MONÓLOGOS FILOSÓFICOS - Platão: uma aula não questionada não merece ser chamada de processo educativo.

Eu costumo me descrever como uma professora desassossegada, pedagogicamente falando. Gosto de inventar novas formas de trabalhar com os estudantes – conteúdos, charges, músicas, dinâmicas. Tudo pra tornar a aula alguma coisa boa, agradável p’ra eles e p’ra mim também! O resultado disso costuma ir muito além do que eu espero. Alunos entusiasmados, emocionados, que aprendem e querem saber mais, me surpreendem com perguntas e atitudes incríveis, e na última semana não foi diferente.

Finalizávamos Platão naquela sexta-feira – a questão do conhecimento! Muito mito da caverna, mundo sensível cá, mundo inteligível lá. Chegávamos ao fim de uma série de aulas em que a razão ganhava privilégio sobre o corpo e que deveria, portanto, guiar as vontades e desejos como um cocheiro que comanda dois cavalos na estrada da vida.

Resolvi fazer algo como um ‘passa ou repassa’ entre equipes de quatro ou cinco alunos. Eram dez perguntas, e quem respondesse primeiro levava o ponto. Ao final, a equipe vencedora ganharia uma caixa de bombons. Eu realmente gostei da ideia de disputar perguntas sobre o caríssimo pensamento do Platão, mas fiquei com um problema – como ter certeza, a cada pergunta feita, de ter dado direito de resposta ao grupo que se manifestou primeiro. E aí teve de tudo: bater primeiro no quadro, colocar a mão na cabeça e levantá-la ao sinal, manter uma das mãos tocando o chão e subir no ‘já’. Teve até tira-teima com câmera lenta p’ra não dar erro.

Por fim, na segunda turma, tiveram a ideia de colocar uma garrafa de plástico no centro da sala, os grupos todos em volta dela, deveriam tentar pegar a garrafa para ter o direito de resposta. Assim foi feito umas seis vezes quando eu percebi que um dos grupos não havia conseguido pegar a garrafa nenhuma vez. Cheguei perto deles e os questionei, afinal onde estava a garra, a força de vontade? Foi aí que uma das meninas do grupo me mostrou que eu estava fazendo tudo errado. Ela me deu uma aula de como aplicar o sentido do pensamento platônico na essência daquela atividade:

– Professora, a gente sabe todas as respostas, mas não tem a chance de responder, porque não conseguimos pegar a garrafa. Esse método de escolha privilegia a força, o corpo e não razão, como dizia Platão. A disputa deveria ser a partir da entrega das respostas p’ra você. Assim, quem sabe responde primeiro. Se a resposta não tiver certa, você lê a segunda que foi entregue e assim vai.

Eu parei a brincadeira na hora. Aquela menina tinha entendido Platão e o sentido da brincadeira melhor do que eu! Olhei p’ra turma e disse em tom de brincadeira: – Gente, eu acabei de ser humilhada publicamente e eu adoro quando isso acontece. [Vale lembrar aqui, que ‘humilhar’ também pode ser considerado um verbo pronominal, cujo significado está em mostrar humildade ou se submeter ou render a alguma pessoa ou coisa. Uma pessoa pode se humilhar, demonstrando humildade].

Contei à turma sobre a conversa e os argumentos de alguns alunos e que precisávamos mudar as coisas. Claro que quem estava ganhando reclamou, disse que era historinha de perdedor, mas o fato é que os perdedores ali foram os sujeitos que tiveram a capacidade de ir muito além de responder perguntas conteudistas. Eles entenderam que ser um platônico é considerar a razão como guia da vida. E se Platão dizia que uma vida não examinada não merecia ser vivida, eu preciso parafraseá-lo dizendo que ‘uma aula não questionada não merece ser chamada de processo educativo’.

Quem sou: Roberta Melo, graduada, especialista e mestre em Filosofia; professora com quase 15 anos de carreira; autora do livro ‘Ressentir ou Afirmar? Perspectivas nietzscheanas sobre a dor’, editora Appris, 2018; autora de verbetes de Filosofia na Enciclopédia virtual ‘knoow.net’; apresentadora de vídeos sobre Filosofia no canal ‘Sopro de Atena’ (https://www.youtube.com/soprodeatena).