Tempos sombrios. Por Adalberto Piotto.

Não raro, ouço ou leio alguém usar a expressão ‘tempos sombrios’.

Mas o que seriam esses tempos sombrios?

No clichê das universidades e dos professores alinhados à esquerda, as sombras temerosas viriam da direita no poder.

A tese já fez sucesso no passado. Não se sustentou diante da poeira e dos fatos.

A própria história coloca esquerdas e direitas no protagonismo de regimes sombrios com muita frequência. Stalin e Hitler não eram de direita. Os camponeses, conservadores dedicados ao trabalho na Rússia, e os judeus de tradições milenares, estabelecidos numa economia burguesa e perseguidos na Europa, têm muito mais cara de direita do que seus opressores.

No caso brasileiro, por causa do regime militar, a direita seria associada ao grupo que apoiou os militares da época, muito diferentes dos atuais. Sem que se diminua a dor das vítimas de ambos os lados, de um Estado que usou seu poder contra cidadãos, o que é sempre objeto de análise mais cuidadosa, é preciso levar em conta que tínhamos uma luta interna ancorada na Guerra Fria, o que precisa ser compreendido, diante do AI-5, que, fosse o outro lado o vencedor, quais seriam as liberdades à esquerda que teríamos no Brasil? As da cortina de ferro, dos chineses ou a dos cubanos?

Daí, pergunto: seriam liberdades?

Quando se para para ler e analisar, nada é tão simples de julgar.

E jamais poria em dúvida, neste artigo, que muitos que lutaram pela liberdade de expressão naquele momento de nossa história, lutavam pela democracia. Não diria o mesmo de seus líderes e ativistas, apenas interessados no poder pelo poder.

Para fazer uso de uma expressão do Direito com duas vertentes normalmente mal utilizadas, os dois lados no Brasil, com algumas exceções, durante a ditadura, defendiam o Estado de Direito deles, do regime que conseguisse vencer, nunca o Estado Democrático de Direito, com tudo o que os gregos nos legaram sobre o convívio democrático.

Feitas estas ressalvas sobre a história, que retiram da discussão o modo simplista e manipulador sobre direita e esquerda no poder, volto-me aos ‘tempos sombrios’.

O que seriam tais tempos em nossa história contemporânea? A que estamos vivendo. Dela e com ela.

Refutando a simploriedade de projetar a pecha em um dos lados, direita ou esquerda, os tempos sombrios não viriam como resultado do uso que fazemos de nossas liberdades tão arduamente conquistadas?

O cancelamento coletivo, normalmente acéfalo, sempre virulento, das pessoas nas redes sociais, que usam da liberdade de expressão para impedir o contraditório e o debate não seria um exemplo mais acabado de tempos sombrios?

Ou a manipulação protagonizada por veículos de imprensa, proprietários de redes sociais, em pesquisas e por artistas, usando de seu alcance e popularidade, não seriam tempos que projetam mais sombras terríveis sobre a democracia, a vontade popular legítima?

Não ler e criticar, não conhecer e abominar, não ouvir e sair falando nos tribunais informais do Twitter, do Facebook e do Instagram, cujo propósito não é julgar, mas condenar, não são os tempos sombrios de nossa era?

O cérebro de uma pessoa pode alinhar-se à direita ou à esquerda. O fígado, não.

Porque a estupidez tem bandeira própria.

E não é a da civilidade.

Adalberto Piotto é jornalista e documentarista. Especializado em economia, é ancora de notícias em rádio e TV, articulista de realidade brasileira e produtor e diretor do filme ‘Orgulho de Ser Brasileiro’ e da série de webTV ‘Pensando o Brasil’.