Português é difícil ou é o sistema que tem que mudar? Por Simone Silva.

Para começarmos a falar sobre o ensino de Português no Brasil, a nível de Educação Básica, precisamos, antes de qualquer coisa, compreender a diferença entre dois termos: prescrição e descrição; pois é a partir da escolha desses métodos de ensino do Português “do Brasil” que se desenvolveu a falácia e, especialmente, a problemática de que “Português é difícil”.

A prescrição corresponde a um conjunto de regras, ações, passo a passo que devem ser cumpridos exatamente como prescritos para que se alcance um objetivo, se tenha êxito, como em um receituário médico. Essa é uma definição generalizada da palavra, mas podemos adequá-la para os mais diversos contextos, inclusive, para o ensino do Português, em que a tradição gramatical, através das gramáticas tradicionais, prescreve infinitas regras a serem seguidas, para que se aprenda “Português”, muitas destas regras, inclusive, já não fazem mais parte do Português brasileiro do século XXI.

No caso da descrição, o que ocorre é o detalhamento de algo, algum objeto, seja físico ou de estudo, ou alguma circunstância, que se apresenta a partir de um contexto. Nada é imposto ou modificado. Aqui, as coisas são apresentadas exatamente como se manifestam. Mais uma vez, essa corresponde a uma definição generalizada da palavra, mas que também se encaixa nos mais diversos contextos e, inclusive, se adequa, e muito, para o ensino do Português na Educação Básica e, agora sim, Português do Brasil. É este o método de ensino defendido por nós, linguistas, como o mais eficiente para que o aluno aprenda o Português brasileiro e desmistifique de uma vez por todas a sensação de que “Português é difícil”. Mas como fazer isso? Simples! Mostrando o verdadeiro Português brasileiro, o qual eles têm total propriedade, por ser uma “língua viva” e que está ao dispor de todos os falantes de Português brasileiro, o tempo todo.

Quando falamos em “língua viva” estamos dizendo que a língua, seja ela qual for, mas aqui nosso foco é o Português do Brasil, se molda de acordo com a realidade das pessoas, com o contexto em que os indivíduos se encontram (reuniões, encontros com amigos, encontros com orientadores etc.), com o tempo, com o espaço (norte, nordeste, centro-oeste, sudeste, sul, ou zona sul, zona norte, zona oeste etc.), com a idade (jovens, adultos, idosos) e outras coisas. Por isso, no Brasil, defendemos, ao menos nós, linguistas, que não existe uma só forma de falar e escrever Português, há variedades de falares e de escrita do Português, que estão totalmente relacionadas ao contexto político-social, porque a língua é, antes de mais nada, e, primordialmente, um objeto político-social. O nosso primeiro meio de comunicação, após as gesticulações, na primeira infância ainda, voltando-nos para a modalidade oral da língua, é a fala, começamos a falar Português, por volta dos três anos de idade, antes mesmo de entrarmos na escola para iniciarmos o processo de alfabetização. E ainda assim “Português é difícil”. Complicado de aceitar.

Contudo, ao passo em que defendemos o ensino descritivo do Português do Brasil na Educação Básica, não significa que, daqui por diante, as escolas não precisem ou não possam mais ensinar/mostrar a norma culta padrão no ensino do Português brasileiro, é claro que essa, enquanto uma das variedades do Português do Brasil, deve sim ser apresentada e cobrada em provas, testes e afins, mas tudo com ponderação e engajamento sócio-político, ao ponto de lembrar, essencialmente, que se trata do ensino do Português brasileiro e não do Português de Portugal, não havendo, assim, o porquê, por exemplo, impor aos nossos alunos que decorem (ops! “aprendam”) mesóclise ou utilizem, em seus textos, no que concerne ao quadro pronominal, a segunda pessoa do plural (vós), pois já não fazem mais parte da nossa língua do século XXI. Estão aí exemplos de prescrição, que tornam o Português “do Brasil”, de fato, difícil, mas a verdade é que aquela língua não nos pertence mais.

Sendo assim, acreditamos e defendemos, enquanto linguistas, que para o ensino do Português brasileiro eficiente e, ao mesmo tempo, coerente e facilitador ao entendimento dos alunos, devemos sim, ratificando, contemplar a norma culta padrão, porém, a nossa norma culta padrão, do Português brasileiro, e sempre de forma contextualizada, de modo que seja possível demonstrar/descrever o processo que a língua “percorre” e o porquê de se utilizar essa variedade num dado contexto. Mais que isso é importante mostrar as outras variedades também. Os falares brasileiros, sempre contextualizando e os fazendo compreender o processo a partir da descrição, nunca através da imposição: do “é assim porque tem que ser”. Isso não existe. Assim, certamente, a nossa língua, que, novamente, antes de tudo, é um objeto político-social, deixará de ser considerada “difícil”, porque passará a ser vista como de fato é. Os alunos se apropriarão da língua, que já é deles, sempre foi. Com isso, nos livraremos ainda, e que ótimo, de uma parcela dos preconceitos linguísticos (papo para outra hora). Portanto, para concluir, respondo o meu título: é o sistema que tem que mudar, como já havia sido dito por Charlie Brown Jr. e Negra Li.

Simone Silva ama trabalhar com o texto e suas mais variadas possibilidades de informar, persuadir e comover. É licenciada em Letras, Português e Espanhol. Mestre e doutoranda pela UFRJ. Professora de Português, Literatura e Redação.