COMUNICAÇÃO ACESSÍVEL E SEM FRONTEIRAS - Mentiras fonográficas e os “surfistas” da censura na era das verdades digitais. Por Bruna Ramos da Fonte.

Quando Sidney Magal foi contratado pela Polydor na década de 1970, a gravadora achou que ele – na época com trinta anos de idade – estava “velho demais para ser um ídolo”, então para o lançamento do primeiro disco, decidiram cortar três aniversários da sua certidão de nascimento e os press releases apresentaram o artista para a mídia – e consequentemente para o público – com vinte e sete anos de idade. Desde então, todas as fontes constavam o seu nascimento no ano de 1953 – quando o correto seria 1950 – fazendo com que ele ficasse refém dessa mentira uma vida inteira. Quando começamos a trabalhar na sua biografia, uma das primeiras coisas que Magal pediu foi que utilizássemos o livro também para a revelação dessa história e da sua idade real para colocarmos um fim nesse constrangimento. Mas, apesar de ter gerado um incômodo para o artista durante décadas, essa é uma mentirinha mínima e inofensiva perto das dezenas que foram fabricadas pelo mercado fonográfico no passado.

Antes de entrarmos na era digital – quando a informação ainda não era tão acessível e sustentar mentiras era muito mais fácil – houve um tempo em que as gravadoras eram verdadeiras incubadoras de fake news, responsáveis por fabricar histórias fantasiosas para estratégias de lançamento de artistas e discos. Assim, foram muitas as histórias inventadas visando a construção de uma imagem interessante, misteriosa ou polêmica que pudesse alavancar a popularidade dos seus artistas e, consequentemente, as vendas. Se durante muito tempo essa prática foi tida como algo extremamente criativo e genial, hoje precisamos encarar o fato de que ela foi – na minha opinião – altamente condenável ao passo em que tais histórias subjugaram o público, espalharam boatos e enganaram um número incontável de pessoas. Se trata de uma tendência completamente desprovida de ética – quando olhamos através da ótica do mundo contemporâneo, é claro.

Seja como biógrafa ou como responsável por estratégias de comunicação de carreiras artísticas, ao trabalhar com grandes nomes da nossa música – principalmente aqueles que possuem carreiras mais longas –, verifico com uma frequência maior do que gostaria de admitir a presença de histórias inverídicas nas suas trajetórias. Por vezes, é chegado um momento na carreira do artista em que ele já não suporta mais conviver com aquelas mentiras que um dia alguém contou e – seja na sua biografia oficial ou em um pronunciamento nas redes sociais ou entrevista, por exemplo – ele decide revelar a verdade. Quando essa vontade acontece e o artista recorre ao meu trabalho, minha função é auxiliá-lo a comunicar a verdade para as pessoas que acompanham a sua trajetória de maneira honesta e verdadeira, a fim de que ele possa se libertar dessa mentira e se aproximar ainda mais do seu público. Além do mais, penso que o melhor sempre é assumir mentiras ou deslizes do passado antes que alguém faça isso por você; é melhor ter a oportunidade de contar a história com as suas próprias palavras do que, um dia, ser surpreendido com revelações deturpadas ou mal-intencionadas feitas por um terceiro. Não é possível apagar os erros ou mentiras do passado, mas é possível sim adotar um novo posicionamento – mais ético e transparente – sem perder a credibilidade. Penso que é este um dos pontos mais importantes no ofício de biografar artistas contemporâneos, dando voz para que possam contar verdades e mentiras, para que possam fazer as pazes com questões mal resolvidas do passado em um processo de revisão de vida e – porque não – de autoconhecimento.

É claro que o que intimidou a perpetuação dessas práticas e impulsionou tais revelações foi a popularização da internet e, consequentemente, a facilidade de acesso à informação: é muito mais difícil manter segredos e sustentar mentiras na era digital. Se antigamente era relativamente fácil comprar o silêncio de uma testemunha com dinheiro ou comprar fotografias indesejadas de um paparazzi antes que caíssem nas mãos dos jornalistas, hoje a situação mudou – principalmente quando se é uma pessoa pública –, pois discursos e ações precisam estar em perfeita consonância; caso contrário, ao ter uma atitude que esteja na contramão do seu discurso, seguramente vai haver alguém com o celular a postos para registrar ou uma câmera de segurança para filmar e testemunhar a realidade.

O público quer a verdade e já não é mais passivo como foi um dia. Hoje ele tem acesso à informação em tempo real, participa do processo comunicacional e constrói a notícia de forma participativa junto aos meios de comunicação, sendo muito comum que nos dias de hoje o “furo” por vezes seja dado não por um jornalista, mas pelo cidadão comum que tem o mundo inteiro nas mãos através dos seus tablets e smartphones. Com isso, ao mesmo tempo em que a presença da tecnologia pode ser, por vezes, extremamente incômoda, essa nova realidade também vem nos forçando – enquanto sociedade – a adotar coletivamente posturas cada vez mais éticas e transparentes. Nesse contexto, os artistas precisam administrar as suas carreiras de forma honesta, aprendendo a se pronunciar quando necessário, assumindo erros e acertos na mesma proporção.

Os tempos mudaram e é preciso mudar com o tempo. Se antigamente era comum esconder que determinado artista era casado ou tinha um relacionamento para não irritar as fãs, hoje o que vemos é o contrário: um grande número de fãs – quando têm a oportunidade de saber um pouco mais sobre a vida privada dos seus ídolos – vibra junto em momentos como o casamento ou a chegada dos filhos, por exemplo. Basta ver a ascensão dos programas de televisão que mostram o dia a dia e a intimidade do artista – a serviço de evidenciar que celebridade é “gente como a gente” – para comprovar que a verdade vende e eleva; não é necessário mentir para aumentar as vendas ou alcançar um sucesso maior.

A questão é que, se fossem apenas as gravadoras que tivessem criado mentiras no passado, o trabalho a ser feito hoje seria muito menor, mas é claro que essa não é a realidade e a prática estava infiltrada em todas as instâncias da sociedade. Portanto, é preciso cada vez mais refletir e analisar o discurso não só de artistas e celebridades, mas também de empresários, líderes, religiosos, políticos e das organizações: é preciso analisar se o discurso proferido está de acordo com as origens, história e ações daquela pessoa ou organização. Para um bom observador, a verdade aparece naturalmente quando se analisa o contexto de maneira global.

Mas, voltando à questão das mentiras fabricadas pela indústria fonográfica, eu não poderia deixar de comentar que, dentre todas as “tendências de mercado” praticadas no passado, penso que as mais graves de todas são aquelas que envolvem censura e questões políticas. Quando o Brasil estava sob uma ditadura militar e havia uma censura ao que se noticiava e ao que se produzia no campo das artes e da comunicação – uma censura que resultou na tortura e na morte de diversas pessoas, incluindo o jornalista Vladimir Herzog – houve um momento em que se entendeu que, se o público ouvisse algum burburinho sobre a presença de músicas com conteúdo subversivo em determinado disco, a curiosidade aumentava as vendas. E é claro que essa artimanha foi utilizada à exaustão por alguns artistas e gravadoras, fazendo com que muitas pessoas que jamais tiveram qualquer tipo de engajamento político ou social despontassem repentinamente como grandes porta-vozes de causas sobre as quais nem mesmo tinham conhecimento. Muitos artistas – sob orientação da gravadora ou por conta própria – acabaram “surfando” na onda da censura, transformando essa “persona subversiva” em uma tendência de mercado.

Muitos perderam a sua liberdade – e até a vida – em nome dos versos que cantaram. “Brincar” de ser subversivo, revolucionário ou idealista – e, principalmente, seguir sustentando essa imagem nos dias de hoje – é um desrespeito às pessoas que levaram suas causas a sério. Por mais que tenha sido uma prática comum naquele momento, penso que é preciso revisar essa história com urgência a fim de reescrevê-la dando o devido crédito a quem realmente se expôs e militou através da sua arte. Muito já se falou sobre censura e obras censuradas, mas pouco se fala ainda sobre os contextos reais em que tais músicas foram compostas; existem muitos artistas que hoje são pouco ou nada lembrados quando o assunto é música de protesto, mas que precisam urgentemente ocupar os seus lugares na história.
Para citar apenas um exemplo, raramente nos lembramos que no dia 1o. de abril de 1964 o grande sambista Luiz Ayrão – na época estudante de Direito e membro da União Nacional dos Estudantes – foi preso no Rio de Janeiro por estar envolvido no movimento estudantil. Durante todo o período do regime, ele se utilizou das suas músicas para transmitir mensagens que hoje são muito pouco valorizadas – perto da sua grandiosidade – porque o samba nunca foi levado a sério como música de protesto. Quando o governo militar completou treze anos no poder, Ayrão compôs um samba inteligentíssimo chamado “O divórcio (treze anos)”, onde se utilizou de uma situação característica da vida de um casal para expressar a vontade que uma grande parcela da população sentia de se ver livre daquele sistema de governo.

Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que no Chile – pertinho de nós – Victor Jara foi preso no mesmo dia em que aconteceu o golpe militar que depôs o então presidente Salvador Allende. Um cantor que valorizava aquilo que as mãos têm a capacidade de construir e realizar, ele teve as suas próprias mãos de poeta e compositor esmagadas a coronhadas, passou dias preso até o dia final em que quarenta e quatro tiros violentamente expulsaram o espírito do seu corpo. Acontecimentos como esse não podem – em momento algum – ser posicionados ao lado das mentiras fabricadas por aqueles que utilizaram o contexto a seu favor para vender mais; é preciso contar e recontar as histórias – da música e do mundo – para enfim separar o joio do trigo e dar o devido crédito a quem acabou sendo ofuscado por algum desses “surfistas” da censura.

Bruna Ramos da Fonte é biógrafa, escritora, fotógrafa ensaísta, professora e palestrante. Especialista em Leitura e Produção Textual com Aperfeiçoamento em Psicanálise Clínica, é criadora da sua própria metodologia no campo da Escrita Terapêutica. É autora de diversos títulos, incluindo “Escrita Terapêutica: um caminho para a cura interior” (Letramento, 2021) e as biografias de Sidney Magal e Roberto Menescal. Visite: www.brfonte.com