Há mais de 10 anos, Alice era cliente do Hotel Belmont. Mensalmente, fazia a mesma viagem a trabalho para o interior de São Paulo. Como já havia confiança mútua entre o hotel e a consultora de vendas de máquinas agrícolas, ela ficava no mesmo quarto 309 toda última semana de cada mês. Fez muitas amizades com os funcionários e até com o proprietário do estabelecimento, Patrício. Às vezes, chegava de viagem e a camareira, Luzia, havia deixado um lanche especial no frigobar a pedido de Patrício.
Com um mesmo roteiro, todo dia 26 de cada mês, pegava o carro e saía de Minas em direção ao estado de São Paulo. Passava de três a quatro dias no mesmo quarto. Era como se ligasse o piloto automático. Sua mãe, Vânia, falava quando se despediam:
– Um dia, a mala vai entrar sozinha no carro e vai dirigir até Itapetininga para você, filha… Não se cansa disso, não?
Em um determinado mês de agosto, ela saiu de casa e o dia parecia estranho… Pegou o carro, seguiu cerca de 700 km de casa até São Paulo onde iria trabalhar em um novo evento. No terceiro dia de viagem, precisou voltar para o hotel mais tarde, pois acontecera um problema na finalização do contrato com um cliente e um maquinário estragara por um manejo errado de um participante do treinamento. Foi preciso fazer uma ocorrência e resolver os trâmites numa delegacia de polícia, porque o participante não admitira o erro. O evento terminou às 22 horas, mas com o problema, Alice chegou por volta das 3 da madrugada no hotel.
Muito cansada, passou pela recepção sem cumprimentar o pessoal; subiu as escadas; aproximou a chave de cartão na porta. Sem acender a luz, caiu direto na cama. No dia seguinte, acordou com a bolsa no chão e uma pessoa dormindo na outra cama. Levantou em sobressalto sem fazer barulho, muito assustada, deu uma olhada no homem que dormia na outra cama, pegou a bolsa e saiu silenciosamente do quarto. Onde estariam suas malas? E o material de trabalho? Tanto investimento perdido ou roubado? E o pior: o que aquele homem fazia dormindo no “seu” quarto?
Chegou desfigurada e tremendo muito à recepção do hotel:
– Fui roubada. Tem um ladrão no hotel. Além de me roubar, é um folgado, pois está dormindo no meu quarto! Cheguei às 3 da manhã e “bati” na cama direto, nem acendi a luz. Acho que a bolsa caiu da minha mão… E agora tem um homem lá dentro.
Alípio, gerente do hotel, estranhou a situação, pois não havia nenhuma ocorrência de roubo naquela madrugada, mas resolveu averiguar. E uma história de um ladrão folgado “dormindo” no local do roubo era demais. Talvez a consultora tivesse bebido além da conta… Às vezes, ela chegava um pouquinho “alegre demais” dos eventos.
– Alice, a segurança é de 24 horas por dia. Não há como alguém ter entrado aqui. – No entanto, ele exigiu que Luzia fosse ao quarto da cliente e certificar o que havia acontecido.
Quando a cliente abriu a porta, o quarto estava intacto. Todos os seus pertences estavam em cima da cama que ela não havia arrumado para se deitar na noite anterior.
Alice, meio envergonhada, não desceu do “salto” e as duas voltaram direto para a recepção:
– Ah, por favor, Alípio, aconteceu alguma coisa. Tinha um homem deitado na “minha cama”. Não é possível. A não ser que o ladrão já tenha fugido… Eu não sonhei nada disso.
O gerente achou estranha a história de assalto e tudo estar no quarto. Ordenou que ela conferisse todos os seus pertences, uma vez que o quarto estava “intacto”. Mas a mulher insistiu em querer saber o que “diabos” era aquela confusão.
A consultora de vendas permanecia firme na sua situação:
– Se não foi assalto, foi o quê?… Simplesmente tinha um homem dormindo no meu quarto e vocês não têm explicação!
Naquele momento, Orlando, um engenheiro que também era cliente antigo do hotel chega à recepção dizendo que uma mulher havia dormido no quarto dele.
– Como assim, Orlando? – O gerente ficou mais tranquilo, mas a história ainda não fazia sentido.
Alice perdeu a “cor”, ficou vermelha de vergonha. “O que havia acontecido? Seria ele o ladrão? Não era possível!…”.
– Eu não fiz nada! Busque as imagens das câmeras!
Junto com a equipe de segurança, Alípio voltou as gravações dos corredores e escadas do hotel. “Chegaram às 2:30 h da manhã” e viram Alice entrando no corredor. Conferiram todas as gravações umas cinco vezes. A subida das escadas, a abertura da porta de “fogo” para o corredor, até ela parar na porta do quarto. Orlando estava também por perto, porque havia tido o quarto “invadido”. Ele descobriu o “nó” da confusão. Alice não chegou ao terceiro andar, entrou no corredor do segundo e abriu a porta do quarto de Orlando. O rapaz só percebeu Alice dentro do quarto de manhã cedo, mas fingiu continuar dormir. Sabia que era um engano da consultora.
Alípio ficou com a “pulga atrás da orelha”. Os três foram juntos ao quarto 209. Alice passou o seu cartão na porta que abriu imediatamente. Testaram mais duas vezes e a porta foi aberta. Voltaram à recepção para verificarem a configuração do cartão. Por um erro de digitação, o cartão de Alice foi configurado para abrir duas portas 209 e 309.
A consultora não sabia o que dizer ao “ladrão” Orlando, nem a Alípio que ria da situação… Mas a cliente havia “gritado aos quatro ventos” que a segurança do hotel era irresponsável. Estava muito sem graça, dizendo que não voltaria mais ali por tamanha vergonha do ocorrido. Pediu desculpas aos funcionários, a Orlando e Patrício, por telefone. No entanto, sentia que o estrago estava feito… Como iria conseguir voltar ao hotel em setembro depois daquele péssimo mal entendido. A estas alturas, todos os clientes já estavam sabendo que uma cliente “invadiu” o quarto de outro cliente e ainda acusou o cara de roubo…
– Nós que pedimos desculpas, Alice. Desta vez, você e Orlando estão isentos das diárias. São ordens de Patrício. O erro foi nosso. Em hipótese alguma, a configuração poderia ser feita para dois quartos ao mesmo tempo. Vamos verificar o procedimento com nossos funcionários e treiná-los para terem mais atenção.
Os dois aceitaram, mas Alice continuava envergonhada por acusar um cliente do hotel de roubo. E se a acusação fosse contra ela? Isso poderia dar processo por calúnia…
Orlando brincou com a situação:
– Eu poderia até te processar, mas seria melhor fazermos amizade, não é mesmo? Há quantos anos te vejo no hotel todo mês…
– Como entrarei aqui em setembro?… – Nem conseguia olhar nos olhos de Orlando.
– Você é que não deveria ter entrado no 209… Já pensou nisso? – dando uma risadinha maliciosa.
– Em setembro, conversamos, pode ser? A consultora fingiu não perceber a “investida” do camarada.
– Isso é um NÃO definitivo? – Perguntou Orlando.
– Não, rapaz… Mas também não quer dizer que seja necessariamente um SIM…
Ela voltou ao quarto do hotel; tomou um banho; fez o desjejum e saiu para dar novo treinamento. Ainda teria um longo dia pela frente…
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Foto: Pixabay.
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Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.