Quando a exceção vira norma. Por Lygia Maria.

Deu ontem na Folha de S. Paulo (Opinião), e reproduzimos:

Usar o medo coletivo para suspender garantias individuais é ferramenta de regimes anti-democráticos

Quando a ministra Cármen Lúcia proferiu seu voto a favor da proibição da exibição de um documentário até o fim do segundo turno das eleições no ano passado, disse: “Eu vejo isso como uma situação excepcionalíssima”. A exceção era o pleito. Para protegê-lo, valia até ir contra a jurisprudência do STF e a Constituição, que impedem a censura.

Passados oito meses, a ideia de “excepcionalidade” foi usada pelo ministro Alexandre de Moraes para censurar Monark – ao ordenar o bloqueio de todas as contas das redes sociais do influencer, que havia feito críticas ao STF, ao TSE, e questionado a lisura das eleições.

A decisão diz que, para conter instigadores de atos antidemocráticos, é permitido “o afastamento excepcional de garantias individuais, que não podem ser usadas como escudo para atividades ilícitas”. Qual atividade? Difundir notícias falsas.

Ora, Monark não é jornalista e estava numa entrevista fazendo inferências. É opinião, não notícia. Opinião sempre tem lado e muitas estão erradas. Vamos criminalizá-las?

Ainda pior, criminalizar a partir de futurologia: tal opinião pode vir a incentivar um ato golpista sabe-se lá quando. Não é preciso apoiar as ilações de Monark para notar que a suspensão de garantias individuais nesses termos é um ato temerário.

Durante o pleito, o TSE cometeu alguns abusos com base no medo de que a democracia fosse solapada, e o STF parece ainda seguir essa linha – Alexandre de Moraes entregou sugestões para o PL das Fake News e, entre elas, estava a manutenção de métodos usados nas eleições.

Mas o medo é mau conselheiro. Em “Origens do Totalitarismo”, Hannah Arendt mostra como governos usam o medo coletivo, criando inimigos internos e externos, para consolidar poder e justificar repressões.

Não estamos numa ditadura, por óbvio, mas infringir a liberdade de expressão a partir do medo de uma abstração não é uma ferramenta democrática. O medo gera a excepcionalidade, e sempre há o risco do excepcional virar a norma.

Lygia Maria é mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.