ANÁLISE CRÍTICA - Tempo e meritocracia. Por Silmara Helena Pereira de Paula.

Recentemente, a filha do humorista Renato Aragão, Lívian Aragão, veio a público se desculpar por ter afirmado em uma palestra sobre produtividade: “Todo mundo tem 24 horas no dia. Por que algumas pessoas conseguem fazer tantas coisas e outras parecem não sair do lugar? O nome disso é produtividade. Como você dá conta do seu tempo? O sol nasce pra todo mundo. O que a gente faz com essas 24 horas que temos no dia?”.

A ideia, ainda que rechaçada por influencers como Nath Finanças, que rebateu: “Acho que isso é bem óbvio: todo mundo tem as mesmas 24 horas, correto, mas nem todo mundo pode escolher o que fazer nessas 24 horas de trabalho”. A lógica meritocrática do uso do tempo continua sendo propagada à exaustão.

Mas, vamos aos dados. Informação publicada no site Diário do Transporte em 2023 aponta que São Paulo é a cidade com maior tempo de deslocamento do País. Em média, usuários de transporte coletivo gastam 62 minutos para chegar ao trabalho – considerando apenas o sentido de ida. Portanto, se acrescentarmos o retorno, esse tempo dobra, no mínimo.

Se tiver carro, o tempo gasto pelo trabalhador para percorrer a distância entre casa e trabalho é de 48 minutos (em um único sentido). Ah! E nessa conta não estão incluídas as possibilidades de chuva, alagamentos, pane na linha férrea, acidentes. Refere-se a um dia, vamos dizer assim, normal.

Em relação à jornada laboral, outro dado interessante mostra que o Brasil é o 10o. país do mundo com a semana de trabalho mais longa. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), brasileiros labutam 39,5 horas semanais. E no ano passado, 523 pessoas ainda tiveram de ser resgatadas por estarem em situação análoga à escravidão.

Não sou contra implementar estratégias de melhoria de produtividade e uso do tempo, principalmente em um mundo cheio de distrações. No entanto, não é possível acreditar que as 24 horas do dia são iguais para todos os indivíduos, desconsiderando, além dos dados objetivos – deslocamento, jornada, e outros aspectos da vida social e econômica, incluindo perspectivas de gênero e raça.

Uma mulher que chega em casa e ainda precisa dar conta dos afazeres domésticos, precisa, obrigatoriamente, dobrar seu tempo “ocupada”. Não porque quer, mas porque precisa. Sem contar que a falta de descanso adequado aumenta o cansaço. Maior tempo no transporte significa menos tempo para o sono. Trabalhadores operacionais não têm opção de delegar tarefas para se dedicar apenas “àquilo que é importante”.

A distribuição de tempo repete a lógica perversa da desigualdade social. Considerar essa circunstância quando se fala em produtividade é fundamental em um momento, inclusive, que o próprio sentido do trabalho, assim como as inúmeras horas a ele dedicadas na vida, está sendo questionado.

Afinal, quem é realmente dono de seu próprio tempo?

Fontes

Monitor Mercantil. https://monitormercantil.com.br/brasil-esta-lista-dos-paises-com-semanas-de-trabalho-mais-longas/#:~:text=No%20Brasil%2C%20a%20carga%20de,2%20horas%20semanais%2C%20no%20m%C3%A1ximo. Publicado em 13/03/2023.

Diário do Transporte. https://diariodotransporte.com.br/2023/05/15/sao-paulo-tem-o-maior-tempo-de-deslocamento-do-pais-e-precisa-dobrar-rede-de-metro-alem-de-implantar-60-km-de-brt-diz-estudo/. Publicado em 15/05/2023.

Revista Forum. 15/12/2023 .”Nath Finanças rebate Lívian Aragão: ‘Muito fácil falar sendo herdeira, minha filha’.”. https://revistaforum.com.br/blogs/2023/12/15/nath-finanas-rebate-livian-arago-muito-facil-falar-sendo-herdeira-minha-filha-149595.html. Publicado em 15/12/2023.

UOL. “Lívian Aragão se desculpa após críticas por fala em vídeo: ‘Foi um recorte’.”. De Splash, em São Paulo: https://www.uol.com.br/splash/noticias/2023/12/17/livian-aragao-video.htm#:~:text=L%C3%ADvian,Paulo. Publicado em 17/12/2023.

Silmara Helena Pereira de Paula é jornalista formada pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC). Atua na área desde 1994 e trabalha em comunicação pública desde 2003. É pós-graduada em Docência em Ensino Superior pelo SENAC-SP (2015) e em Filosofia e Autoconhecimento: uso pessoal e profissional pela PUC-RS (2021). Atualmente é assessora de imprensa concursada na Câmara Municipal de Arujá.