MUNDO AFORA - Hong Kong: um país, dois sistemas.

Há três meses atrás, todos os sites de notícias se transformaram em sites de notícias sobre coronavírus. Era uma novidade – ainda é -, porém, com o passar do tempo, os ventos foram mudando e as colunas editoriais abriram espaço novamente para outras discussões que estavam no auge de suas complicações.

O mundo parou com a chegada da pandemia. Três meses depois dos problemas e um senso de ‘normalidade’ tem voltado aos poucos aqui no continente europeu. O mundo está voltando e as lutas e conflitos diários também. Esses nunca irão passar. A História pode mudar a cada segundo da nossa existência, mas os conflitos, interesses e sede de poder continuarão a fazer parte das nossas rotinas. E é aí que assunto da coluna dessa semana entra em contexto.

Aqui no Reino Unido, um dos assuntos mais comentados na mídia tem sido as intensas rebeliões entre os Hong Kongers e o governo chinês. Uma série de protestos violentos acontecem na cidade há mais de um ano, tendo sido provisoriamente interrompidos pela pandemia do novo coronavírus e reiniciados recentemente.

Para entendermos melhor o cenário atual, é preciso voltarmos ainda ao século XIX. Após a Primeira Guerra do Ópio, a ilha de Hong Kong é cedida ao governo britânico pelos chineses mediante o Tratado de Nanking, de 1842. Alguns anos depois veio a Segunda Guerra do Ópio, e mais dois territórios foram anexados à ilha: Kowloon e a Ilha de Stonecutters. Esses territórios foram arrendados pelo governo britânico por 99 anos, se encerrando o período em junho de 1997.

De território de refugiados políticos chineses à crise econômica causada pelo crescimento do comunismo na China, a ilha de Hong Kong foi de território britânico ao chinês em pouquíssimo tempo. Basicamente operando como ‘um país, mas dois sistemas’.

E é exatamente sobre isso que trata a Declaração Conjunta assinada pelo Reino Unido e China em 1984 – a China prometeu que não iria impor o sistema socialista em Hong Kong, se encarregando apenas da política exterior e defesa do território.

Sendo assim, Hong Kong teria autonomia e liberdade para tratar de suas próprias questões, algo inexistente na China continental. Então, entendendo que a política muda constantemente e se tratando, a China, de um país com fortes tendências ditatoriais, essa ‘liberdade’ concedida a Hong Kong começaria a declinar com o passar do tempo.

A perseguição do governo chinês em questões democráticas envolvendo cidadãos de Hong Kong começou a se tornar um problema constante. Entre acusações de grupos de direitos humanos, desaparecimento de livreiros, magnata preso na China continental, a grande censura envolvendo artistas e jornalistas, o povo de Hong Kong começou a sentir na pele que essa liberdade, na verdade, tem seus limites – e limites que não o favorecia como um território independente.

Nesse meio tempo surgiram boatos de uma nova lei de extradição chinesa. Essa nova lei significava muito para o povo de Hong Kong em termos de liberdade, mais uma vez. E foi a partir desse momento que as manifestações começaram a ganhar fôlego na ilha.

Os manifestantes acreditavam que a lei de extradição colocaria em risco a autonomia política e democrática de Hong Kong para o governo chinês. Em tese, eles acreditavam que essa lei poderia colocar em risco a vida de pessoas que se opunham ao governo da China.

Os protestos começaram em meados de junho de 2019. Em suma, os protestos têm sido violentos e non-stop. Em razão disso, o governo chinês recuou com a lei, mas os protestos continuaram. O povo de Hong Kong alegou que não pararia com os protestos até que a lei fosse 100% revogada em termos oficiais. Além disso, houve outras manifestações contra o uso excessivo de força e violência policial em contrapartida aos atos pacíficos dos manifestantes.


Foto: Reuters, Thomas Peter, Hong Kong, junho de 2019.

Os grupos se formam pelo aplicativo Telegram com o objetivo de reunir o maior número de pessoas possível. Os primeiros protestos reuniram cerca de 2 milhões de pessoas. Normalmente, as convocações são feitas anonimamente, por meio de mensagens criptografadas.

Hong Kong hoje

Milhares de pessoas em Hong Kong votaram nas primárias pró democracia neste último final de semana (12/07). Entretanto, ainda existe a forte preocupação de que isso poderá violar uma nova lei de segurança.

Segundo o governo chinês, a lei é necessária para precaver protestos de cunho violento em Hong Kong, como aconteceu em julho do ano passado.

Sunny Cheung, em uma entrevista concedida à agência de notícias Reuters, disse:

‘A alta participação enviaria um sinal muito forte a comunidade internacional, de que nós, os Hong Kongers nunca desistiremos’.

Foto: Gabriela Moliver – Londres, julho de 2020.

Mas enfim, o que a nova lei sugere?

– O incitamento ao ódio proveniente do governo chinês se tornará ilegal;
– Os julgamentos serão permitidos de ser realizados a portas fechadas, com escutas telefônicas de suspeitos ou potenciais suspeitos;
– Danos ao patrimônio público durante uma ampla gama de atos serão considerados terrorismo;
– Dados de internet poderão ser usados para investigações, caso sejam solicitados.

Hong Kong e o Reino Unido

Hong Kong pertenceu ao território britânico até junho de 1997. Desde então, existe uma diplomacia entre os dois governos em relação à residência e cidadania dos Hong Kongers na Grã-Bretanha.

Com receio da lei de segurança proposta pelo governo chinês restringir ou até mesmo eliminar a liberdade política e democrática em Hong Kong, cerca de 3 milhões de pessoas pensam em deixar o território rumo ao Reino Unido.

O documento britânico – mais conhecido como passaporte BNO -, garante viagem com direito a assistência consular e acesso mais fácil ao continente europeu aos cidadãos de Hong Kong. O número de renovações de BNO saltou de 170.000 para 310.000 em um ano.

Entretanto, o governo chinês ressaltou que a interferência britânica na concessão do passaporte BNO é uma afronta à soberania nos assuntos e interesses internos da China:

‘Uma grande interferência nos assuntos internos da China (…). Ninguém deve subestimar a firme determinação da China de salvaguardar sua soberania, segurança e interesses de envolvimento (…)’, afirmou o embaixador da China no Reino Unido, Liu Xiaoming.

O momento de tensão entre Hong Kong, China e Reino Unido parece estar longe de acabar. Resta-nos saber até quando a democracia continuará a ser posta em risco em nome de ideias bizarros e ultrapassados.

Até quando?

Gabriela Moliver, mestranda em Ciência Política pela Universidade de Lisboa, jornalista e documentarista – direto do Reino Unido.