NOVA COLUNA - Cidade e Psicanálise. Por Mariana Anconi.

O impossível de escrever a cidade.

Como escrever sobre a cidade quando quase todos os espaços estão fechados, a cidade esvaziada, os diálogos suspensos, os encontros limitados? Quando aceitei o convite dos editores do portal O.C.I. para escrever e ocupar este espaço (*), não fazia ideia que alguns meses depois o tema de minha escolha (cidade) que, até então, era fonte inesgotável de inspiração, se tornaria o mais difícil de transpor em palavras.

Há dois aspectos que gostaria de mencionar sobre a dificuldade de escrever. O primeiro relaciono com o problema de se sentir produtivo em meio a uma pandemia. E o segundo com a escrita como exercício de contradição. Sobre se sentir produtivo: é claro que isso afeta de formas e níveis diferentes a cada um, mas a dificuldade em produzir no trabalho é uma queixa frequente daqueles que me dedico a ouvir pelo menos uma vez na semana de forma online. Querer ser produtivo nesse momento é como se os pés estivessem presos a correntes, como estar no modo câmera lenta e tentar correr, ou ainda, sentir um bloqueio mental sem saber direito o porquê.

A produtividade nestes tempos tem sido questionada de muitas formas. Quando manter o ritmo de antes não parece ser mais possível, o que fazer? Pode-se ficar martelando nisso por muito tempo, se cobrando por não conseguir fazer do jeito que queria, ou poder formular uma questão sobre o ideal de se manter “produtivo”. Questionando inclusive qual a lógica dessa produtividade que se configura como impossível.

Esse impossível não necessariamente tem a ver com impotência. Nesse sentido, a psicanálise tem muito a acrescentar. Freud (1925) quando escreveu o prefácio do livro Juventude Desorientada, de August Aichhorn, disse que a psicanálise seria uma das três profissões impossíveis, ao lado de governar e educar. Nelas, há um fracasso em jogo. Essa afirmação causa até hoje debates e discussões interessantes. Aliás, destaco a palavra causa, porque nos interessa pensar sua articulação com a noção de fracasso, tanto na psicanálise como na escrita.

Seria escrever também um impossível ao lado do psicanalisar, governar, educar? Escrever é um ato de contradição. De perdas e ganhos ao mesmo tempo. Esvaziar-se de palavras para preencher o papel é também um exercício de deixar-se deslocar. Um deslocamento de si com alguns tropeços no caminho. Escrever, nesse momento de pandemia, sobre a cidade, é como um impossível e, por isso mesmo, passa a ser a causa desta escrita.

Como escrever sobre a cidade que desaparece? Ela ainda existe? Se a circulação pelos espaços está impedida, a escrita inspirada nas cenas do cotidiano desaparece. Claro, a cidade como aquela antes da pandemia, não existe mais. Talvez seja preciso inventar uma outra. Uma que seja possível.

Nesse último ano, o cinema e a literatura tiveram uma função interessante de resgate da cidade perdida na pandemia. Através da ficção podemos viver a cidade em seu impossível de ocupá-la. Procurei séries e filmes pelos quais sanei um pouco a saudade dos encontros nos espaços da pólis, dos laços feitos e desfeitos nesses territórios de afeto e linguagem.

As ruas estão esvaziadas, sem a multidão atravessando as faixas de pedestres, sem os olhares dos habitantes conhecidos como “olhos da rua” como diz Jane Jacobs (2000), que são olhos que protegem. As buzinas dos carros e o som da sirene dos bombeiros diminuíram muito. De repente, o conhecido passa a ser estranho. Que cidade é essa? A estrangeira não sou mais eu.

Desconheço a cidade assim como me desconheço nesse lugar não produtivo na pandemia. Pensar sobre a cidade neste contexto me faz lembrar do texto A cidade e a peste, de Marcelo Bueno. Ele afirma que, com a peste, “o convívio social se torna impossível em presença efetiva e plena, o ter lugar da palavra do cidadão fica abalado. A peste desorganiza o espaço do simbólico na pólis, esvazia o topos da ágora. Se o seu movimento é tomado de fora para dentro da cidade, esta desaparece no sentido oposto. Diante do risco de contaminação, a segurança encontra-se, por opção ou imposição, no isolamento do lar ou no seu abandono.(…) Sem palavra não há comunidade, e o homem é impelido a zoe“. (BUENO, 2020, p. 38).

Essa cidade Outra da pandemia, precária em palavras, é preciso também escutá-la em suas perdas na própria identidade. Há muitos traços que formam essa identidade. Poder lançar luz a estes traços perdidos é fundamental. São perdas que apontam para a escuridão do tempo atual que não se deve perder de vista. Como menciona Agamben (2009, p. 62): “(…) mas o que vê quem vê o seu tempo, o sorriso demente do seu século? Neste ponto gostaria de lhes propor uma segunda definição da contemporaneidade: contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”.

Nesse momento, vislumbro como possibilidade de escrita para os próximos artigos, nesta coluna, nomeada como “Cidade e Psicanálise”, um olhar para o impossível na cidade como causa para escrever o que surge no intervalo entre a luz e a sombra.

Referências

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Ed. Argos, 2009.

BUENO, M. A cidade e a peste. In: Psicanálise e pandemia. ORG: Fórum do Campo Lacaniano – MS. São Paulo: Aller, 2020.

FREUD, S. (1925) Prefácio à “Juventude Desorientada” de Aichhorn. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980 b. Volume 19.

JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Mariana Anconi é psicóloga e psicanalista. Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Psicopatologia e Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP). Idealizadora do projeto itinerante ‘Diálogos na Cidade: Arquitetura, Cultura e Psicanálise’. Mora e trabalha em Nova York – EUA.

(*) Mariana Anconi produz artigos para este O.C.I. desde junho de 2020. A partir de agora, mensalmente, publicará nesta sua coluna.