PSICANÁLISE E CIDADE: Do 'flâneur' ao anti-cidadão. Por Mariana Anconi.

‘Você sabe com quem está falando?’.

Se não estivéssemos no contexto atual político e histórico poderíamos interpretar esta fala como um sério problema de perda de memória ou de identidade. Porém, cada vez mais temos notícias de pessoas que circulam pela cidade que se utilizam desta frase – ou de sua lógica – para escapar às regras na pólis, por exemplo, em relação ao uso da máscara de proteção ou para evitar aglomerações.

Com os episódios em que alguns precisam se reafirmar a partir de sua formação ou cargo profissional para destacar-se (leia-se no sentido de descolar-se) do lugar, por exemplo, de cidadão, me ocorreu pensar sobre as subjetividades que nossas cidades estão produzindo. Entendendo aqui o termo cidade como algo que engloba cultura e discursos em um contexto histórico e político.

As cidades atravessadas por suas memórias, traumas, espaços, discursos produzem o que chamamos aqui de ‘subjetividades’. Não estamos falando de estruturas clínicas, mas algo que se refere a uma atitude que aparece no espaço público como resultado das relações entre os fenômenos urbanos e a forma como se vive a cidade.

A recusa em ser mais um na multidão não é necessariamente um fenômeno atual, porém o que chama atenção está no fato de que não é somente a elite que reivindica esse lugar de destaque especial, mas também a classe média.

A ideia de ser especial e que não seja confundido com um mero ‘cidadão’, responde também a demanda de ser um profissional de sucesso. Hoje vemos inclusive os desdobramentos dessa lógica no neoliberalismo a partir da ideia do ‘empreendedorismo de si’, ou seja, o ‘Eu’ não é mais um em meio a multidão. Posição esta oposta, por exemplo, a uma figura bastante explorada por escritores na época do advento da cidade moderna: o flâneur.

O flâneur é descrito como aquele que desliza e circula pela cidade com facilidade. Benjamin o associou especialmente às ruas de Paris e ao fenômeno da multidão surgido na modernidade, também muito associado a Charles Baudelaire e seus escritos. O flâneur é o cidadão que circula em uma errância, ou seja, que está em todos os lugares e, ao mesmo tempo, em nenhum. Não há nada de especial em sua posição.

O surgimento desta figura representa as mudanças na sociedade no século XIX. As produções artísticas atravessadas por essas mudanças espelhavam nas pinturas impressionistas os grandes bulevares e cafés construídos. Na arquitetura o uso do vidro nas construções marca esse momento. Marca, aliás, a passagem de uma cidade murada para a cidade ‘aberta’. Quem estava dentro dos cafés podia ver quem passava na rua. O público e privado entraram em contato.

Dessa forma pensamos o flâneur como produto de vários fatores da época, inclusive dos espaços da cidade. Sua existência foi possível devido as construções, por exemplo das ‘passagens’ em Paris que eram as galerias de comércio com espaço para que as pessoas pudessem passar, ou flanar.

Em um salto do século XIX para hoje: Seria o flâneur impossível de ser um produto deste tempo?

Hoje vemos que sua circulação ganha consistência nos espaços virtuais. Flanando de site em site, de perfil em perfil. Flanar é considerado por alguns como a arte de andar, mas sabemos que esta ‘arte’ está ameaçada em diversas cidades se considerarmos aspectos como a violência urbana, a construção de cidades para carros e não pessoas, etc. O flâneur assim, parece perder lugar em algumas cidades quando não mais consegue circular.

Se o flâneur foi uma produção subjetiva da cidade moderna, qual seria uma das subjetividades produzidas no contemporâneo?  Hoje, vemos o avesso do flâneur. Alguém que impõe um Eu que vê a si mesmo como superior. Um delírio? Uma neurose narcísica? Quando alguém o lembra do lugar de cidadão, comum aos demais, se indigna. Não se reconhece no espaço ao qual faz parte.

Uma recusa a se misturar na multidão de cidadãos ou, ainda, uma recusa que o outro possa circular pelos espaços que ele frequenta. Temos visto o anti-cidadão que, para garantir sua existência, recorre a uma hierarquia imaginária. Uma errância não em relação à cidade, mas a si próprio. Talvez ele mesmo já não saiba mais o seu lugar.

Mariana Anconi é psicóloga e psicanalista. Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Psicopatologia e Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP). Idealizadora do projeto itinerante ‘Diálogos na Cidade: Arquitetura, Cultura e Psicanálise’. Mora e trabalha em Nova York – EUA.