Entre vozes: o direito à psique na cidade. Por Camille Soler.

O papel da arte e a psicanálise são eixos fundamentais nesta conversa, em vários aspectos, principalmente para se pensar sobre a psique na cidade neste momento sombrio da história, na medida em que nos tornamos reféns de nossos medos e incertezas históricas mais arcaicas, como por exemplo: guerras, lutas, encruzilhadas, fome, grandes pandemias, enfermidade e morte.

A arte e a psicanálise são fundamentais para refletir e produzir diálogos, coletivos, ideias, vozes que circulam na cidade, na alma da cidade. Portanto, um grupo, uma cidade, são constituídos de e por palavras, sentimentos, sentidos, caos, ações, corpo, arte, som, sabor, odor, cores, movimento, natureza, relevo.

A arte e a psicanálise podem equivaler-se da mesma matéria-prima: o ato. Primeiramente, fazem referência ao caos do real, são recursos, ferramentas, organizadores do caos em que estamos imersos no século XXI – o nonsense valerá de um sentido.

Freud em seu célebre texto “Sobre a transitoriedade” escreve sobre a conversa que teve com um poeta sobre a arte e a beleza como transitórios na vida. Ele escreveu: “Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois, irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis”.

Ao iniciar a nova década tivemos o dissabor da pandemia Covid-19 – a primeira pandemia do século XXI, assim, nos isolou e nos silenciou metaforicamente e literalmente com uso de máscaras, o “Cale-se” de Chico Buarque. Assistimos a olho nu o desmatamento da floresta Amazônica e junto com isso catástrofes políticas, sociais econômicas que assolaram o mundo. O rei está nu! Nos avisa a inocente criança.

A líder indígena Alessandra Munduruku, em 2019, em seu ato emblemático envolto em uma atmosfera pesada e sombria no Congresso faz um apelo desesperado por respeito às populações indígenas e respeito na demarcação de terras indígenas, denunciando assim a invasão do discurso colonialista evangélico dividindo sua gente e madeireiros devastando sua terra. Era somente um prelúdio do que estava por vir com a chegada da pandemia de Covid-19 em 2020.

Não se trata somente da “demarcação de terras” embora seja sobre isso. Entretanto, a “delimitação” que eu escuto é justamente a “delimitação” da “pequena diferença” – a colonização do outro. Entretanto, a pequena diferença é fundamental para ser pensada a partir da nossa própria constituição como humanos, como sujeitos individuais no coletivo, e, portanto, nos tornamos sujeitos de direitos na medida em que o diferente se faz presente de uns e outros (crenças, mitos, ritos etc.), embora sejamos semelhantes como humanos somos diferentes como sujeitos. Esse mal-estar na civilização indubitavelmente influenciou Freud e sua observação central sobre a tensão entre o indivíduo e a civilização.

A alma que reside e resiste na cultura está intimamente representada pela e na criação do seu povo, em sua comunidade, e, portanto, em sua continuidade a partir da transmissão escrita e oral (idioma, vocabulário, arte, mitos, ritos) entre gerações posteriores. Lutamos e ecoamos entre vozes, nas entranhas da polis.

A psique na cidade significa ressignificar nossas diferenças no e com o coletivo, para articular contratos – social, afetivo e capital -, para formalizar novos pactos. O povo está cada vez mais enfermo da alma, de escassez diversa: comida, trabalho, amor, direitos, saúde, moradia, arte, esporte, presença física, meio ambiente, ritos, pactos etc.

O apelo ao direito à psique na cidade, no campo, no grupo, na tribo, não importa, o que se trata mesmo são dos direitos do sujeito e a valorização à vida daqueles que habitam uma terra ou uma pedaço de terra; na cultura, seus ritos, mitos, crença, valores, nossos vizinhos de terra – cercana ou longínqua -, o estrangeiro tratado como inimigo que, portanto, será colonizado. Entre vozes significa acima de tudo conversar, dialogar sobre a diferença cultural, sobretudo escutar entre muitas vozes um denominador comum: a psique, a alma daqueles que habitam a cidade.

Como anda sua psique na cidade? O modo de estar no mundo se transformou porque, de fato, se for para refletir e conjecturar sobre isso, tenho uma tese que compartilho com vocês; na real, o que temos em comum, entre muitas coisas: a mudança, a diferença e a similitude. E o tempo que há entre cada uma destas coisas. Isto é simplesmente lindo de ver e constatar que, entre uma coisa e outra há o conflito.

As certezas deram lugar às incertezas, dúvidas, medos e o desalento à fragilidade, mas será que o desamparo nos enfraquece ou nos garante uma potência? Do ato, da resistência, da criação de sobrevivência mesmo! O lugar da circulação da palavra torna-se indispensável para escutar as diferenças, as similitudes, a subversão, o privado, o individual, o íntimo, o coletivo, o estranho e o familiar de nós mesmos diante da vida, do impensável, do nefasto, da existência, da beleza, do que não é mais o mesmo, ser de outro jeito, ainda que não saibamos como será. Eu deixo a pergunta com o poeta: o que será o amanhã? Me responda quem puder, o que irá me acontecer? E eu te garanto uma coisa, ele será como você quiser.

Referências

Freud, S. (1916/1915). Sobre a Transitoriedade das Obras Completas vol. XIV. Rio de Janeiro. Ed. Imago.

Freud, S. (1921/2011). Psicologia das massas e análise do eu, in Obras completas vol. XIX. São Paulo: Companhia das Letras.

Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização. In S. Freud. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud (vol. XXI). Rio de Janeiro. Ed. Imago. (Obra original publicada em 1930).

Quebrando tabu (2019). Alessandra Munduruku, líder indígena, no Congresso Nacional (https://fb.watch/5Zav6gw6WB/).

Camille Soler é psicóloga e psicanalista com pós-graduação em Psicologia Clínica no Instituto de Psicología Clínica (Universidad de la República), Montevideo, Uruguay. Integra o grupo de investigação Lazo Social y Construcción de Caso Clínico, no Instituto de Psicología Clínica y Pasante Académica en la Clínica de la Unión, UdelaR, Montevideo, Uruguay. Idealizadora do projeto “Divã Online”, consultório particular presencial e online: Psicanálise, Saúde Mental e Cultura. Mora e trabalha em Montevideo, Uruguay.