'Compliance', ESG e os escândalos na televisão. Por Luiz André Ferreira.

Os ecos de “Gravando” ou “Silêncio no Estúdio” são acompanhados de outros gritos nada funcionais. Estão impressos na história do audiovisual mundial cenas reais de diretores explorando ao máximo a adrenalina de atores como forma de pressão para obter um desempenho mais realista. Gritos, xingamentos, ofensas e outros tipos de humilhações eram normalizados como se fossem inerentes ao exercício da profissão. Havia até uma lenda: “para ser um bom diretor tem que incorporar características autoritárias”.

Tal clima, que fazia parte do cotidiano, está mudando de forma tão rápida, ficando cada vez mais fora de sintonia, a ponto de muitos sequer perceberem que o quadro é outro. Estes se surpreendem ou considerarem-se injustiçados quando repreendidos nesses comportamentos que caminham para o inaceitável.

A situação ainda é pior se a profissional da arte ou integrante da equipe técnica e de produção for mulher – num mundo ainda dominado por chefes e diretores homens. No entanto, esse panorama não é exclusivo do mundo artístico. Não é como se fosse um esquete encenado num estúdio. Esse cenário é real e também está presente em empresas de todos os ramos da economia.

Exigências de compliance e ESG nas corporações

Os ensebados Códigos de Ética e Conduta, praticamente nunca retirados dos fundos das gavetas empresariais, estão sendo retirados desses espaços empoeirados e ganhando protagonismo no mundo corporativo atual. Isso por conta das implantações de compliance (ao pé da letra, setor que cuida das conformidades) e da exigência no cotidiano corporativo de incorporação das boas práticas da Agenda ESG (sigla em inglês para Ambiental, Social, Governança).

Assim como o nosso audiovisual se inspira em Hollywood, inclusive com a incorporação de muitos de seus “cacoetes profissionais”, agora vem lá de fora também a implantação de uma política de “tolerância zero” para práticas até então normalizadas nas organizações. Foi decretada uma espécie de caça às bruxas aos infratores das “boas práticas”.

Não é coincidência que denúncias, escândalos, cancelamentos e demissões que abalam o antigo “silêncio de Hollywood” ecoem também por aqui. O medo dos processos milionários, a rejeição do público e de anunciantes obriga as emissoras a levantarem seus tapetes para recolher o lixo por décadas ali escondido.

O acolhimento e o apoio popular estão empoderando pessoas oprimidas que nem imaginavam que, um dia, poderiam levantar sua voz contra um sistema que parecia inflexível e com regras autoritárias já consolidadas. Ao contrário de outros setores em que as análises de compliance ficam em sigilo, a popularidade dos envolvidos no audiovisual quebram a cláusula do anonimato e ganham visibilidade.

Numa linha cronológica, o primeiro caso emblemático que marca essa mudança de ventos envolveu o ator José Mayer e uma figurinista. No auge de sua carreira, o veterano galã virou protagonista de um drama da vida real. E ao invés de encerrar essa história beijando a mocinha, ele foi surpreendido com uma carta de demissão e um editorial explicativo lido em pleno Jornal Nacional.

Teste do sofá

O folclórico teste envolvendo favores sexuais – usado como moeda de troca para escalações ou papéis melhores – também passou a render dores de cabeça para as empresas e punição para os funcionários denunciados. E, novamente, o Brasil segue na esteira do que acontece nos Estados Unidos e na Europa, num movimento que aniquilou medalhões do cinema e jogou na lama um dos principais troféus, o Globo de Ouro. Time is up!

Isto sem falar na agressão física ocorrida na premiação do Oscar, em que o ator Will Smith deu um soco no rosto do comediante Chris Rock após uma piada politicamente incorreta com a doença sofrida pela atriz Jada Pinkett Smith, esposa do primeiro. A falta de habilidade para lidar com esse tipo de ação é tamanha que o evento continuou e só mais de uma semana depois foi anunciada uma punição por parte dos organizadores.

Dani Calabresa  X  Marcius Melhem

Por aqui, o maior destaque caiu como uma piada de mau gosto atingindo em cheio o humor da Rede Globo. O escândalo fez com que o departamento perdesse a graça: programas retirados do ar, projetos sem continuidade, engavetados, ou mesmo cancelados.

O episódio dividiu o setor após a denúncia envolvendo a comediante Dani Calabresa e o diretor do núcleo, Marcius Melhem. O embate rachou o departamento entre os que reforçaram a posição da humorista e os que defenderam o diretor.

Sem graça humor politicamente incorreto

Como esperado dentro dessa “nova ordem corporativa mundial”, Melhem não teve um final feliz. Acabou sendo afastado e tendo, posteriormente, seu contrato descontinuado. Mas isso não aconteceu sem que ele antes tentasse apelar para um mal pelo qual a comédia padeceu nos momentos mais tenebrosos do país: a censura. Apelando para a justiça, uma série de reportagens sobre o caso produzida pela Revista Piauí, teve que ser retirada do ar e impedida, por um período, de dar continuidade aos desdobramentos, o que chamamos no jargão jornalístico de suite.

Acusação de racismo provoca demissão

Mas as denúncias de assédio não ficam restritas aos aspectos moral e sexual. O aspecto racial também movimentou os bastidores da emissora líder. O diretor Vinicius Coimbra foi o mais recente investigado pelo compliance. Ele foi acusado de dar tratamento diferenciado e promover segregação entre os chamados “elenco branco e elenco negro” da novela de época “Nos tempos do imperador” que, ironicamente, tratava a temática escravagista em seu enredo principal.

Mas se engana quem pensa que os casos ficam restritos ao setor de dramaturgia. O compliance da Globo também foi acionado para apagar incêndios no jornalismo. Assim como no setor artístico, os denunciados também acabaram chamuscados e demitidos.

Compliance também age no jornalismo

Vazou um áudio com um comentário inapropriado considerado racista enquanto se aguardava para entrar no ar. Isso afastou da bancada do “Jornal da Globo” o âncora William Waack. Por motivo diferente, outro que também feriu as regras do compliance foi o companheiro Dony de Nuccio. Ele teve que deixar os estúdios do “Jornal Hoje” por ter feito paralelamente um trabalho para um banco. É que o conflito de interesses, assim como a corrupção, também são temas incluídos no Código de Ética e Conduta e estão no radar do setor de compliance das emissoras. Vale ressaltar que esses casos citados não aconteceriam se não houvesse um cenário fértil e historicamente permissivo.

A dramaturgia que hoje dispensa o diretor é a mesma que não escala personagens negros para protagonismo de suas histórias. O mesmo jornalismo que puniu o veterano Waack tem contado nos dedos os profissionais negros em funções de destaque. A quantidade é bem aquém da porcentagem de afrodescendentes presentes em nossa sociedade.

O mesmo mau humor que puniu Melhem há bem pouco tempo ainda usava de piadas machistas, homofóbicas, gordofóbicas, além de mulheres em trajes mínimos e erotizados como forma de atrair a audiência. A mesma empresa que tenta implantar a igualdade ainda não conseguiu a equidade de mulheres em cargos de chefia e direção.

Como funciona um compliance

Embora cada vez mais exigido pelo público, mercado e investidores, a implantação do compliance ainda é uma novidade no mercado corporativo brasileiro. E ressalto que de maneira alguma esses problemas ocorrem só na Rede Globo. Eles viralizam por lá devido a sua maior visibilidade, natural por conta da liderança. E também por ter sido a primeira em seu segmento a implantar no Brasil um setor de compliance.

É legítima a preocupação em se adequar a boas práticas por conta da pressão do público, patrocinadores e do mercado externo já que suas obras são constantemente exportadas. Primeiramente, precisamos entender o que quer dizer essa palavra em inglês que, de repente, passou a fazer parte dos discursos corporativos e invadiu a imprensa como se todos a dominassem, mas que na verdade não é devidamente explicada.

A origem vem do verbo to comply, que significa “agir de acordo”. Ou seja, a prática passou a ser aplicada pelas empresas em referência às suas adequações às normas internas ou de órgãos reguladores, ganhando uma interpretação mais ampla, aproximando seu significado para conformidade.

O ideal do trabalho de compliance é de que seja educativo e preventivo. Ou seja, de impedir transgressões antes que sejam cometidas. Assim, evitar que se tenha que agir de forma punitiva ou que as organizações tenham que responder por atos inadequados de seus colaboradores junto a outras instituições, como o poder Executivo, o poder Judiciário, o poder Legislativo, o mercado financeiro, o público interno, o consumidor, e o público em geral.

A expressão original foi se dilatando e passando a incorporar outras vertentes. Além das conformidades legais e mercadológicas, também visou impedir comportamentos irregulares, inconvenientes ou em desacordo. A agenda de compliance não foi somente ampliada em sua utilização. Foi incorporando ações e práticas a seu cotidiano de forma a garantir o conhecimento e a aplicabilidade. Entre elas:

  • Mapeamento das leis e regulamentos que regem o setor de atuação e a área trabalhista
  • Criação e implantação de normas de condutas
  • Fiscalização constante
  • Promoção das boas práticas e auditorias periódicas
  • Alinhamento do compliance com os setores de comunicação – interna e externa -, assim como ações de endomarketing
  • Campanhas para internalização das medidas
  • Incentivo e garantia para que as informações sobre irregularidades serão apuradas sem perseguição aos denunciantes

A adoção de medidas de compliance é recomendada para todas as organizações, independente do seu ramo de atuação, e aplicada a todas as esferas (pública, privada, do Terceiro Setor), de todos os portes (holdings, grandes, médias, pequenas e micros), assim como independente das questões geográficas (locais, regionais, transnacionais ou da internet).

A implantação das medidas de compliance valorizam a cultura, a imagem e o capital humano, além de estreitar as relações da organização com todos os seus públicos.

Luiz André Ferreira é jornalista e professor universitário. Mestre em Bens Culturais e em Projetos Socioambientais. Pioneiro, em 2002, com o lançamento da coluna “Responsabilidade.com” sobre ética e sustentabilidade no jornal Le Monde. Tem passagens pela Reuters e grupos Folha, Estadão, Globo, Bandeirantes e Jornal do Brasil. E-mail: luizandre@fgvmail.br