Uma reflexão sobre os direitos da mulher comum. Por Ana Paula Arendt.

Desembalando minha biblioteca que acaba de chegar na minha residência, neste continente africano, tardo mais do que deveria: fotos de meus filhos pequenos tomam muito tempo para serem retiradas das caixas. Fotos de minha infância e vida universitária, igualmente. E foi meio a um desses recipientes que encontrei meu caderno de anotações quando estudante de diplomacia, isto mais recente, pois não sou ainda tão velha. Mas tanta coisa se passou, que esse tempo recente parece ser uma época tão marcante quanto minha infância, ter se passado tanto tempo quanto a primeira infância de meus filhos, que durou, para mim, séculos-seculorem. Li nas minhas letras legíveis e pouco apressadas uma frase supostamente de Talleyrand, recitada impecavelmente por um de meus professores à época: “É urgente esperar”. De repente me lembrei de minha tarefa prometida a um Embaixador aposentado de traduzir as memórias completas desse Príncipe francês, mas não me recordava de ter me deparado, tendo finalizado o primeiro volume, com essa frase. Procurei nos vastos cinco volumes com o auxílio dos sistemas de busca. Fato é que achei apenas frase de Sr. Hamilton, que ele próprio reproduz como pérola de sabedoria, “Il faut attendre”. Traduzido ficaria, “é preciso esperar”. E também encontrei uma segunda citação nesses mecanismos de busca, “Quand c’est urgent, c’est déjà trop tard”. Charles Maurice de Talleyrand-Périgord, o fundador da diplomacia moderna, me seduziu com seu charme quando pus pela primeira vez as minhas mãos nele. De modo que vou ter que voltar a traduzi-lo e encerrar a leitura para satisfazer minha curiosidade, para descobrir se ele disse ou não essa frase magnífica, ou se foi meu professor que na verdade a reinventou, muito mais sofisticadamente de sua própria cabeça, a frase lapidar.

Levou-me a refletir e a escrever um texto com muitas perguntas que deixo naturalmente ao leitor o critério de tentar responder. Penso sobre como, nas relações humanas e públicas, na diplomacia, a espera se coloca como uma habilidade tão fundamental quanto a linguagem do silêncio. E nós mulheres, não seríamos aqueles seres mais capazes de compreender a importância da espera? Esperamos 9 meses, mas nisso não se encerra uma inação ou incapacidade; nosso corpo trabalha incessantemente redistribuindo recursos para produzir o que há de mais raro no universo até onde conhecemos, a vida humana. As mulheres aprendem a esperar desde cedo a passar as dores, a passar a fúria dos homens, por ter fisicamente menos músculo,  e comprovado está que a mulher é muito menos dada ao risco. Pois fato é que a taxa de homicídios e de mortes por violência são bastante menores, quando observamos mulheres, do que aquelas observadas para os homens. Esperar, além de sinal de sabedoria, é também prerrogativa de colher frutos. Penso também se as mulheres não dominariam com muito maior fluência a espera, como dominam a linguagem do silêncio. Pois apesar de estereótipo e má fama de que supostamente falaríamos mais sobre tudo e todos, em espaços familiares e religiosos, ser mulher é sinônimo de dominar essa língua. Não há o famoso silêncio de Maria? E o próprio Talleyrand teria dito: “onde muitos homens falharam, pode ter êxito uma mulher”. Os olhos das mulheres, sobretudo quando silenciosos, não enxergam apenas a si mesmas: mas antes o outro, o direito estendido por um sentimento de afeto universal que carregamos. O direito dos filhos de ver e ser cuidados pela mãe. O direito dos familiares de se sentirem respaldados e apoiados nela mesma. O direito de se tornar chefe de família quando o homem a abandona, emocional ou materialmente. O direito da mulher exercer o função profissional e ser reconhecida, de se dedicar à arte, de progredir e receber educação, para se inserir na sociedade de um modo independente e digno, vem a ela depois da preocupação com a prole, com o outro… E se as mulheres são interrompidas com maior frequência em suas falas, é porque via de regra silenciam com maior facilidade que os homens. Esse é um fato a que todos estamos habituados na sociedade brasileira, esperar que uma mulher ceda com maior facilidade o lugar da fala, especialmente quando o lugar da fala é de dimensão pública.

Contudo li algo bárbaro e surpreendente que muito me chocou neste mês de novembro, dito por uma autoridade de renome, que bem sabemos ser irredutível quanto a preservar seu lugar da fala. Cito com aspas e elipse do nome, porque não vem ao caso. “Como juíza e principalmente como professora de direito constitucional, todas as pesquisas e tudo que eu vivo e compreendo é de que há sim preconceito. Há sim direitos que foram conquistados e que a gente precisa fazer valer permanentemente, porque esta é a defesa permanente da democracia e da Constituição. (…) A Constituição brasileira estabelece que homens e mulheres são iguais em direitos e deveres nos termos da Constituição. É preciso que a Constituição seja respeitada integralmente. “
Por alguma razão fiquei chocada.  Por que o discurso que antes me parecia óbvio, em meus primeiros anos de juventude, me causou espécie, a esta altura da vida? O impacto que suas palavras produziram em mim foi o de que homens e mulheres devem ser tratados frontalmente de igual para igual, enxergados igualmente pelo Estado. Mas o mesmo dever do homem deve ser cobrado da mulher? O mesmo direito da mulher deve ser estendido ao homem? A Constituição não impõe que haja serviço militar obrigatório para mulheres.  Nem que aos homens seja garantido pré-natal durante a gravidez da mulher. O obstetra fará o parto do pai? Terão os homens direito a espaço reservado para amamentar no trabalho? Alguns homens já reivindicam a paridade de licença paternidade com a licença maternidade. Mas nos países nos quais as mulheres lograram êxito em melhor inserir-se na esfera pública e privada, note-se que essa alternância se dá apenas após o primeiro ano.

Nada poderia ser mais equivocado que reivindicar que homens e mulheres sejam tratados de modo igual. Desde os primeiros anos até o final da vida uma mãe desempenha um papel biológico muito distinto do papel biológico paterno. Qual é o ser humano que trata e se relaciona com a sua mãe de modo simetricamente igual ao modo como trata e se relaciona com o pai? Isso não existe no planeta Terra. No planeta Terra, todos os mamíferos são definidos por ter sido amamentados, e quem amamenta é a fêmea. Os seres humanos não são peixes que cuidam de ovos, nem répteis que enterram ovos na areia, nem aves que constroem ninhos nas árvores: são mamíferos. A nossa imaginação nos leva sem dúvida a fazer uso de metáforas com os animais, para lidar com nossos problemas e dilemas, mas uma metáfora não substitui a realidade objetiva. É preciso cair na real e enxergar nossa própria espécie.

Os termos da Constituição enxergam essas diferenças. Explicitam claramente dispositivos para proteger não só a mulher, mas também a maternidade, a criança, no seu artigo 6º. Quis dizer com isto a Constituição que a única  vocação da mulher tem de ser exclusivamente a maternidade? Suponho que jamais. Mas a mulher que tem como vocação a maternidade deve ser protegida por esse direito social. Entendo que a autora, que descontextualizou a disposição da Constituição em proteger a mulher que ela deve defender, conta com o atenuante de que não é mãe, nem tem ou não se sabe se teve marido. Pôde se dedicar aos estudos e aprofundar pensamentos sem que o cônjuge ficasse perguntando onde estavam as meias. Mas disso a enxergar o mundo desde uma perspectiva e posição que os homens ocupam é perder por completo o bom senso. Boa parte das mulheres, se não a maior parte delas, são mães. Boa parte, se não a maior parte delas, quer ser feliz com um marido. Têm de enfrentar uma realidade dura e completamente distinta da perspectiva abstrata vista de um alto cargo concebido para o exercício de poder de um homem, o qual, aliás, foi concebido como um local para exercício de poder deferente. Os homens são mais deferentes por natureza e instrumentos de poder por eles estruturados precisam ser manipulados com muito maior cautela por mulheres, é o que me parece. Não por menos os termos da Constituição não se restringem apenas a dispor uma suposta igualdade, que face à evidência da realidade se desconstrói rapidamente como um discurso postiço. A Constituição Federal enseja a discriminação positiva, para que o igual gozo de direitos e atribuição de deveres seja em substância possível.

Eu era criança quando o Conselho Nacional de Direitos das Mulheres foi constituído em 1985, e as mulheres adultas andavam para lá e para cá formulando uma carta (em 1986?). Mas sei e registrado está, resgato que naquela época, o objetivo era: “promover políticas que visassem eliminar a discriminação contra a mulher e assegurar sua participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do país”. O contexto no qual as mulheres reivindicavam era diferente, pois quase não havia mulheres na política, na polícia, nas Forças Armadas eram raras, e também no Itamaraty… O que se desejava, pelo que entendo, era abrir caminhos para corrigir essa realidade, na qual precisamente se cobrava a mulher de igual para igual: ora essas, se você quer ser igual a um homem, a realidade de um homem é isso: ele e o mundo. Vá lá e faça, como os homens fazem, sem nenhuma ajuda! Use o banheiro dos homens e urine de pé. Estavam certos os homens que assinalavam a inocuidade desse pleito de igualdade. Essa era a situação anterior: a completa igualdade de circunstâncias. Cada um por si, e se a mulher quiser trabalhar e estudar além da média, não terá incentivo ou apoio especial algum, porque ambos homens e mulheres agora são iguais perante a lei. Entendo que vinha então nascendo um movimento e um momento no qual se enxergava que a mulher tinha algo a acrescentar, que justificava sua maior participação e engajamento, a despeito das diferenças intrínsecas à sua condição. Tanto que a Carta do CNDM enviada aos Constituintes apresentava um tom positivo, no qual a participação feminina vinha a agregar os esforços, propulsioná-los, e não acusar, denunciar, muito menos ferir.

Hoje se fala em quantos gêneros existem, em disputas de trabalho e concorrência por cargos, em igualdade de oportunidades, como se fosse possível intercambiar papéis sociais integralmente, como se fosse possível comparar homem e mulher como dois seres iguais, e tudo se resumisse ao ponto de partida e os motivos de alegria, se resumissem a obstáculos transponíveis, porque decorreriam de uma situação temporária conformada por um papel social de gênero… Nada poderia ser mais prejudicial à causa feminina, por maior seja a pressão do movimento LGBT a equalizar aspectos e tornar a causa LGBT uma causa feminina, arguindo nesse sentido. Por maior seja o medo e receio de dizer verdades que desagradem à comunidade LGBT, caberia uma reflexão conjunta. Resolver os problemas igualmente graves que enfrenta a comunidade LGBT não significa necessariamente que se terá resolvido o problema de inserção da mulher comum no ambiente de trabalho, nem a difícil equação do ambiente doméstico para que a mulher possa realizar suas potencialidades, ter uma vida gratificante.

Manter o prumo no inconformismo e o foco em políticas identitárias tem produzido resultados desejáveis? Reclamar igualdade no tratamento por parte do Estado é facultar por um lado a proliferação de situações que aumentarão o fardo feminino e acumulação de tarefas, se o homem não se tornar parte do público-alvo de uma política para mulheres; e por outro lado é desabonar o pleito, porque ignora o fato irrefutável de que homens e mulheres buscam satisfação de modos diferentes. Como uma mulher poderá ter o mesmo rendimento acadêmico e número de votos em uma campanha amamentando, trocando fraldas? Qual mulher achará mais importante a linha do relatório do que a primeira palavra dita pelo filho? Uma mulher é um mamífero. Um ser humano. Defender que suas necessidades sejam enxergadas, com vistas a produzir um resultado favorável à sua participação nas atividades políticas, econômicas e culturais não é feminismo: é humanismo.

O feminismo brasileiro tem muitos defeitos, mas se argumenta que produziu muitos ganhos, um deles a liberdade. Mas a que custo? E qual liberdade? Um pensamento racional e humanista implica fazer essa pergunta. Com que solidez podemos efetivamente gozar da liberdade que arguimos ter? O pragmatismo implica observar que esses ganhos podem ter sido aparentes, quando enxergados desde a perspectiva da mulher que efetivamente necessitou que seus direitos fossem garantidos, e não o foram. Não são poucas as mulheres que não são atendidas em seus direitos. Portanto, de que adianta ser feminista, quando isso decorre de uma consagração da autoridade masculina, de uma concessão para atuar nessa área, que não se reflete na melhoria efetiva de condições encontradas coletivamente? Não digo de feministas que buscam apoio em mulheres, mas também homens, para avançar a agenda; digo de feministas que obedecem escandalosamente aos homens, mesmo quando isso prejudica outras mulheres.

E quanto aos homens feministas? Enquanto não têm filhos, sem dúvida todos querem ser. Há muitos homens feministas que dividem o tempo com igualdade, e vejamos, quando a criança nasce, chora, cresce ou cai, quem a criança busca? E para qual cidade convenientemente o homem viajou a trabalho, quando a criança completou a idade em que pode estar maior tempo sob os cuidados masculinos, aos seis, sete anos? Face a esse carnaval de teorias de gênero, a criança busca a mãe quando adoece, e a mãe é quem larga tudo e gasta tudo o que tem para estar com o filho e prove-lo de afeto e cuidados. Mas se exibe a imagem da super-mulher, discursando enquanto amamenta, a jornalista que, altruísta, largou a coletiva em Washington para cuidar do filho resfriado, imediatamente voltou ao batente e foi louvada por isso, as mulheres infatigáveis; considera-se que isso é perfeitamente praticável a todas. Como se essa exceção, possível graças a circunstâncias muito específicas, graças a um nível de renda surreal e de um prestígio unânime, dependesse apenas da força de vontade e energia de caráter de cada uma. Em que isso acrescenta à melhoria da situação das mulheres, em geral? Muitas chegariam rapidamente à exaustão se exigindo e acumulando funções, e é perfeitamente possível calcular que essa propaganda de que a mulher deve enfrentar o que for necessário para entrar na vida política é imatura e desaconselhável. Não: ignorando essa objetividade, de que a acumulação de funções produzirá cedo ou tarde lapsos de direitos, e se esquecendo de fatos que permanecem latentes a todos que se movem em um contexto social, apenas se cria um vazio mais oneroso, um universo mais infeliz, no qual as mulheres têm exaustão, ou se tornam duras e insensíveis como uma pedra de calcário. Se sei disto, é porque faço errado, sigo fazendo errado e tenho maior autoridade dentre as mulheres de minha classe para dizer sobre o que não funciona. A mulher tem fases mais vulneráveis, espera receber proteção masculina, precisa contar com a admiração paterna. A mulher é uma bomba hormonal.

As mulheres passaram a debater aborto e igualdade de gênero, a metamorfosear e abstrair sobre possibilidades de assumir uma sexualidade masculina ou indefinida como uma forma de desculpar-se do fato imperdoável de serem mulheres… Ginecologistas receitam testosterona para estabilizar humores, implantes e medicação para mulheres artificiais que já não variam de humor, e demandam umas às outras com sorrisos medonhos e estéreis… Uma mulher que se orienta no trabalho com entusiasmo é acusada de ímpetos emotivos, uma que se mova com afeto e chore, de passional. Mas poderiam ter valorizado o que há na mulher de especialmente diferente. Fala-se de orgulho gay: mas não se fala de orgulho feminino, senão aquelas poucas que abraçam a feminilidade com um fervor místico… Há jurisprudência se conformando sobre a honra materna, sobre a honra da mulher, sobre essas particularidades que pertencem ao mundo feminino? Ou estamos a reduzir o tamanho da mulher a problemas muito específicos de outros grupos, irrelevantes diante do quadro geral que vivemos. Estamos nos conformando a um mundo no qual ser mulher, usar saias floridas e vestidos sensuais é se conformar à identidade de um ser de segunda categoria?

Direito ao aborto é ter direito ao próprio corpo, contra-argumentam algumas, e a agenda de temas específicos que tocam seria relevante para a condição da mulher como um todo; mas por que não batalhar, então, ora essas, por ter direito ao próprio corpo? Por algo relevante para a condição da mulher como um todo? Há mulheres que são contra o aborto, mas que sem dúvida querem ter direito ao próprio corpo. Mas isso implicaria somar, e não clivar as dificuldades que as mulheres encontram.  A “questão de gênero” se tornou argumento convenientemente infalsificável, e parecem nessa circunscrição se refugiar as mulheres que foram excluídas dos temas que julgam mais prestigiados da agenda pública. Mas qual receio devemos ter de expandir o debate para além da questão de gênero? E como evitar que o ressentimento assuma muitas formas visíveis em modas discursivas?

Não se pode anular o aspecto feminino: a questão de gênero do ponto de vista jurídico está fora de lugar, porque ser mulher biologicamente não é um elemento flexibilizável nem decorrente de arbítrio. Toda mulher continuará nascendo mamífera, com seios, toda mulher continuará nascendo com o a voz mais fina, na média, em relação aos homens, toda mulher seguirá sendo, em média, mais baixinha que os homens, embora haja sempre exceções. O Direito não se constrói facultativo quando não há arbítrio. Não é facultativo deixar de oferecer mais direitos às mulheres do que aos homens face à realidade de que as mulheres têm menor força física muscular, de que engravidam, nem pode o Direito deixar de reconhecer que as mulheres podem ter em certos aspectos maiores deveres que os homens, porque são infinitamente mais tolerantes à dor. As mulheres podem usar azul ou rosa, mas nascem e têm de lidar com o estrogênio, os homens podem usar plumas, mas quando nascem têm de lidar com a testosterona.

Pode ser que a mulher baixinha passe a se declarar mais alta que um saxão, sem dúvida, mas ela continuará sendo baixinha, para todos os efeitos práticos. Pode ser eventualmente que ela faça uma cirurgia óssea para ficar mais alta. Mas que preceito doido disporá que toda política deva se voltar para dizer que a mulher que fez cirurgia óssea é mais alta, ao invés de de garantir que a mulher baixinha viva em paz? Por que reivindicar que as mulheres possam fazer cirurgia óssea e que todos os aviões aumentem o espaço entre as cadeiras, se sendo baixinha os seus joelhos já não encostam na poltrona da frente? Não seria mais racional trabalhar para aumentar a inclinação da cadeira e aspectos que garantam maior conforto e comodidade às mulheres face à realidade em que elas realmente vivem? Eu preferiria exigir mais comissários de bordo do sexo masculino, portanto mais disponíveis a atender.

Eu não vejo os países desenvolvidos, que têm indicadores sociais e econômicos de melhor nível que o Brasil, dedicarem-se com tanto afinco a defender políticas para mulheres mais baixas que homens, que passaram por cirurgia óssea para ficar tão altas quanto eles, não sofrerem preconceito. Nem vejo os Governos desses países defender o direito das mulheres baixinhas em serem tão altas quanto os homens. O objetivo não é igualar-se ao homem! Não vejo as grandes democracias liberais nesse rumo, nem dizendo que isso é promover melhores condições de vida para as mulheres em geral, que isso é uma política pública desejável. Pelo contrário: na Suíça vi que o Estado está preocupado com vacinas, com o trânsito, rapidamente resolve os problemas nas vias e em acompanhar com muita atenção o desenvolvimento escolar das crianças na escola, em garantir o sossego na vizinhança. Alguém que gritasse para um vizinho criticando-o, ou que criasse caso ao atender uma mulher ou a respeitar uma mulher em cargo de autoridade, receberia uma multa por perturbar o sossego e a paz. Em suma, dedicam-se aos direitos individuais das pessoas, sem enxergar nelas particularidades, seja para discriminar, seja para exaltar em detrimento do cidadão comum. Isso é o rumo dos Governos dos países de melhor rendimento; não é interessante indagar por que as pessoas no Brasil ainda não estão indo nesse rumo? Eu não quero com isso dizer que a violência que encontramos no Brasil, sobretudo contra essas populações que são destacadas pelo Estado brasileiro como alvo de políticas públicas específicas, seja a explicação razoável para a violência que encontramos em toda parte, pois entendo que a violência é um problema multifacetado e complexo. Mas podemos, pela lógica, indagar se ao seguir nessa direção, e esquecer de defender direitos e liberdades individuais do cidadão comum, o Estado não está tomando um rumo inexoravelmente ineficaz para garantir o bem-estar das pessoas. Eu sou baixinha, gosto da minha altura, mas penso que se eu porventura sofresse preconceito e violência no seio de minha família e comunidade em decorrência disso, seria irrazoável que o Estado interferisse em aspecto tão pessoal de meu corpo e invadisse minha vida social para garantir o meu direito de fazer uma cirurgia óssea. Seria agressivo e uma ofensa à minha inteligência: a política para resolver uma eclosão de hostilidade local a um cidadão por aspectos que são naturais à personalidade e ao corpo dele ocorre no domínio da saúde pública, de higiene mental pública, de ordem e segurança, envolve uma campanha de conscientização eficaz, tratamento psicoterápico àqueles que manifestem maior implicância, multas e eventualmente penas, e não promover debates sobre a constituição do corpo do cidadão.

Mas estão os arautos da defesa dos direitos da mulher, responsáveis por desenvolver políticas públicas para salvaguardar os direitos individuais e sociais da mulher, enfocando não nos obstáculos que as mulheres enfrentam, mas em situações e em populações particulares que não representam nenhum avanço nos grandes problemas que ainda enfrenta a mulher brasileira, nem a mulher que encontramos no mundo. Os públicos são particularizados, mas os obstáculos, por outro lado, são generalizados sob conceitos: sistema patriarcal, machismo, preconceito…

Não seria muito mais recomendável tratar pormenorizadamente os obstáculos e trabalhar neles, ao invés de enxergar o problema na mulher, e particularizar a população feminina incluindo a população LGBT, uma minoria com necessidades muito diversas? Estão julgando algo satisfatório dedicar-se a questões que nem de longe abarcam os maiores desafios que enfrentamos mulheres no dia-a-dia para obter o bem-estar necessário para nossa manutenção afetiva e avanço profissional, perdendo representatividade e legitimidade ao preterir o resultado concreto em relação à retórica identitária. Mas se recusam a enxergar isso, como se a questão de melhorar a situação das mulheres na sociedade fosse questão partidária, tema político, e não quesito essencial à sobrevivência coletiva, a um ambiente social minimamente estável, a uma ordem pública higiênica, à preservação da dignidade humana.

Há os transgêneros e hoje há até mesmo os trans-espécies: humanos que se vestem com máscara de cachorro e alegam que, se bem quiserem, podem portar-se como cães. Em primeiro lugar Simone de Beauvoir clamou: não se nasce mulher, torna-se mulher. Foi uma frase de efeito que bem levou à reflexão. Pois há agora os que dizem que não se nasce ser humano, torna-se humano. De modo que alegam que se quiserem podem tornar-se cães, porque a sociedade não lhes deve impor o que devem ser, nem papel social algum. Eu sou liberal: queiram ser o que quiserem. Deixem-me, portanto, ser quem eu sou. Abracem a loucura longe da minha esfera territorial. Sou uma mulher heterossexual, portanto territorial, e o domínio de uma mãe é a família.

Penso ser uma mulher coloidal como todas as outras, em busca de um bom senso flexível que faça avançar favoravelmente, com resultados concretos e pertinentes para melhorar a situação das mulheres e, portanto, a minha própria situação. Penso desnecessário expandir o universo de possibilidades que escapam à natureza e personalidade à qual pessoa tem direito, que em nada acrescentam ao bem-estar feminino da mulher média e permanecer num debate restrito a isso. Todo esse debate ao redor da população LGBT, sobre o que é homofobia e deixa de ser, sobre qual é o gênero que deve ser calado e quais gêneros têm direito à palavra, acaba desviando a atenção dos problemas de fundo da numerosa minoria política feminina, pois o específico e urgente vem sendo destacado em detrimento do contexto e da inércia, que não perderam a relevância de modo algum.

Uma agenda pela igualdade nos prejudica. Nem toda mulher tem uma renda altíssima disponível e o luxo de escolher ter ou não ter filhos, ou a disposição de ânimo para contribuições que conformem um currículo de 50 páginas, ou tempo para construir redes de favores mútuos e de indicações. A vida vai seguindo, os filhos vão surgindo e eles se tornam o centro do bem-estar indispensável para a saúde feminina. A vida feminina é um emaranhado de coisas. O lar tem relevância distinta para o homem e para a mulher. Para muitas mulheres, trocar receitas e bordar ainda é o ápice do luxo de um quotidiano desvencilhado de problemas. Há homens que limpam a casa, trocam receitas e bordam? Sem dúvida. Mas a política pública para mulheres se pautará apenas por homens que são exceção à regra? Estará fadada ao fracasso e irrelevância se o fizer. Nem todas mulheres quiseram aprender a atirar, a se tornar pilotos, a jogar futebol nem a se especializar com doutorados e tomar todo seu tempo escrevendo, para ocupar função pública que tenha sido ocupada pelos homens, sobretudo quando não há homens para assumir a função de administrar o lar ou ser seu esteio afetivo. Algumas querem simplesmente cuidar dos filhos e ser respeitadas por isso. Algumas querem novas funções, adaptáveis. Há, ainda, as que desejam que os homens assumam responsabilidades domésticas, e as que desejam ver reduzidas as hostilidades em ambientes científicos, mas isso será obtido repetindo ad nauseum um discurso inconformista? Ou é preciso ir além? E não deveriam ser respeitadas na variação do que desejam? Afinal não deveria ser a mulher simplesmente ser respeitada por ser uma mulher?

O jornalista perguntou à parlamentar em 1987 qual era a cor do batom e a marca do tailleur, e não sobre como resolver o déficit da previdência. Saiu no jornal como prova do preconceito que precisa ainda hoje ser combatido. Mas esse é realmente o maior problema que temos a lembrar durante as comemorações de 30 anos da Constituição Federal, esse é o maior problema que temos a corrigir? Responda então com sua opinião sobre a reforma da Previdência, já que é esse o tema que julga mais pertinente e no qual você tem uma opinião. O jornalista perguntou como é ser esposa de um político famoso. Fale algo novo sobre as soluções de prevenção à violência na Noruega, sobre a importância de certos mecanismos de administração do gasto público, que você abordou junto a especialistas e em seu artigo publicado na revista. Mas não: as mulheres têm medo de ter de defender um ponto de vista, e preferem reclamar que os jornalistas sigam perguntando sobre o batom, a roupa e o marido do que efetivamente liderar a questão. O colega lhe interrompeu? Como? Siga falando com tranquilidade. Cite grande pensador ou jurista com o dedo para o alto, fazendo uso de sua oratória, para mantê-lo entretido, não deixe ele lhe interromper, fale, para não ter de reclamar, fale como se não estivesse fadada a ser interrompida. Ou o ouça; porque talvez seja algo interessante o que ele tem a dizer, e de praxe são as mulheres muito mais abertas a ouvir do que os homens. E será que não terá sido por isso que foram alçadas as mulheres a um ou outro alto cargo, por serem mais abertas a ouvir do que os homens, e não pelo pretexto de um currículo de 50 páginas?

O discurso de direitos é importante. Portanto, justamente porque é importante, ao invés de apenas exigi-los, por que não fazer uso deles? Por que não buscar o feminino, buscar dominar e ser dona dos termos ao se constituir o espaço vazio a ser preenchido, e se orgulhar disso? O que receamos? Uma parlamentar desmerece sua condição porque recebeu como tema tratar da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, apenas por que o tema foi recusado por três parlamentares previamente. Ora essas! Mas esse é o tema mais relevante para a sociedade, a formação e o marco legal em que se formarão as gerações futuras de homens e mulheres! Por que não comemorar e a si mesmas outorgar os temas mais relevantes, porque esperar que alguém lhe repasse algo, ao invés de ir até o tema que julga mais relevante e se tornar uma autoridade nele?

E não será gigantesco preconceito, julgar que a beleza e os modos femininos são algo supérfluo, que os temas sociais, que a criança e a família são temas menos importantes, e não o mais essencial e indispensável para prevenir problemas de toda ordem econômica e política, para promover sociedades saudáveis e prósperas?

Então, eu me pergunto e pergunto ao leitor: quando a igualdade se coloca, não é resolvido o problema? E até quando ficaremos reclamando, ao invés de exercer o papel que devemos e obter a distinção merecida? O nosso papel é cobrar a nós mesmas e aos outros a pretensa igualdade, devemos seguir clamando e assumindo paulatinamente o progressivo ônus do discurso da igualdade sem jamais obter a igualdade, tais quais umas néscias? Ou o nosso esforço tem de se dirigir a obter o respeito, beneplácito, favor e admiração dos homens e a reciprocidade necessária, atuar de modo a produzir resultados que tornem a igualdade um resultado possível, desejável e resolvido? Dificilmente me parece que obteremos o respeito masculino e o respeito próprio acusando os homens, combatendo a realidade, insaciáveis predadoras do discurso, ao invés de nela encontrar elementos que possam ser cultivados. Quem acusa e reclama se define, afinal, como supostamente um lado, em primeiro lugar; e, num segundo momento, como o lado mais frágil. Nisto faço um mea culpa e exponho que conheço o que é ser inutilmente o lado mais frágil. Mas sempre haverá quem encontre modos e formas de inverter um pleito de fragilidade em favor próprio, acumulando sobre outrem os fardos. Não será a especialidade do mais forte? E não haverá o Estado de proteger o lado mais frágil, desanuviá-lo, extirpar toda pretensão dos homens em, reclamando a igualdade, usar mulheres para negar favores às mulheres? Não é tratando homem e mulher de modo igual que o Estado obterá isso.

Nada me estarrece mais que uma mulher pretenda ser autossuficiente reproduzindo um discurso masculino que resulta em situação mais desfavorável a outras mulheres. Disso talvez decorra a grande deficiência de que padecem as mulheres de meu tempo, o excesso de discurso e falta completa de solidariedade na prática. Uma coisa é se valer dos instrumentos por tentativa e erro: coisa diversa é defender resultados contraproducentes que terminam sendo perversos. Os homens se diferem das mulheres substancialmente neste ponto: eles mantêm atividades de lazer e confraternização, criam linguagens que permitem construir um senso de solidariedade, atribuem racionalidade psicanalítica quando há irracionalidade comportamental, resolvem disputas muitas vezes sem necessitar expor seus sentimentos e circunstâncias ao sexo oposto. Há muito humor no mundo dos homens, mas quantas mulheres contam piadas? Será mais efetivo padecer em um mundo de profunda gravidade, ou observar como obtêm os homens resultados favoráveis, e tentar captar o que funciona? Mulheres que lograram êxito em deixar grandes contribuições em suas áreas de formação participaram geralmente de certas entidades de honra, as “sororities”, que nem sempre se reúnem, mas nas quais se promovem esses momentos de lazer e de regeneração que propiciam um sentido à vida. Ao observá-las me pareceu solução sobretudo àquelas que enfrentam ostracismos familiares e o cotidiano de praxe que bem conhecemos.

Contudo, ao convidar a colega que deseja confeccionar uma tese original, ser aprovada em uma banca ou obter uma promoção para jogar tênis, ou participar de um projeto social, ela não considera esse um momento relevante para arejar ideias e trocar contatos, pois isso não está diretamente ligado ao modo fixo com que enxerga seus direitos e deveres, nem enxerga outra mulher como um álibi prestimoso. O universo feminino parece estar evoluindo muito lentamente do tricotar para a camaradagem. Poucas mulheres parecem enxergar um vínculo universal decorrente de sua condição, de maneira a favorecer outra mulher: piadas confirmam sobre isso em muitas varas e espaços jurídicos, de que mulheres sempre farão o possível para infernizar umas às outras.

Um discurso enfocado apenas em reivindicações de minorias, pautado por sentimentos convulsionados, pouco esclarecidos de aversão sexual à mulher feminina, não parece ser suficiente para melhorar as condições em que vivemos. A intuição sussurra: é preciso encontrar complementaridades. À parte das vontades e expectativas, o mundo das mulheres enquanto minoria política existe, o mundo concreto e manco. Aquele mundo abjeto, destilado pelos versos por Cecília Meirelles em uma realidade metafísica aprazível, não depende da plasticidade da opinião pública; mundo no qual o marido dela se suicidou. As críticas que teve de ignorar foram críticas. Diziam, para diminuir sua poesia, que ela sabia como encontrar palavra ou outra interessante para sobreviver… Ah! Como é triste saber que não faziam sucesso nossas grandes poetas no tempo em que viveram, e não gozaram do doce ressonar de um reconhecimento generoso que hoje, acumulando-se com os anos,  tornou-se possível.

A verdade é que para garantir bem-estar, invocar uma lei não abarca uma infinidade de amálgamas em um caleidoscópio que, a cada vez que movemos, muda de configuração. Não seria mais prático, antes de defender a esfera compacta de um direito,  perguntar-se como tornar a vida da mulher hoje menos difícil, mais agradável? Os homens ainda monopolizam a relevância dos aspectos desse caleidoscópio, sobretudo o registro histórico, omitindo muitas atividades e sofrimentos de suas companheiras, sobretudo como um mecanismo de proteção reputacional e preservação da intimidade, sobretudo quando a mulher é enxergada como parte constitutiva de um espaço íntimo. Como prestar apoio à mulher que deseje participar nas atividades políticas, econômicas e culturais, como se almejava em 1985, sem expulsá-la de sua zona de segurança e conforto, e sem debitar essa conta a ela? Como prevenir enredos de vingança e escalada de violência em face de denúncia de violência doméstica? Como respeitar e preservar a intimidade, a vida familiar da mulher e o seu espaço doméstico?

Talvez essas fossem perguntas mais relevantes  para mulheres encontrarem respostas e gozarem direitos de maneira efetiva, de modo mais perene. Nenhum homem consegue participar na vida política, econômica e cultural sem ter preservado o seu espaço doméstico, a sua zona de segurança e de conforto, o lar onde se restauram as forças. Por que pensar que a mulher conseguiria ter êxito em algo que o homem, sendo mais prestigiado e contando com o apoio de seus pares, não é capaz de fazer? (As frases de Talleyrand sem dúvida tinham excelente efeito retórico, sobretudo porque sua resposta ainda se indagam). Cada mulher conhece as especificidades e demandas do que considera necessário para alcançar essa zona de segurança e de conforto, na qual se regenera e no qual o seu bem-estar se concretiza. Apenas o direito disposto em instrumento legal jamais daria conta de lidar com isso.

Dou exemplo. Há situações em que juízas decidem retirar a guarda dos filhos e conceder ao homem, sob justificativa de “igualdade de direitos e deveres”. E não saberão essas juristas que nesse espaço também uma mãe com os filhos se restaura? Que há carinhos e suavidade que os filhos buscam e encontram nas cobranças quotidianas das mães, mas que se tornam nefastas quando são transferidas a outrem? Que desproporção e assimetria, retirar da mulher o espaço sagrado de exercício da sua feminilidade! São essas disfuncionalidades e enredos distópicos alimentados pela falta de bom senso das próprias mulheres, ao optar defender um discurso de igualdade, ganhos pessoais de carreira e ideias intangíveis, em detrimento de defender o ser humano, concreto, real, que por vezes não sabe reivindicar e tem sua dignidade sacrificada.

Seguem as mulheres arautas dos direitos da mulher se olvidando de respeitar os espaços sagrados em que outras mulheres buscam forças? Seguem ignorando os esforços que outras culturas perfazem, para prevalecer configurações nas quais as mulheres não gozem de segurança alguma, na ausência do marido? Seguirão recusando a herança ocidental e cristã na qual a mulher e a criança ocupam o centro, em prol de um preceito doido? Que mundo artificial estão construindo para as mulheres no futuro, essas juristas, onde a felicidade deve decorrer de um dever ser, no qual não há espaço para maternidade e filhos, para proteção e discriminação positiva, em que se esquece da indispensável complementaridade do homem?

Muitas mulheres recusarão essa proposta insensata de igualdade, e têm recusado, simplesmente porque o fardo igual ao fardo do homem não é viável nem produz bem-estar algum. Que dirá, então, o fardo maior que o do homem, que resulta da cumulatividade de funções decorrente desse preceito doido. Preferirão na prática, na realidade-do-vamos-ver, as mulheres racionais, a proposta dos homens: coajduvante no mundo deles, protagonista no seu próprio. É infinitamente mais confortável viver no mundo dos homens heterossexuais machistas, no qual as mulheres são protegidas e valorizadas pelo simples fato de ser mulheres, e não pela quantidade de peso adicional que carregam. Muito mais aprazível é conviver com quem não reclama, para transmitir segurança, do que o convívio no mundo irracional  LGBTS +, onde toda opinião é esculpida, escrutinizada e punida, onde se vasculham e varrem falas, textos e discursos em busca de algum resquício de preconceito ou assédio que possa ser denunciado e se tornar elemento útil, onde reina o utilitarismo político, no qual necessidades e sentimentos não são atendidos, mas carnavalizados. Eis que estão a defender um discurso de direitos infinito que não se importa em vedar direitos e não se importa com que não sejam alcançados…

A esse propósito de incredulidade sobre os rumos que têm tomado os movimentos de garantia de direitos das mulheres, meio a esta reflexão meramente pessoal, conto que encontrei registro de algo muito pertinente, um diferendo entre o Príncipe de Talleyrand e algumas mulheres em 1791. Teria dado origem ao escrito de Mary Wollstonecraft, uma feminista inglesa e bem casada, intitulado “Uma reivindicação pelos direitos da mulher”, publicado em 1792. Dizem ser o maior texto do século XVIII. Foi de fato resgatado posteriormente em benefício de minha classe no final do século XX. Em uma leitura à Assembleia Nacional Francesa, Talleyrand teria alegado que a mulher deveria receber apenas educação doméstica. Com isso, para rebatê-lo, teriam incentivado os ingleses e simpatizantes Mary Wollstonecraft a rebater a questão. Era a época vinda de Olympe de Gouges, a francesa que dizia que se a mulher tem direito ao cadafalso, tem direito a subir na tribuna. Levaram a Sra. de Gouges ao cadafalso, negaram-lhe a tribuna. Elevadas foram então foram suas frases à história, mas que uso! Quem seria mais sensato, Talleyrand, Wollstonecraft? Na história Talleyrand consta registrado como bandido, contudo.

Contextualizar Talleyrand seria necessário, face à sociedade de sua época, um tempo no qual as mulheres estavam a publicar textos e polemizar temas de política externa pelo fútil motivo de demonstrar influência e encontrar amantes, no qual se expressavam irrestritamente, pela veleidade de se mostrarem nos salões perante as demais mulheres como autoridades em todos os assuntos e se intrometer na vida de todos. Em suma, um tempo no qual as mulheres se comportavam exatamente igual aos homens. Um tempo em que reclamavam direitos iguais…

Pronunciavam declarações, lançavam dúvidas para constranger seus maridos e com isso ganhar autoridade sobre eles. O próprio Talleyrand se viu constrangido, em um de seus primeiros jantares após a conclusão do seminário, por uma senhora famosa, que desejava monopolizar a autoria de lançar grandes personalidades ao destaque da arena pública.  E também se viu prejudicado na conduta de sua vida profissional pela própria amante e esposa, ao dar declarações a ele relacionadas, de quem se distanciou. A a seu ver, homem de Estado, o uso dos temas de Estado como instrumento de futilidade conjugal e projeção pessoal, ainda que para atender a um discurso de direitos, prejudicava linhas de atuação de interesse de seu país, vulnerabilizava o cenário político doméstico à atuação predatória de agentes externos competitivos. Nada foi mais conveniente que a estocada de Talleyrand sobre as mulheres de seu tempo a uma sociedade que se desencantava com a desordem. Provou-se sensato, obteve o respeito de seus pares a sua proposta ressonante, pois estavam naturalmente em maioria!  E com isso as mulheres que se divorciavam, tinham amantes, iam à tribuna e publicavam nos jornais se retraíram à esfera doméstica, a cuidar melhor de seus domínios, ao casamento, ao jardim e à família, desde metade do século XIX até a metade do século XX. Voltaram a assumir o penhor do Estado e a ser o lastro da racionalidade dos homens.

Que quero dizer com isto?  É urgente esperar. É também se expressar, ouvir.

Deixando de ouvir a minha própria recomendação, ou talvez tendo justamente atendido a ela, deixo a vocês este mês uma provocação em versos, aliás duas, em dois poemas que espero tenham sido uma contribuição, se não para o feminismo, para o humanismo, se não para o humanismo, para o humorismo. O primeiro uma autocrítica, o segundo, mais útil, procurei abordar uma questão na linguagem apropriada para o nível do problema, durante a minha feliz infância.

As feministas de Papaizinho, por Ana Paula Arendt
(Em 3/10/2018)

Papaizinho puxou minha cadeira para eu sentar
Ele colocou o prisma com meu nome para eu falar
Sobre como ser feminista e forte pra sempre.
Ele fez contatos para mim que eu nem soube
Papaizinho me deu carne, feijão, farinha e couve.
Por isso eu o chamo de
Pa-pai-zi-nho.
Papaizinho me protegeu da fúria da minha mãe
Quando eu fiz algo errado na mente dela.
Ele me deu colo quando ela me abandonou.
Não foi porque Papaizinho estava mais certo do que ela?
Ela ficou chateada porque Papaizinho me elogiou.
Eu não sei, mas Papaizinho não me odeia
Papaizinho me faz castelinhos de areia
Apenas para eu brincar de desfazer.
Papaizinho me deu a mão enquanto fazia eu crescer.
A minha mãe só me fez crescer
Enquanto eu cabia na barriga dela.
Papaizinho me ensinou a lutar
Papaizinho me ensinou a vencer
Papaizinho foi quem me ensinou a brincar
Papaizinho que me deu Platão, Demócrito e Condorcet.
A minha mãe não sabe de nada.
Fica excessivamente inquieta de madrugada.
Papaizinho me ensinou a ser feminista.
A não me submeter a homem algum!
Papaizinho me ensinou a dirigir na pista,
Se eu errava, ele dizia que é algo comum.
Assim eu aprendi a ser dona de mim mesma.
Com o meu Papaizinho.
Quando um homem me atacou
Eu chamei Papaizinho
Quando uma mulher pirou
Eu chamei Papaizinho
Quando a minha assistente se escravizou
Eu disse: foi Papaizinho!
Com certeza foi Papaizinho lindo.
Papaizinho me arrumou um marido tão perfeito
Para eu não ficar só!

O clube do Bolinha, por Ana Paula Arendt
(26/06/2015, Callista)

Pra entrar aqui
Tem que ter pipi.
Só pode entrar aqui
Quem tem pipi!
Menina não.
Não pode ser promovida
Menina não.
Só quem tem pipi.
Só quem tem pipi
Pode entrar aqui.
Menina não.
Menina trabalha sem rinha
E não faz comparação.
Só quem tem pipi.
Só quem tem pipi
Pode ter promoção.
Quem tem pipi é melhor
E quem tem quequeca
É pior.
Por quê?
Porque sim.
Só quem tem pipi.
Só quem tem pipi assim.
E pra ser Chefe.
Tem que ter pipi.
Não tem pipi?
Então não pode ser Chefe.
Porque menina tem quequeca.
Menina não tem pipi.
Menina tem inveja.
Inveja do meu pipi.
Menina quer ter neném.
Menina pode ter neném.
E eu não.
Mas eu tenho pipi.
Só quem tem pipi
Pode entrar aqui.

Ana Paula Arendt é poeta e diplomata. E escreve mensalmente na coluna ‘Terra à vista’. www.anapaulaarendt.com