A última serenata. Por Juliana Fernandes Gontijo.

Levindo foi casado com Lindalva por 35 anos e eles formavam um casal típico de cidade interior no centro-oeste de Minas Gerais. Ele era lavrador, mas nas horas vagas gostava de tocar violino. Aprendeu com o avô a arte da música. Vez por outra, era convidado para fazer presença em casamentos, aniversários, serenatas e até velórios. Lindalva era professora do ensino fundamental na única escola que existia na cidade.

Eles se conheceram com apenas 14 anos, curiosamente no cemitério da cidade, durante o velório de um tio de Lindalva. Aos 18, casaram-se, porém não tiveram filhos. Infelizmente, ela morreu de causas naturais em 1939. O povo mais antigo do interior diz simplesmente que a pessoa “morreu de puf!” Sim, teve um infarto e caiu dura no chão.

Quando viva, Lindalva sempre dizia ao marido que gostava muito quando ele tocava violino para ela. E que, depois da morte dela, o marido deveria ir ao cemitério à meia noite, “fazer-lhe uma serenata” todo terceiro sábado do mês. E sempre brincava com ele:

– Ô, meu bem, se não fizer nosso combinado, eu venho puxar seu pé de noite. – Os parentes e amigos do casal riam muito dessa “coisa” bastante estranha.

Quando Lindalva morreu, o viúvo levou aquela história a sério e todo terceiro sábado de cada mês, à meia noite, lá estava ele tocando o violino para sua amada no cemitério, sentado no pé da sepultura. Independente de chuva, frio, ou feriado, o terceiro sábado era “sagrado” para a serenata em memória de Lindalva. Foram 10 anos de música no violino sempre no dia e horário combinados. Como o cemitério era na parte alta da cidade, o som de Levindo era escutado em várias regiões do pequeno município.

O povo todo sabia daquela serenata ao pé da sepultura. Benito, o porteiro, já não se incomodava mais e deixava o portão aberto para Levindo entrar e tocar para “Laurinda” o tempo que ele quisesse.

Em uma noite muito fria de 1949, o portão do cemitério estava fechado e o músico não viu Benito. Inicialmente estranhou a situação, mas não havia outro remédio a não ser pular o muro e fazer a serenata para a amada esposa falecida.

O homem sentou no pé da sepultura e começou a tocar. Poucos minutos depois, ouviu de longe:

– Levin, cê taí?

Ele parou de tocar, olhou à sua volta e não encontrou ninguém. – Deve ser Benito, pensou. E recomeçou a música.

A voz perguntou de novo:

– Levin, cê taí?

– Sim, estou. – Levantou, olhou novamente, deixou o violino em cima da pedra e foi até o portão. Nada! Ninguém apareceu. Quando voltou à sepultura, o violino não estava mais lá.

– Cadê ocê, home! Chega aí! Tão dizeno nas redondeza que tem ladrão no mato. É bão nóis corrê! Vamo embora daqui já.

– Quem tá aí, tentando me fazê medo, que apareça já! – Levindo não teve resposta.

O jeito era correr, mas o portão estava fechado. Saiu andando a passos largos e a voz retornou.

– On cê tá, Levin. Peraí que eu vô tamém…

– Quando ele estava quase perto do portão, achou o violino.

A voz continuou:

– Eu deixei o violino aí mode ocê não esquecê, mas peraí que eu vô tamém… Tropecei numa cova aqui e acho que torci o pé… A foice ficou pra trás!

Ao ouvir “foice”, Levindo deu um jeito de pendurar o violino nas costas e saltar o muro do cemitério São João com apenas duas “pernadas”. Ele se mandou morro abaixo no meio do mato e continuou escutando:

– Peraí, num achei a foice! Foice… Foice…

Levindo correu, correu até que o violino caiu no chão e quebrou um pedaço da madeira de cedro. Levantou indignado com a situação e a voz ainda o perseguia:

– Eu larguei a foice no cimitério, num achei! Mas espera que tô indo… tô indo…

O viúvo olhou de rabo de olho em volta e, novamente, não viu ninguém. Caiu e levantou umas três vezes. Esfolou uma das mãos e um braço. E o mato só fazia barulho estranho. Depois de muito correr chegou em casa, bateu a porta e se esparramou no sofá.

Levindo ficou com tanto medo que nunca mais quis fazer serenata para a mulher no cemitério. Preferia ter o pé puxado por ela a ter que tocar violino na sepultura. Ele também jamais soube quem correu atrás dele mato a dentro.

Passados alguns meses, Benito perguntou a Levindo porque ele não ia mais fazer serenata para a falecida. E o lavrador contou:

– Em julho, cheguei ao cemitério e estava fechado. Resolvi pulá o muro. E eu fui perseguido por alguém lá dentro. Ah… só pode ter sido uma alma penada… A voz falou que tinha uma foice… Eu trimi todo.

– Foi bem assim não, cumpadi… Naquele dia, eu tive um piriri-de-gangorra e num fui trabalhá. A véia fez uma carne de porco e eu comi além da conta, passei o dia todo na privada. Pude trabalhá não, Levindo. Ma quem ficou no meu lugar foi o cumpadi Joaquim…

– Aquele que tem uns pobrema de ouvido?

– Sim, ele mês…

– Meu Pai do céu. É por isso que eu preguntava quem era e ele não respundia… Deus, me perdoa! Eu jurei que se encontrasse o disgraçado, eu metia o meu violino na cabeça dele. Num ia querê sabê nem se tinha foice na mão ou não. O mais estranho é que depois que eu pulei o muro do cimitério que tava fechado, eu ainda escutei por um bom tempo: “Pera aí que eu vou tamém…”… Esqueci a foice… Foice… Foice… Tô indo… Indo… E meu violino quebrou e perdeu a afinação, não posso mais tocar nos casamento… A minha inspiração depois que Laurinda morreu era eu tocá pra ela. Pirdi a graça. E ontem, pode acreditá! Acordei com alguém puxando meu pé…

– Cê acha que foi a Laurinda? E eu num entendi o purquê da foice na mão!

– A minha inspiração era ela, Benito. Mesmo se eu comprá outro violino, nunca mais tocarei igual pra emocioná as pessoa. Pode acreditá, eu tocava pra ela, em quarqué situação, sempre foi pra ela!

Semanas depois, Levindo também “morreu de puf”. Uns diziam na cidade que ele morreu foi de amor, por não suportar a morte da mulher e não ter mais inspiração para tocar. Ele foi sepultado ao lado de sua amada. O prefeito da cidade mandou até fazer uma estátua dele tocando violino e colocou entre as duas sepulturas.

Dizem que até hoje em todo terceiro sábado do mês, faça chuva ou faça lua, à meia noite, qualquer pessoa que passe lá no alto do morro perto do cemitério escuta o som do violino baixinho com as mesmas músicas que Levindo tocava para sua amada…

Lenda ou verdade?

Eu nunca passei por lá no terceiro sábado do mês, muito mais à meia noite… Se algum dia você passar, conte para mim o que ouviu nos muros do cemitério São João lá nos confins e grotões das Minas Gerais.

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.