CLIPPING - Três sofismas e um funeral. Por Cláudio Frischtak.

Deu ontem n’O Globo (P. 2):

Mais pobres serão os primeiros a sofrerem com as secas, as queimadas, o empobrecimento do solo, as enchentes.

O sofisma não é fake news. Esta última é o falso óbvio; se desmascara com o primeiro confronto com os fatos. Já o sofisma é dissimulado, se esconde atrás de aparentes verdades e argumentos razoáveis. No debate sobre meio ambiente e desenvolvimento do país, sobram sofismas. Escolhemos aqui três dos mais recorrentes.

Primeiro sofisma. O meio ambiente que interessa proteger é aquele em que vivem as pessoas; os ‘vazios’ (florestas e o cerrado, por exemplo) teriam menor relevância. A atenção da política e a alocação de recursos devem priorizar as áreas urbanas, que em 2020 irão concentrar 90% da população.

Segundo sofisma. A preservação dos nossos biomas é de interesse de outras nações; logo, que elas paguem a conta. Se a preservação da Floresta Amazônica — em particular — é essencial para conter o processo de aquecimento global, porque só nós que devemos ser responsabilizados? Se o nosso país está provendo uma “externalidade” positiva para o clima, que por definição todos irão usufruir, nada mais natural que todos contribuam.

Terceiro sofisma. Os países que pedem para que nós preservemos nossas florestas são os mesmos que no passado destruíram as suas e que até hoje não cumprem integralmente com suas obrigações. Não apenas não têm moral para impor ou mesmo pedir nada, mas devem se oferecer para contribuir para o nosso desenvolvimento, respeitando o caminho escolhido pelo país.

O que há de fundamentalmente errado com essas afirmações? A resposta é simples: a preservação dos biomas e a utilização inteligente dos recursos da natureza são, antes de tudo, de nosso interesse, sendo essencial para a vida tal qual a conhecemos; se beneficia outros, tanto melhor. Se outros pecaram no passado, vamos imitá-los? Ademais, não é verdade que somos os únicos a preservar: há cerca de 30 países com mais de 60% de cobertura florestal, incluindo Coreia do Sul (63%), Japão (68%), Suécia (69%) e Rússia (70%). O Brasil, com 63%, está em 20o. lugar. Da mesma forma, nossas Unidades de Conservação e territórios indígenas não destoam: 25% versus média global de 29% (coincide com Japão e Reino Unido), 38% Alemanha, e acima de 40% do território de Peru, Colômbia e Bolívia.

A evidência científica aponta para a importância da Floresta Amazônica para o clima do Centro-Sul do país, conectados pelos canais de umidade que ainda garantem um regime de chuva regular (‘rios voadores’). Seria uma tragédia para cerca de 140 milhões de brasileiros que usufruem o regime de chuvas no Centro-Sul se a destruição do Cerrado e a desertificação no Nordeste fosse o prólogo do que espera a Amazônia. Os primeiros a sofrerem com as secas, as queimadas, o empobrecimento do solo, as eventuais enchentes, os eventos extremos são os brasileiros mais pobres e aqueles com menores recursos de resiliência. Talvez preservar e restaurar a Amazônia — além do Cerrado e da Mata Atlântica — com modelos agroflorestais que geram renda e emprego, alicerçados no replantio de espécies nativas nos mais de 140 milhões de hectares de áreas degradadas, não sejam de interesse de grileiros de terras públicas; de madeireiras ilegais; de mineradoras com práticas do século 19. Mas é de todos aqueles que se preocupam com esta e futuras gerações, impedir que a degradação da Amazônia se torne irreversível.

O funeral. O corpo ainda não está presente. A sociedade irá determinar se uma mistura de descaso e ideologia irá enterrar os esforços das últimas décadas de preservar os bens da natureza e construir com base no conhecimento dos nossos ativos naturais. Estamos sendo lembrados de que não haverá crescimento em bases sustentáveis sem modernização da economia e reforma do Estado. Devemos alertar aqueles empenhados em avançar as reformas que não haverá modernização sem abertura ao mundo, e que esta irá depender do respeito absoluto ao meio ambiente e sua preservação inegociável.

Cláudio Frischtak é economista.