PENSANDO ALTO - O imperativo da felicidade e 'O Coringa'.

Com certeza nesse último mês pelo menos uma pessoa te perguntou ”Já assistiu ‘O Coringa’?”.

Um dos filmes mais esperados do ano, premiado com Leão de Ouro em Cannes, dirigido por Todd Phillips e estrelado pelo brilhante Joaquin Phoenix, conta a história que já faz parte da cultura popular ocidental há 80 anos. Mas dessa vez, por uma perspectiva diferente.

A produção nos envolve em uma densa narrativa protagonizada pelo já conhecido vilão dos quadrinhos da DC Comics: nos conta suas origens, sua psique, seus questionamentos e vivências.

A trilha sonora, paleta de cores e fotografia ajudam na proposta de produção de um filme integralmente denso, desconfortável e impecável, e também chamado pela crítica de ‘irresponsável’ e ‘perigoso’. A polêmica se dá por seu possível incentivo, ou justificativa, à violência. Arthur Fleck é um homem de meia-idade que possui diversos distúrbios mentais. É ignorado pela sociedade, é negado ao incentivo do governo para que ele trate sua saúde mental, é humilhado no trabalho e sofre agressão física. Trabalha para uma companhia de entretenimento que terceiriza o serviço de palhaços fantasiados. Vive com sua mãe, que também tem uma história particularmente recheada de complicações, é financeiramente responsável por ela, e não sabe quem é seu pai. É claramente um sujeito que enfrenta diversas barreiras para a inserção na comunidade econômica, política e afetiva, e em sua formação como indivíduo social. Além disso, o filme faz questão de expor que o ambiente no qual ele está inserido é extremamente problemático. Violência extrema, desigualdade na distribuição de renda, extremismos políticos e o entretenimento cego para velar questões sociais. E um dos debates que o filme apresenta é se a violência que o personagem gera – e em é incluído – pode ser justificada, ou pelo menos explicada, pela sua condição social. De quem é a culpa? O governo e a sociedade podem isentar-se integralmente da responsabilidade de formar e abrigar um esse homem?

Além de todas essas questões, há um ponto muito interessante na construção narrativa do filme, presente em vários detalhes. Arthur, um homem com todo o currículo emocional e psicológico que vimos acima, entra em contato e é influenciado diversas vezes por representações coletivas de felicidade. Num primeiro momento, pode até parecer contraditório ter esses signos opostos essenciais na construção do personagem, mas será que esses extremos não estariam relacionados?

Arthur, ou Happy, como sua mãe o apelida (‘Feliz’ traduzido para o português), tem como um de seus distúrbios psicológicos começar a rir descontroladamente todas as vezes que se sente socialmente pressionado. Analisando esse fato semioticamente, nos relembra o fator mundial que a sociedade pós-moderna capitalista sofre e pressiona, impõe e ao qual é imposta. A de nos expormos felizes o tempo todo. O desconforto se torna risada. O silêncio e a seriedade, o sofrimento humano e o vazio da existência não têm espaço, já que essa reflexão pode fazer com que as engrenagens do sistema parem de girar. Nunca se valorizou tanto o sucesso, a progressão individual e a demonstração das próprias conquistas, fatores muito importantes economicamente para a produção e consumo de bens.

A mãe de Arthur sempre disse que ele veio a esse mundo para ‘sorrir e fazer uma cara feliz – ele nasceu para espalhar alegria pelo mundo’. Desde pequenos, somos ensinados que o nosso objetivo de vida é ser feliz. No entanto, nunca ninguém nos detalhou como chegar até a felicidade. Mas nos foi ensinado, sim, que nós mesmos somos responsáveis por isso e que depende de cada um, ignorando todos os fatores externos e pressões que nos atingem e nos influenciam. E isso nos leva a uma relação muito estreita entre felicidade e individualismo, construída e pautada nas estruturas sociais.

Arthur se depara na saída de seu trabalho com a frase ”don’t forget to smile” (”não se esqueça de sorrir”), com as palavras ‘forget’ e ‘to’ riscadas, adaptando a frase para ”não sorria”. O entretenimento, a mídia e as redes sociais nos fazem entrar em contato – a todos momento – com pessoas extremamente felizes, realizadas, cheias de si. Demonstrar fragilidades e questionamentos é errado, é indelicado. Fala-se apenas do que é bom. E o sorriso se torna mais uma obrigação social, perdendo sua profunda honestidade.

O sorriso do Coringa sempre foi sua representação mais forte, e o que antes de entendermos sua história poderia ser interpretado como diabólico e assustador, pode, depois desse filme, ser uma representação da pressão e do caos social, que foi de onde esse sorriso surgiu e evoluiu.

E finalmente, Coringa encontra a sua identidade na insanidade. Sua existência e própria representação na loucura. O marco dessa descoberta é encenado quando ele dança ao descer as escadas, que por vezes subiu com tristeza, no início do filme. É genuinamente sorrindo e dançando que ele realiza movimento contrário ao da ascensão social, em todos os seus sentidos.

Trazendo essa questão para nossas vidas, quanto esse ‘imperativo da felicidade’, conceito do autor João Freire Filho, pode nos impactar? O quanto essa reflexão nos paralisa, dadas as nossas construções de sociedade do consumo? Somos genuinamente felizes? Paramos para pensar sobre? Ou estamos vivendo isso no modo automático, nos obrigando a ser o que o outro chamou de feliz? A comparação de felicidades sempre foi o termômetro para respondermos a essa pergunta. Mas por que justo esse sentimento, que supostamente deveria ser tão precioso e particular, tão mágico e aproveitado, precisa vir de fora?

O que nos foi ensinado ser felicidade?

Giulia Romanelli é publicitária de formação. Leitora e escritora de essência, é atriz amadora, fascinada por reflexões humanas, Filosofia, e pelas relações sociais.