MONÓLOGOS FILOSÓFICOS - Tudo passa, até o amor — modernidade líquida e as relações.

Panta rei! Disse Heráclito há mais de 25 séculos – tudo flui, tudo passa – para definir a origem de todas as coisas. Para ele o mundo é eterna passagem, mudança de um estado a outro.

Os tempos passaram e começamos a controlar a mudança, seja na natureza, em nós. e no próprio tempo. Mas Zygmunt Bauman viu nisso tudo muito mais do que uma nova perspectiva. Ele percebeu que, para além do movimento da natureza e do controle que impúnhamos sobre esse movimento, estávamos diante de uma aceleração excessiva na maneira como nos comportávamos e nos relacionávamos. Essa aceleração começa no século XIX e vem mexendo com aspectos relativos à política, econômica e à cultura de um modo geral. A esse novo estado de coisas, Bauman chamou de ‘modernidade líquida’.

Um dos principais efeitos dessa realidade está na construção das identidades e projetos humanos. Há uma constante dúvida em relação ao que define o sujeito e perguntas como: ‘Quem sou eu?’; ‘Eu sou o que compro?’; ‘O que me faz feliz?’, o rondam com respostas que mudam com muita frequência. Já os projetos sobre o futuro sofrem com a liquidez que aparece numa constante mudança de objetivos: ‘Hoje quero fazer Direito, amanhã já me reconheço no curso de Economia’; ‘Quero casar e ter filhos, daqui a pouco considero que ficar solteira e me dedicar a carreira é mais interessante’. Isso quando a confusão não se dá no mesmo plano e passamos a querer e a não querer a mesma coisa ao mesmo tempo. Essas insegurança e incerteza caminham juntas ao desejo de ser feliz e desesperam aqueles que almejam uma vida promissora e bem resolvida.

O campo dos relacionamentos não fica fora da fluidez e talvez seja o que mais sofre na modernidade líquida. Segundo Bauman, a dificuldade em manter relações duradouras está associada a maneira como consumimos as coisas – buscamos o último lançamento; se estragou jogamos fora; compramos mais de um objeto semelhante para facilitar nossa escolha na hora de usar etc. É assim também com os relacionamentos – a modernidade líquida os vê como objetos de consumo e a fluidez é passada para as relações.

Além desse consumismo, ainda vivemos uma realidade que dissemina a ‘ilusão do Eu’. Na prática, falamos excessivamente de nós e uma conversa entre amigos, por exemplo, se torna um conjunto de discursos narcisistas sobre o que se fez, sobre o que se comprou, o que seu filho conquistou. A experiência pessoal sempre iniciando e terminando as falas. Enquanto um fala o outro finge prestar atenção, quando na verdade, está pensando no que vai dizer sobre si quando chegar a sua vez de falar. Somos seduzidos pelo Eu e esse olhar ‘sobre si’ envolve uma obsessão de como nos achamos dignos e merecedores do melhor. A obsessão começa no suposto diálogo e termina com a garantia interna de que o mundo deve se render a nós, porque o próprio mundo nos bombardeia com a ideia de que tudo podemos ser e fazer. Na prática não funciona bem assim. Nem todo mundo vai ter o corpo e a vida da Gabriela Pugliese ou vai conseguir estudar em Harvard, e a questão está na natureza mesma das coisas, somos pessoas diferentes com corpos e capacidade diferentes.

Na busca pelo ‘melhor para mim’, esquecemos o que significa amar e negamos uma abertura para o destino agir. Temos medo de encarar o desconhecido e o mistério que sempre é o outro. O amor pede pitadas de humildade, coragem, fé e, numa cultura em que são rasas essas qualidades, amar será uma rara conquista. O amor conserva e o consumo manda trocar:

– Procura-se a segurança de uma relação, mas relacionamento gera mais insegurança (afinal, o outro é um mistério), logo a relação não dura;

– Nada de reparos, se algo quebra, compra-se outro. Se antes, ‘lavou, tá novo’, hoje troca-se de parceiro;

– Entra-se hoje numa relação com a certeza de que achou-se o que se procurava, mas a vida e as relações são superações, são construídas e se transformam. Portanto, neste mundo líquido, não se sustentam;

– Na era da conveniência, do ‘combo’, nasce a amizade colorida. Deu certo como amigo serve para algo a mais, mas se o algo mais não funcionar, resta a amizade;

– A era moderna é a era das técnicas (melhor maneira para resolver um problema) e as pessoas buscam nas revistas, na internet, técnicas para acertar nas relações e com as relações; trocamos o mundo dos valores pelo mundo das respostas prontas sobre com quem devemos nos relacionar;

– No mundo da liquidez, casamento não combina, porque traz a garantia do parentesco e parente é para sempre, assim nasce o ‘morar junto’, o que facilita se não der certo – menos burocracia para terminar;

– Hoje vemos uma racionalização do sexo, o chamado sexo puro, entretanto, temos junto dele uma diminuição da consciência de si no sexo. A ausência de estruturas internas para o sexo tira dele o contentamento de se relacionar com um outro ser humano. Ficamos apenas com o ato mecânico para sentir prazer e nada de relações;

– E, depois de tantos relacionamentos que não deram certo, segue o antídoto para dor de amor da modernidade líquida: distância e consciência de que as relações não duram mesmo, portanto não há a próxima vez.

Num mundo onde as pessoas acham que para ser feliz é preciso consumir, esquecemos que enquanto colocamos tudo nessa perspectiva, também nos tornamos objetos de consumo. Somos consumidos por outras pessoas, seja pessoalmente ou pelas redes sociais. Nos vendemos como possuidores de vidas perfeitas que não temos e a fama nos dá a ilusão de sermos importantes para pessoas que mal conhecemos.

E no final das contas, será que o que tem valor para o mundo tem valor p’ra gente? Precisamos perceber o que vale para nós e sairmos do julgamento do mundo: O que verdadeiramente desejamos? Quais são os limites do que queremos? Quais são os nossos valores? O que vale mais; o dinheiro que temos ou o dinheiro que o mundo quer que tenhamos? Devemos insistir ou não numa relação?

Todas as respostas a essas perguntas não dependem de fora, mas da consciência de que cada indivíduo é possuidor de uma história, é um ser histórico! A vida de cada um é escrita dentro dos limites pessoais que só quem habita a pele sabe dizer. Daí nasce o ser autêntico que, nas nuances da sua vida pessoal, não é igual a ninguém e, sabendo disso, admite ser o protagonista da sua vida.

É claro que escolher e decidir sozinho sobre sua própria vida não é fácil. Imitar e repetir o que os outros fazem é infinitamente mais simples, mas se entendermos que toda escolha requer uma perda (quindim ou corpo perfeito?), encaminharemos nosso projeto com a certeza de que vai doer, mas que faz parte.

Mudar é difícil, não mudar é fatal.

Imagem: Alexandre Antunes.

Quem sou: Roberta Melo, graduada, especialista e mestre em Filosofia; professora com quase 15 anos de carreira; autora do livro ‘Ressentir ou Afirmar? Perspectivas nietzscheanas sobre a dor’, editora Appris, 2018; autora de verbetes de Filosofia na Enciclopédia virtual ‘knoow.net’; apresentadora de vídeos sobre Filosofia no canal ‘Sopro de Atena’. (https://www.youtube.com/soprodeatena).