vivemos atrás de uma máscara e talvez tenhamos nos voltado para dentro. A cidade está reabrindo, e com isso, uma intensidade anormal, responsabilidades renovadas, um retorno abrupto ao tráfego pesado, ruas lotadas, foliões gritando, máscaras descartadas e escombros descuidados”.
Em seu texto, a autora conta que esbarra na música “Losing my religion” (REM) e encontra um impulso para a vida: “A música parece abordar a perda transitória de uma equação pessoal e a necessidade de recuar para costurar os remanescentes. (…) Senti um renascer de entusiasmo, um desejo de estar com uma camiseta suada diante do meu próprio microfone com a feliz missão de conexão em massa”. Recuar aqui me parece um cuidado a mais nesse tempo em que a pressa parece estar deslocada, para então poder dar um passo à frente.
No entanto, ao mesmo tempo em que se vive como dentro de um nevoeiro sem conseguir enxergar muito distante, a cidade religa os motores que tentam retomar com força total. Os jornais, revistas e noticiários fazem questão de todos os dias lembrar que a cidade está aí. Bares e restaurantes estão abertos e as pessoas começam a lotá-los. “A economia precisa retomar”, anunciam. Começamos a ver filas para as promoções nas lojas, para os restaurantes disputados. Muito cedo, será?
Há quem diga que já começa a sentir “FOMO”, novamente (sigla para fear of missing out). De acordo com o artigo publicado na New York Magazine “The return of FOMO” (3), as pessoas começam a sentir de novo o incômodo de estarem perdendo eventos na cidade. No entanto, há quem saia diferente do confinamento da pandemia, pois dizem sentir o oposto: JOMO (joy of missing out), ou seja, um certo prazer em perder os eventos sociais na cidade e escolher ficar em casa.
A respeito do FOMO, não é isso mesmo que o capitalismo provoca? Existe uma economia “FOMO” (que na pandemia deixou de existir) atrelada à lógica capitalista. O medo de perder os eventos na cidade poderia ser reduzido ao medo da perda. Perda no sentido da falta. O capitalismo trabalha para preencher a lacuna, o vazio, a falta que também nos movimenta. A angústia descrita acima não está exatamente nos eventos perdidos, mas de nos mantermos na posição de querermos tudo, impulsionados ainda mais pelo capitalismo. A cidade pulsa novamente, mas será na mesma lógica e ritmo de antes? A ver.
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(2) https://www.cbsnews.com/news/ohio-vaccine-lottery-winner-abbigail-bugenske/
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Mariana Anconi é psicóloga e psicanalista. Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Psicopatologia e Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP). Idealizadora do projeto itinerante ‘Diálogos na Cidade: Arquitetura, Cultura e Psicanálise’. Mora e trabalha em Nova York – EUA.