MÍDIA, SUBSTANTIVO FEMININO - Sobre sintaxe e culpabilização da vítima.

Nos últimos anos, o termo cultura do estupro tem sido cada vez mais usado. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), ‘cultura do estupro é um termo usado para abordar as maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens’.

Os dados disponíveis revelam que, no Brasil, essa realidade é algo impossível de se ignorar. Estatísticas do 9o. Anuário Brasileiro da Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, editado em 2014, apontam que o país tem um caso registrado a cada 11 minutos. Como o jornalismo trabalha com fatos, tais ocorrências costumam render manchetes nos mais diversos meios de comunicação – mais notadamente nas editorias de polícia, já que a atração do público pela morbidez (que já até é considerada um fator de noticiabilidade por alguns autores) é alta.

O problema é que, devido à sede do público pelos detalhes dos crimes, a cobertura de boa parte dos casos de estupro é problemática. Romantização do fato – como no uso do termo ‘encontros amorosos’ -, o detalhamento da vida pregressa da vítima e o uso do termo ‘sexo’ ao invés de ‘estupro’ – o primeiro pressupõe consentimento, e o segundo não – são algumas das más práticas que ainda são adotadas pela imprensa.

Há, ainda, um detalhe que, apesar de discreto, deve ser levado em conta: o uso da voz passiva. Trata-se de uma construção na qual o objeto direto de determinada ação passa a ocupar a posição do sujeito dentro de uma frase, fazendo com que tenha mais destaque. Como uma das boas práticas de redação jornalística é o uso de sentenças em ordem direta, os manuais da área desencorajam o seu uso em textos veiculados na imprensa, tendo em vista que essa estrutura tende a dificultar a sua compreensão, bem como comprometer a concisão do conteúdo. Apesar disso, a voz passiva é algo recorrente nas notícias sobre casos de estupro. Um homem não estupra uma mulher: uma mulher é estuprada. O mesmo se repete em matérias sobre outros casos de violência – um marido não bate em sua esposa, é a esposa quem apanha do marido.

Por que isso é importante? Simples: além de ser um recurso que dificulta a compreensão do texto, a voz passiva tem o efeito de ocultar os responsáveis por uma ação. No caso do estupro, que é um crime notavelmente subnotificado e com pouquíssimas condenações, isso é grave: o foco sai de seu perpetrador e se deposita na vítima. Consequentemente, ela fica ainda mais exposta, em um momento delicado por si só. Já o envolvimento do agressor é quase que solenemente ignorado.

Portanto, nesse caso, é interessante que o repórter use as boas práticas do jornalismo, e prefira sentenças em ordem direta. O primeiro motivo por trás disso é puramente técnico: tal medida facilitar o entendimento do leitor e acelera a leitura do conteúdo. Já o segundo é social: após um episódio de violência, a vítima se sente fragilizada. Caso ela seja exposta na imprensa, isso tende a agravar ainda mais a sua situação, bem como modificar a forma como o público vê e entende o episódio.

Por último, mas não menos importante, também é fundamental que o repórter tome outras ações, com o objetivo de reduzir o constrangimento da vítima. Afinal, de acordo com o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, é dever desses profissionais ‘combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza’, bem como ‘defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e das minorias’.

Felizmente, há uma série de materiais que podem ser usados para ajudar nisso. Um bom exemplo é o Minimanual de Jornalismo Humanizado, da ONG Think Olga: há uma série de dicas de linguagem e de apuração que evitam o desgaste da vítima. Além disso, é interessante usar o espaço da imprensa para prestar um serviço público, seja orientando a população a respeito de o que é estupro, a quem recorrer e como ajudar uma vítima desse tipo de crime. Assim, a imprensa será capaz de cumprir plenamente sua função.

Taís Arruda tem dupla diplomação em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e Universitat de Vic (UVic) e desenvolveu pesquisas na área de gênero durante a graduação. Atualmente, é assessora de comunicação e imprensa.