Jocicreia chegou de uma longa viagem. A casa cheirava um pouco de mofo. Afinal ela esteve passando duas semanas no Acre, na casa de alguns primos. Ela foi e voltou de ônibus. Jamais gostou e nem tinha dinheiro para ir de avião. Sentada no sofá, ao abrir a mala, o celular tocou. Vasculhou tudo e o encontrou bem no fundo da mala, perto dos seus chinelos.
– Alô? Sim sou eu, Jocicreia de Jesus, 60 anos, natural de Carmo do Cajuru, centro-oeste de Minas. Filha de Julieta Oliveira de Jesus e Jacinto de Magalhães, às suas ordens. Quem é? Hã? É da “Loteria”? Sebastião? Espere aí, que vou pegar o bilhete. Tião, você já sabe, nunca sai a Mega p’ra mim, nem uma quadrinha… Acho que eu vou morrer pobre de “marré deci”!
– O quê, rica? Só se for de saúde. Espere, deixa eu pegar! Ô, Tião dá p’ra esperar?
– Olha logo aí. Eu não tenho muito tempo. – Falou o dono da Loteria.
– Espere! Eu não acho o danado! Ah, depois eu ligo p’ra você. – Jogou o celular no sofá. Depois de muito procurar, a mulher achou o volante da loteria. E tentou iniciar uma “conversa” com o bilhete.
– Ah, seu bandido, estava querendo se esconder de mim, né? Meu Pai do céu! Não acredito, achei! – Ela até tentou ensaiar uns pulinhos de alegria, mas não aguentou. Pegou o celular e, com as mãos trêmulas, ligou para a Loteria.
– Alô! Tião? Desta vez eu mudei os números tudo. Acredita? Eu fiz um p’ra frente e um p’ra trás daqueles números que eu fazia antes. Fiz dois jogos, será que um deu? Tomara Deus que sim.
– Deixa eu falar, Jocicreia. Ajuda aí, né?
– Eu deixo, eu deixo. Vou conferir aqui! Quanto é mesmo que deu? Quin-ze milhões? – Ela estava completamente eufórica com um valor tão grande. – Tá bom, Tião, tô escutando.
– Acertei! Mais um e de novo! Outro, nossa senhora. Mais um! Ai, meu Deus, eu não acredito! Só falta um! Vou ser milionária! – O telefone ficou mudo. Ela nem percebeu. E aos gritos:
– Tião, deu 02, confere aí, 07, 25, 30, 35, 48… O quê? Não estou escutando. – Ela estava cada vez mais nervosa. – Ô Tião, o que foi? Você morreu, homem de Deus? Uai, o quê aconteceu?
– Ô meu Deus, Tião não responde. Meu Santo Expedito! A minha Mega-Sena, o homem não responde, “bilhete”! Tem que ter dado o 48. Foi sim; eu sei que foi isso. Ai, meu santinho, fiquei milionária, eu sei que fiquei! – Continuou sua “conversa” com o pedaço de papel.
O telefone permanecia mudo, mas a bateria não havia descarregado.
– Que diabo! Essa porcaria foi descarregar logo agora! – Bateu no celular e ligou para a operadora.
– Senhora, o sistema está inoperante por falha técnica, retorne sua ligação daqui duas horas. Algo mais que posso ajudar?
Jocicreia desligou a ligação na cara da atendente, como se a moça tivesse culpa no “cartório”.
E continuou o “diálogo” com o bilhete:
– Está dizendo que não vai funcionar por mais duas horas? Ah… então não foi o Tião que morreu, nem a bateria que descarregou. Que diacho! Quando esse trem voltar a funcionar, a Loteria já está fechada. Ô trem excomungado” E você, “bilhete”, cê vai me ajudar, viu?
– E esses poucos 600 reais que recebo de aposentadoria por mês, eu não posso reclamar porque tem gente que não tem nada e continua passando fome até hoje. Mas é duro, é duro ter que pagar tanta conta. Não vejo a hora de ficar livre dessas porcarias… Os 15 milhões vão me ajudar um tanto… Vou sair desse barracão, comprar uma casa com piscina e tudo mais. Ainda vou abrir uma livraria p’ra mim. Ninguém no mundo gosta mais de livros do que eu…
– Deixa eu te contar, “bilhete”, lá também vai ter um espaço assim bem grande p’ra todo mundo que não tiver dinheiro p’ra comprar os meus livros. Vai ter muita leitura de graça. E lá na minha casa nova, vou deixar uma sala só p’ra colocar os meus quadros com o Quimquim. Ah, meu Joaquim… Quanta saudade de você…
Ela e o marido não tiveram filhos. As parteiras da cidade diziam que ela nunca poderia tê-los. Uma vez, perdeu um bebê e quase morreu por isso. Então os dois viveram sozinhos até que Joaquim morreu de bebida. Engana-se quem pensa que ele faleceu pelo alcoolismo. Não! Ele foi atropelado por um caminhão de bebida na estrada e não sobreviveu. Ele era guarda rodoviário. Jocicreia tomou ódio de cachaça! E continuou seguindo sua vida trabalhando como costureira para manter suas despesas.
Ela pegou o celular e deu umas batidas nele:
– Pega trem, pega! Eu preciso saber se foi o 48. Os 600 reais pagam o meu plano de saúde bem ruim e o aluguel. A água, a luz, o celular, outras despesas e comida, eu pago com as costuras, entendeu, “bilhete”?
– Ai, meu santinho! Eu tenho que saber do último número. Tem que ser o 48. – Ela estava muito aflita. – E se não for?! Não vou ter mais a livraria, nem a casa com piscina. Mas vai ter que ser! Não é possível! Há mais de 20 anos eu jogo esse troço e nunca deu nada.
Para tentar aliviar sua tensão, ela pegou um volume de uma coleção de enciclopédias que guardava em casa e resolveu “visitar” vários países da Europa. A Torre de Pisa, a Torre Eiffel, Fátima (Portugal) e depois em Sevilha. “Deu uma voltinha” pelas Pirâmides do Egito. Ela “andava” milhares de quilômetros sem sair do sofá. Tinha também uns livros com fotos de Museus da Europa… Como Jocicreia gostava de “virar” as páginas dos livros, do cheiro de papel velho. E sempre dizia:
– Para fora do Brasil eu teria que viajar de avião, como eu não tenho dinheiro, então eu vou: de livro!
Pegou o telefone novamente.
Ai meu Deus, a Mega-Sena, a minha livraria. Não sei o que eu vou fazer se não ganhar o prêmio. Mas o que eu vou gastar com a casa e a livraria vai ser muito pouco, em vista dos 15 milhões… O que é que eu vou fazer com o resto, meu Deus? Já estou velha mesmo…
– Ai, meu Deus! Ô Tião, até agora? Ô moça, eu preciso de falar com o Tião. É caso de vida ou morte. São 15 milhões, meu Deus do céu. Já não aguento mais falar com essas máquinas. É sempre a mesma voz. – Ela nem percebeu que ligou para a operadora em vez de ligar para a Loteria.
Ligou novamente. – Alô, Tião? É a Jocicreia. Me fala que deu o 48, pelo amor de Deus! O quê? Deu? Eu fiquei milionária! Eu vou ter “um troço”, vou morrer do coração. Eu não acredito. Não pode ser, meu santinho Expedito! São 15 milhões, o que eu vou fazer com essa dinheirama toda?
– Deixa eu falar, Jocicreia, faz favor… Você…
– Se eu não tiver um troço até de noite, eu não morro nunca mais, meu Jesus Cristinho. Cajuru inteiro vai me pedir dinheiro emprestado. Eu vou comprar de todo jeito a pedra do Calhau e uma livraria p’ra mim…
– Eu quero dizer que…
– Estou ouvindo, homem de Deus! Você quis dizer qua-ren-ta e no-ve? Não é possível! – Gritou tanto que o cachorro da vizinha ao lado começou a latir.
– Tião! Eu te mato seu desgraçado. Eu te mato, seu bandido! Quando eu morrer, vou puxar seu pé de noite! – Desligou o telefone.
Saiu gritando pela rua enquanto ia à Lotérica.
– Não acredito! Por que tinha que ser comigo! Em uma hora e meia eu fiquei milionária, fiz plano p’ra sair do aluguel, comprar a minha livraria. Agora voltei p’ra pobreza de novo. Eu perdi a Mega-Sena por um número. Ah… mas eu vou, vou matar o excomungado do Tião! Já que não pode ser com arma, vai com a bengala mesmo, entendeu, “seu bilhete”? – Chegou à loteria:
– Jocicreia, preste atenção, mulher. Os 15 milhões você não ganhou, mas você fez a Quina que vai te pagar 55 mil reais. Já é uma ajudinha boa, não é? Volte para sua casa pegue seus documentos que vamos te pagar os 55 mil ainda hoje.
A mulher acalmou, até que ela deu um baita sorriso. Com o dinheiro da Quina, alugou uma casa melhor com um cômodo de loja, fez uma campanha para receber doação de livros e criou uma biblioteca comunitária em “Cajuru”. Por mais 25 anos, “a mulher que gostava de livros” viveu feliz, ensinando o valor da leitura para a educação de muitas crianças e adultos…
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Imagem: Pixabay.
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Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.