A criminalização da intolerância religiosa no Brasil. Por Angela Piotto.

Desde o princípio, as religiões estipularam quais deveriam ser as crenças das pessoas. Temos muitos exemplos na história, como as guerras bíblicas, ocasionadas pela adoração aos “deuses” escolhidos pelos povos da época. Nesse contexto, observa-se que a intolerância descamba para resultados infelizes, guerras contra judeus, contra mulçumanos, reforma Protestante, além das Cruzadas, exterminando milhares em nome de “Deus”.

No Brasil, sabe-se que índios, além de serem caçados e torturados, eram privados de cultuar suas divindades, sendo forçados a aprenderem e se integrarem à religião dos jesuítas. Não obtendo o êxito esperado junto aos indígenas, portugueses e outros europeus que aqui estiveram iniciaram a escravização de negros africanos e esses “adaptaram-se” para poder cultuar suas tradições, iniciando, deste modo, o sincretismo religioso.

Mesmo os escravos adaptando seu culto religioso e realizando um “embranquecimento” de suas entidades, isto ainda não foi o suficiente para eliminar as perseguições. Muitos foram aprisionados em mosteiros e conventos, sendo obrigados a professar a fé católica. Outros foram mortos, acusados de heresia.

O culto de candomblé iniciou-se no Brasil em meados do século XVIII e, em 1888, foi sancionada a abolição da escravatura no Brasil. Com a ocorrência do sincretismo religioso, a Umbanda nasce no Brasil em 1908, trazendo em sua origem uma pluralidade de culturas indígenas e africanas, influenciadas até mesmo na nomenclatura dos santos católicos, com as suas divindades próprias.

Entretanto, mesmo após o fim da escravidão, ainda persistia o estigma religioso, e muitos continuavam sendo julgados por suas crenças. E até hoje vivenciamos violações sociais, de raça e credo, aqui no Brasil e no mundo todo.

O Código Penal Brasileiro, que data de 1940, declara:

Art. 208 – Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso. Pena: detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Parágrafo único – Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.

Mesmo com o Código Penal em vigência há mais de 80 anos combatendo a intolerância religiosa, ainda nos encontramos em grande retrocesso. Nossa Constituição Federal de 1988 determina o respeito à Dignidade da Pessoa Humana:

Art. 5o. – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

VI – É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

A Constituição Federal – sendo a Lei Maior -, deveria ser respeitada, porém, por inúmeras agressões a templos religiosos, foram sancionadas, as demais leis, a fim de resguardar a liberdade de crença.

Vale ressaltar que intolerância religiosa recai em discriminação, tipificando crime:

A Lei 9.459, de 1997, sancionada no governo de Fernando Henrique Cardoso, considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões. Ninguém pode ser discriminado em razão de credo religioso.

O crime de discriminação religiosa é inafiançavel – o acusado não pode pagar fiança para responder em liberdade – e é, também, imprescritível, ou seja, o acusado pode ser punido a qualquer tempo. A pena prevista para este crime é de reclusão por um a três anos e multa.

Entretanto, apesar de todo o ordenamento jurídico determinar a conduta como crime, no ano de 2000, a Iyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, faleceu em decorrência de um ataque motivado por intolerância religiosa.

A Iyalorixá baiana, conhecida como Mãe Gilda, teve sua casa e terreiro invadidos por um grupo fundamentalista de outra religião, Com a saúde fragilizada, agravada pelos ataques, Mãe Gilda morreu em 21 de janeiro de 2000, vítima de infarto.

Em homenagem à Iyalorixá, a data foi instituída como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, em 2007, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, via decreto-lei 11.635/ 2007, de 21 de janeiro de 2007.

As religiões de matriz africana continuam sofrendo com o desrespeito à ancestralidade. No início deste ano, a sanção presidencial da Lei 14.532/23 equipara injúria racial ao crime de racismo e protege a liberdade religiosa. Agora, o crime pode render de 2 a 5 anos de prisão.

Ainda é possível observar que a intolerância religiosa afeta a vida particular e profissional das pessoas conforme o relato a seguir, de Pamela M.:

“Mês de março para abril, realizei uma entrevista de emprego e passei na entrevista. Desde o primeiro instante, o chefe deixou bem claro a sua opção religiosa, ele era evangélico e pregava a palavra. Do meu ponto de vista, não havia problema algum. Eu me mantive com minha guia de proteção no pescoço e, então, e como eu havia sido indicada por uma funcionária deles, pensei que todos soubessem. Iniciei o período de experiência e, após 15 dias, fui chamada para ter um feedback com o ele e com a supervisora. Ele iniciou a conversa dizendo que ali era um local que pregava a palavra e qque ‘só Jesus salva’. Em determinado momento fui questionada sobre o como me sentia. Respondi que me sentia desconfortável pois pensei que era um feedback profissional. Ele continuou dizendo que sabia do incômodo pois a religião que eu seguia cultuava demônios; que eu não servia a Deus; que essa tal Iemanjá e Pretos Velhos poderiam fazer quando eu fosse para o inferno, que lá só teria ranger de dentes e dor, e ninguém iria me ajudar. ‘Para continuar na empresa tem que seguir o caminho correto que é Jesus, porque a empresa é um hospital e não é muro, e você está em cima do muro, e essa religião, não vai te levar a lugar nenhum…’. Foi desligada a câmera, e ele encerrou impondo que, ou eu servia à religião dele, ou eu poderia me retirar”.

Infelizmente, a intolerância religiosa em grande parte ocorre dentro da família. Muitos pais não aceitam a opção escolhida pelos filhos, julgando-os e impondo seus posicionamentos. A pressão da sociedade é tão grande que muitos sentem-se coagidos a não proferirem sua fé em locais públicos ou até mesmo no lar.

Em todo o ano de 2021, foram 1.017 denúncias. Segundo a Secretaria de Direitos Humanos, as denúncias pelo canal “Disque 100”, em razão de crimes de discriminação às crenças religiosas cresceram mais de 600%.

O Disque 100 é um serviço de disseminação de informações sobre direitos de grupos vulneráveis e de denúncias de violações de direitos humanos, como os de crianças e adolescentes, pessoas idosas, pessoas com deficiência, população LGBT, população em situação de rua, entre outros.

O serviço funciona diariamente, 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados.

As ligações podem ser feitas de todo o Brasil por meio de discagem direta e gratuita, bastando discar 100.

Vamos combater a intolerância religioso, culto ao sagrado é um direito de todos.

Angela Piotto é graduada em Direito, pós-graduada em Direito do Trabalho, Direito de Família e em Psicologia Jurídica e Avaliação Psicológica. Atua como Terapeuta Integrativa.