A profissão dos sonhos. Por Juliana Fernandes Gontijo.

Geraldo trabalhava naquele caminhão havia 20 anos. Filho de uma lavadeira e um pedreiro, ele tinha mais 12 irmãos.

Desde criança já sonhava ser gari. A vida da família era bem difícil. Todos passavam necessidade em casa. Desde os 6 anos já ajudava seu pai, Sebastião, assentando tijolos. Ele sempre dizia ao filho:

– Você tem que estudá pra ser doutô.

Geraldo ia de manhã para a escola, almoçava, fazia o dever, brincava um pouco e depois ia ajudar o pai no fim da tarde, porque o Sol já estava baixando…

Mesmo com o desejo de Tião, a profissão que o menino realmente queria seguir era a de gari. Fazer a coleta do lixo pelo caminhão nas ruas e avenidas, colaborando assim com a limpeza da cidade.

Os anos se passavam e a vontade de Geraldo em se tornar gari era cada vez maior. Depois das aulas na escola, ele foi criando o hábito de fazer pequenas corridas de 500 metros e ia aumentando a distância gradativamente. Como ele dizia, era seu preparo para a futura profissão.

Quando completou 18 anos, procurou emprego na empresa de coleta de resíduos da cidade. Era preciso um teste físico de corrida e arremesso de alguns pacotes com uns 10 quilos de objetos. Geraldo tirou todos os testes físicos “de letra”.

Depois de 5 anos de trabalho, ele começou a namorar Edite, uma costureira de “mão cheia”. No entanto, ele tinha receio de falar com a namorada que era gari. Enquanto pôde, mentiu trabalhar em uma fábrica de tecidos.

Edite acreditava tanto nas histórias da fábrica e do “seu trabalho” que chegou a pedir algumas encomendas ao namorado. E ele, gentilmente, sempre trazia um tecido diferente.

Quando eles estavam noivos, um cunhado de Edite, Adalto, descobriu a profissão de Geraldo. Ela, ao ficar sabendo da história, não acreditou e pressionou o noivo para saber a verdade.

– Adalto me disse que você não trabalha na fábrica. Você é realmente gari da coleta de lixo?

Geraldo ficou muito sem graça, mas respondeu que sim.

O mais intrigante da história é que o gari jamais deixou transparecer algo que pudesse incomodar Edite. Ele sempre chegava perfumado e de banho tomado.

– Desculpe, meu amor, eu tinha medo de você terminar comigo.

– Eu não ia terminar com você, Gera. Então por que você trazia os tecidos? Era só me contar a verdade. Eu mantenho a minha palavra, não vou terminar, mas quero que você confie mais em mim.

Em menos de 6 meses, eles se casaram e já pensavam em ter filhos.

Um dia, Geraldo saiu de casa para o trabalho, mas um imprevisto aconteceu… Parecia uma daquelas histórias de filme, porém era vida real. O caminhão passou por uma rua calma e, quando Geraldo se abaixou em frente a uma grade de um prédio, ele ouviu um miado.

– Um gato! Abaixou-se para remexer o lixo e levantou assustado.

Não era um gato e sim uma bebê recém-nascida, enrolada em uns panos amassados. Ainda estava com o cordão umbilical. Parecia ter muitas horas que a menina estava ali.

Quando voltou a si e a “ficha caiu”, rapidamente pegou a bebê no colo e gritou ao motorista que parasse o caminhão.

– Moacir, desça e corra aqui.

Adelson e Lauro, os outros dois garis, também chegaram perto e se assustaram. A bebê chorava incessantemente, mas à medida que ele ia conversando com a menina, ela se acalmava.

– Como pode alguém fazer tamanha atrocidade com uma criança indefesa? – Perguntou Adelson revoltado.

Chamaram o SAMU e a polícia, registraram ocorrência. Nenhum dos garis da equipe conseguia segurar a menina, a não ser Geraldo. Com ele, ficava mais calma. Resolveram chamar a menina de “Vitória”. Ela realmente era uma vitoriosa por ter sido encontrada pela equipe de Geraldo.

Segundo os médicos, se alguém demorasse mais uma hora para encontrá-la, ela estaria morta devido a uma hipotermia.

O gari chegou em casa, contou aquela história a Edite que ficou sensibilizada com a garotinha:

– Amor, eu quero essa menina.

Geraldo ficou estático, sem saber o que responder.

– Sim, eu quero essa menina. Uma vidente me contou, há vários anos, que não posso ter filhos. Resolvi fazer um exame. Infelizmente não posso tê-los.

O semblante assustado de Geraldo foi o mesmo quando encontrou “Vitória”.

– Ah, agora você acredita em cigana? Como é que é? E por que você não me contou essa história? Cadê a sua confiança em mim?

– Ah, querido, chumbo trocado não dói, certo? Não contei porque não acreditava que o problema fosse meu… Eu quero essa menina. É a nossa filha que a vidente me falou!

– Eu vou pensar nisso, Edite, mas nós não temos condições…

– Não me interessa, eu sonho com esta criança todas as noites.

Menos de uma semana após o encontro de “Vitória”, enrolada aos restos de panos, Edite encontra-se por um acaso com a mesma vidente da qual nem sabia o nome em meio à multidão numa praça do centro da cidade:

– Ei, você se lembra de mim, num é? Nem adianta dizer não. E a “Vitória”, você já adotou? Não minta pra mim. Ela é seu compromisso. Já estava “escrito nas estrelas” desde quando você e o falso trabalhador da fábrica de tecidos ainda corria atrás dos primeiros caminhões.

– Eu não te conheço e nem sei por que fala essas coisas ao meu respeito!

– É você mesmo, Edite Maria! Cuide de Vitória, ame! Ela é a filha que você nunca poderá gerar. Seja feliz com Geraldo e Vitória. Vocês são uma linda família, é só você querer. Deixe correr os papéis, faça as entrevistas, pegue a guarda provisória. É só cumprir tudo certinho que ela será filha de vocês. A profissão dos sonhos do seu marido também estava “escrita” quando ele passou nos testes físicos… Encontrar Vitória seria apenas uma questão de tempo.

Edite toma um susto, vira-se para responder àquela estranha mulher… que some na multidão. Ela procura pela vidente, perguntando às pessoas se a conheciam. Todos faziam que não com a cabeça. A esposa de Geraldo nunca mais teve notícias da mulher. Uns diziam que era uma velha senhora que havia morrido naquela praça há muitos anos. Outros falavam que ela nunca existiu. Era apenas uma criação da cabeça de Edite? Quem sabe…

O processo de adoção terminou e, hoje, Vitória já está com 10 anos ao lado dos pais, Geraldo e Edite. Ela tem profundo conhecimento de sua história no início da vida, mas os grandes momentos de amor, ao lado de seus pais, venceu, porque:

O amor sempre vence!

Imagem: Pixabay.

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.