TERRA À VISTA - Governar pelo vexame. Por Ana Paula Arendt.

‘Falta uma citação de Sêneca’, dizia Fernando Pessoa em um de seus poemas, para gozar da habilidade com que muitos se nivelavam em busca de reconhecimento. A maior parte da sua obra revisada e publicada postumamente, na qual ele descontava suas frustrações com o regime salazarista e, por essa mesma razão, mantinha discreta. Numa de suas grandes definições, fascista é o sujeito que providencia uma linha de ferro e um comboio para chegar pontualmente no enterro do seu pai.

Felizmente afirmamos que não corremos esse risco no Brasil. Possivelmente porque provavelmente no Brasil um aspirante a fascista poderia perfeitamente ser homossexual, pois no Brasil as ideias não costumam ganhar tanta coesão, e eu o imagino: estaria tomando chope, vendo futebol, e colocando a culpa do pequeno desempenho do PIB na feiura das mulheres. O fascista brasileiro é um oxímoro. Bem sabe de seu vexame.

Por outro lado, durante tantos anos empenhamos esforços mas não recebíamos pagamentos previstos, e não tínhamos tecnologia de cobrança por meio das redes sociais para estrelas e bilionários, concentrados nos países desenvolvidos. O Brasil quis acenar ao fascismo em protesto, pareceu-me, como se ser estúpido fosse uma proeza a ser protestada. Mas qual estupidez maior que a de não nos valorizar como somos e o patrimônio que temos? A nossa nobreza, que se destaca no mundo por ser dotada de bom senso e parcimônia, raras vezes encontrava espaço político e mínimos recursos para atuar favoravelmente ao interesse brasileiro; quando sabemos que na Europa, na Inglaterra, no Japão e na África as realezas trabalham por melhores realidades. A nossa realidade atual é a de que não está fácil para ninguém.

Isso me trouxe à memória um projeto de escrever algo sobre a arte de governar pelo vexame, quando se trata da necessidade de mudança de pensamento, de revezamento de poder. Ninguém abandona o poder senão pela força; ou pelo vexame. O vexame é preferível à insanidade e à guerra, para resolver disputas? Ou produz apenas maior risco de insanidade e guerra? Numa coluna passada, trouxe ao leitor um memorável texto publicado por Jonathan Switf, em 1702, no qual o autor inglês dispõe algumas regras básicas para os políticos mentirem com maior eficiência, com isso denunciando as táticas que os políticos de sua época adotavam para enganar o público, convidando-o a fazer parte da mentira deles. Do mesmo modo, deveríamos vasculhar um tratado que versasse sobre as regras e limites do uso do vexame como instrumento de governança?

A primeira vez que me ocorreu fazer uso desse expediente foi, naturalmente, em uma situação de sobrevivência política, em 2013. Por que outra razão uma pessoa preferiria produzir um vexame à normalidade das tratativas? Uma ameaça real produz uma certa sensação de confusão. Por que não há de repente o diálogo? Diante de uma ameaça real contra a vida e o patrimônio pessoal, causar um vexame à pessoa que lhe interpõe uma ameaça imediata poderá, contudo, fazer cessar a ameaça, tanto direta quanto aquela proveniente de uma fonte oculta, que lhe tenha sabidamente declarado animosidade ou desafeto. Bem sabemos que nem sempre essas declarações de desafetos são abertas, nem racionais. Quem governa as emoções? A bem da verdade, combater o constrangimento e a subtração de direitos com o vexame é uma tática de defesa, quando o diálogo falha por completo. Para o espectador desavisado, que não governa e só reclama, o vexame é uma falha moral inerente à pessoa na qual ele deseja sublinhar a culpa; para o expectador de fora dos acontecimentos políticos, quem governa pelo vexame se coloca em uma posição vulnerável, e torna-se alvo perfeito para que nele sejam despejadas as frustrações do próprio espectador. Mas para quem está em campo, não é bem assim.

Alguém poderia questionar a leitura sobre a possibilidade de um diálogo com quem sugere “uma boa bala”, como um professor de humanidades se manifesta no Rio de Janeiro hoje em dia. E existe diálogo quando um dos lados não está disposto a ceder para alcançar um consenso, ou quando se sabota acordos sem consulta prévia, ou quando o apelo à mentira é reiterado? Quando é possível, pelo contrário, geralmente se corrige a conduta que produziu o mal-estar e se divide o fardo das falhas humanas; a coesão social inerente à vida social. Mas quando uma autoridade deseja expurgar alguém, sabe-se lá por que razão, talvez pelo fascínio da conduta independente, ou neurose de um questionamento da autoridade imanente, o vexame me parece uma ferramenta válida de defesa; pois quem é atacado em um nível mais pesado, e tem de defender sua vida, não tem muita opção.

Haverá algum momento, certamente, em que talvez o vexame, assim como a mentira, se torna um recurso aparentemente brilhante, mas quando repetido, algo esfarrapado. Toda iniciativa para solapar uma situação que produziu o vexame, sem dúvida, virá para sanar esse problema num ambiente mais aquecido do que o inicial. A única saída se tornará a amizade e o relacionamento pessoal que valorizamos no Brasil. Ou a criatividade de pensar novas formas inusitadas de saída de um vexame. Alguns dizem sou especialista, mas meus bons olhos tendem a ser afiados sobre o incauto que se desconheça. Afinal, como ensinou o legendário Embaixador Bretas Bastos: a bondade é que desarma.

E na política, defendem-se os que provocam vexames de que tipo de abuso, exatamente? Talvez sobretudo da falta de informação. O vexame também produz muito conhecimento, sobre a pessoa que lhe oprime diretamente, sobre o seu relacionamento com os demais integrantes de uma frente, os caminhos de comunicação e as vias que poderão servir ao encontro de uma solução para o problema. Como a pessoa fica desarmada, busca instruções e transmite. E então é possível identificar a origem da ameaça que, em primeiro lugar, causou o desafeto, e trabalhar nisso.

A alternância de poder necessariamente passa pelo vexame, em alguma medida. Pois questionar a autoridade para substitui-la implica em corroer as bases de sua legitimidade, os pressupostos e fundamentos sobre o qual se construíram seu discurso. Valer-se do vexame é fascismo? É uma dúvida que tenho e cuja resposta suponho sabemos, quando o vexame se dá por asseverar propostas que provocam dor e sofrimento naqueles que estão implicados nele. Há o risco de um vexame implicar em violência, quando desencadeia enfrentamentos sem presença policial e Estado de Direito, como há o risco de se cortar, manuseando uma faca de cozinha fora da cozinha num beco escuro. Contudo nem por isso deixamos de usar faca de cozinha na cozinha.

Mas dar vexame em si não é ofender, nem necessariamente coisa de fascista, pois há vexames de esquerda e de direita, de norte e de sul. No médio e longo prazo, desgasta o seu autor com a recorrência, mas tende a re-estabelecer um equilíbrio, quando há reconciliação; muitos creem nisso, que a habilidade brasileira de contemporizar não tem limites, que as ondas políticas vêm e vão, desde que o mundo é mundo, e que um vexame quebra protocolos e torna possível uma proximidade que antes era inexistente; na diplomacia e na política, o valor político do erro é alto, a pedra preciosa da contrição consigo.

Mas nem sempre é assim. E de fato eis um pensamento mágico, pois não alcançaremos melhor situação depois de um vexame sem produzir com isso um esforço maior do que teríamos antes, de pensar outros caminhos. Contudo o risco na ausência dessa possibilidade, sem dúvida é maior: o abuso pode servir de instrumento a más finalidades, nas mãos de quem proclama abuso como forma de governo, e também maior risco são os carros sem freio; e se poucos consideram isto, é porque as pessoas tendem a se incomodar apenas quando se identificam com o público ofendido. Sou feia; então me revolto. Tenho um PIB pequeno; então me ofendo. Mas as ofensas praticadas contra conservadores seriam legítimas para lhes subtrair espaço… E, afinal, apenas quem dispõe de armas estará blindado contra o achincalhamento e o acirramento que disso decorre. E vem a elevação da violência recíproca, do clima de terror, não proveniente do fascismo; mas talvez da fadiga e de nossa pobreza de imaginação.

Um amigo certa vez me contou de um episódio de sua vida interessante que partilho. Ele teve de dar um voto de Minerva sobre uma caricatura que um jovem servidor, recém-admitido, teria feito a respeito de um diretor, seu superior, o qual reclamou à Administração de sua instituição sobre o rabisco, e compôs banca, e tudo o mais, para tirar satisfação. Aquela velha e boa arrogância mais tradicional do burocrata, o qual sempre se acha blindado pelo pequeno poder, da qual talvez estejamos tendo uma breve trégua, ao prestar devidas reverências hierárquicas. Afinal, o que o amigo presidindo a banca decidiu? Ele fez uma pergunta: como o diretor sabia que a caricatura se referia a ele mesmo, e não a outra pessoa?

De fato muitas vezes retiramos as coisas de contexto inofensivo e o agravamos para se adequar ao que, na verdade, nós mesmos pensamos sobre o assunto, tentando ganhar com isso terreno político. E onde estará, então, o crédito pela ofensa? Vide o vexame… E as boas risadas. Que ninguém jamais morra, nem se perca a alma nessas operações vexatórias, são as molduras históricas facilmente melhoráveis. A quem esteja no centro de um vexame, uma verdade: ninguém passa por um vexame sozinho… Ser detestado por criar e dominar seu próprio vexame faz parte de conviver com quem arroga ser dono desse expediente.

Sem dúvida eu vejo com muita tristeza uma situação política nacional quando não encontramos outro recurso disponível além do vexame, tendo em vista o hercúleo esforço para sair dele e provocar novos debates, para trazer novos assuntos, o que nos coloca ainda mais na dependência da aprovação alheia e da opinião pública estabelecida. É preciso pensar novos caminhos, porque talvez o bem maior que tenhamos seja querer voltar a uma situação de normalidade, na qual o que nos leva adiante é o incentivo e reconhecimento, e não a capacidade de lacrar em bate-bocas ou em pregar cartaz nas costas do colega. De todo modo, parece-me prudente começar a reclamar de terceiros vexames apenas quando estivemos crescendo a 5% ao ano, o que penso ser o necessário para nos darmos a esse luxo de reclamar, tamanhas são as dificuldades que no Brasil vivemos.

E qual a melhor reação a uma provocação de vexame, a alguém que chame não levar uma autoridade a sério? Como no caso da mentira, ao ser melhor combatida com outra mentira, melhor também seria combater o vexame com outro vexame? Nas minhas fontes bíblicas o Rei Davi deixou a provocação de um desafeto pra lá, porque não havia cometido contra ele nenhum abuso, preferiu ser feliz, e pelo que consta, viveu tranquilo com os seus. Cometeu outros erros, mas não esse.

Ana Paula Arendt é cientista política, poeta e diplomata brasileira. Escreve mensalmente a coluna ‘Terra à Vista’ no portal O.C.I.

Ressalva: os trabalhos sob o pseudônimo Ana Paula Arendt pertencem ao universo literário, refletem ideias e iniciativas da autora e não necessariamente posições oficiais do Governo Brasileiro. Tais trabalhos literários buscam estar em consonância com os valores e princípios da Política Externa Brasileira relacionados ao diálogo, à dignidade humana, ao desenvolvimento e aos direitos fundamentais do indivíduo. A autora está sempre aberta a sugestões e críticas.