Um caso de amor. Por Juliana Fernandes Gontijo.

– Daqui num saio, daqui ninguém me tira!
– Anda menino, desce logo daí, porque tenho que fazer meu trabalho. Já tem duas horas que estamos tentando conversar e não chegamos a um acordo…
– Já falei que num vô descê…
– Desça. Ande logo!
– Num vô descê!
– Cadê a sua mãe?
– Tá trabalhano, ela é lavadeira.
– Onde você mora?
– Num vô dizê!
– Eita! Que menino mais intransigen…
– Ah… Sim, sô muito inteligente, minha mãe sempre fala isso!
– Eu quis dizer in-tran-si-gen-te! Menino sem educação! Quantos anos você tem?
– Seis anos e daí? Mas sem educação eu num sô não!
– Não me venha com essa, garoto!
– Sim! A minha mãe me disse que eu preciso respeitá…
– Isso mesmo! Respeitar as pessoas! Então, peça desculpas e saia logo daí. Tenho muito trabalho a fazer ainda hoje!
– Não moço, cê não entendeu! Daqui eu num saio, daqui ninguém me tira!
– Menino, vou ter que chamar a polícia. Tem um orelhão logo ali…
– Pode chamá… Num vô saí daqui de jeito nenhum.

– Bom dia! Preciso que mande uma viatura no endereço…
– Em que posso ajudá-lo?
– Precisamos fazer um corte de uma mangueira, porque é num terreno particular e uma criança de 6 anos não arreda pé da árvore.
– Você precisa procurar os pais dessa criança! Não podemos enviar uma viatura sem perigo por perto.
– O menino disse que a mãe está trabalhando, mas também não falou do pai. Ele é bem mal-educado e…
– Lamento, senhor. Não podemos te ajudar…
– Ela desligou na minha cara. Que absurdo!
– Problema do senhor… Não posso fazer nada!
– Onde você estuda? Qual é o seu nome, garoto?
– Armando. E o seu nome, moço?
– João. Onde é a sua escola?
– Fica ali, no outro quarteirão… Mas num vai adiantar… Está de greve!
– Menino, pare de me enrolar e desça logo dessa árvore!
– Ah… não, moço. Se você cortar essa árvore, onde é que eu vô podê brincá?
– Mas eu tenho que cortar! A empresa que eu trabalho vai construir um prédio muito grande aqui.
– E daí? E eu num vô tê mais a minha querida mangueira… Umas mangas tão boa, moço…
– Ah… menino! Deixa eu fazer o meu trabalho!
– Mas moço… E onde eu vô brincá com o Til?
– Quem é Til?
– Meu cachorro!
– Não sei onde você vai brincar, Armando! Vai, desce daí, que eu preciso cortar essa árvore ainda hoje. Ou vou ser demitido!
– Eu não vô descê! Eu quero esta sombra fresquinha aqui do lado da minha casa, p’ra sempre!
– Ah… então você mora aqui do lado? Vai chamar a sua mãe, menino.
– Ô mãeee!!! Tem um moço aqui querendo cortá a mangueira e eu não vô deixá.
– Filhooo, desce já dessa mangueira!
– Eu num vô saí do tanque não! Estou com muito trabalho. Anda logo.
– Seu João! Não corta essa árvore, não! Por favor. Desde que eu era muito pequeno, eu sempre brinquei aqui, me sujo todo de manga quando chega em dezembro. Tiro uma soneca das boa aqui em cima… Não corta não!…
– Tem outras mangueiras por aí, menino. É só procurar no bairro…
– Se ocê cortá, eu não sei com o quê eu vou brincar mais…
– Mas é o meu trabalho, garoto. Eu não posso fazer nada, a não ser cortar essa árvore para eles começarem a obra na semana que vem. Eu sou pago p’ra isso!
– Eu gosto tanto de subí aqui, o Til vem e fica comigo… Às vezes, a gente dorme aqui em cima, depois que eu chego da escola.
– Sei…
– Tem mais, Deus vai ficar triste com você. A mangueira dá fruta p’ra gente comer. E as crianças pobres que passam fome?
– Menino, eu preciso cortar logo. É meu trabalho! Desce já daí.
– Ô manhêêê!!! Pede p’ro moço não cortá a Mangueira não, mãe! Eu amo essa árvore e essa sombra… olha que bonita! E os passarinhos, onde vão fazer os ninhos?!
– Pelo amor de Deus, Armando, eu tenho que cortar essa árvore logo.
– Mãeee!!! Você disse que a gente tem que ter respeito, não é?
– Simmm, filho. Mas me deixa lavar essas roupas, sossegada! Não me faça ir aí, desce logo.
– Ô dooona! Qual é mesmo seu nome?
– Rosaaana… Ô moço, eu não posso sair daqui para pegar meu filho e deixar você fazer o seu serviço. Faça o senhor mesmo que ele desça.
– Senhooora, seu filho está a uns 5 metros de altura!
– Armandiiinho! Desce já daí! Ou já sabe o que vai acontecer!
– Eu não vou subir 5 metros de altura para pegar um menino que está fazendo birra no alto de uma árvore… Se fosse filho meu…
– Como é que é?! Armandiiinho! Não me faça ir até essa árvore, garoto!
– Mãeee, mas você disse que é p’ra respeitar a natureza… Não é?
– Você sabe que siiimmm! Então desça!
– Mas como eu vô descê, se eu tenho que respeitar a natureza? Foi isso que a senhora me ensinou! Eu não quero que ele corte a mangueira, mãe! Ele não pode cortá!
– Já vou aí resolver isso!
– Eu num vô descê. Já falei!
– Ô minha senhora, eu preciso cortar a árvore. Um prédio vai ser construído aqui! Eu não tenho alternativa.

Ao ver onde o filho estava, Rosana tratou logo de armar sozinha a escada e subir na árvore a fim de pegar o menino.
Armando não teve escolha. Desceu da árvore chorando igual a um bebê. Ele não tinha mais argumentos com João.
– Desculpa moço… É que meu filho gosta muito, muito dessa mangueira. Parece até um caso de amor, sabe… Onde de ele vai ele fala dessa árvore… Ele sempre tem uma história p’ra contar de um passarinho, de um sonho que teve e por aí vai.
– Minha senhora, eu entendo o que deve passar na cabeça do seu filho… Mas o que eu posso fazer?… É meu trabalho!
– Quando eu crescê, vô ter um monte de mangueira num quintal bem grande. Mas eu sei que elas nunca vão sê igual a essa aqui… Você não podia fazê isso, moço… Não podia mesmo…

João ligou a serra elétrica.
Rosana precisou tirar o filho dali e levá-lo para a casa de uma irmã, porque ele chorava muito. Passou alguns dias por lá. O menino nunca mais se esqueceu do barulho daquela serra. Toda vez que ouvia, tremia. A ligação de Armando com aquela mangueira era algo diferente. Não era apenas de uma simples árvore no terreno vizinho. Parecia que ali ele encontrava algum tipo de aconchego, nem Rosana entendia o sentimento do filho.

Passaram-se 30 anos.
Armando estudou e se tornou um engenheiro agrônomo. Comprou um terreno numa cidade do interior do Ceará e ali plantou 500 mudas de manga coquinho. No fundo, bem no fundo, ele sentia que devia algum favor para aquela mangueira que ele não conseguiu impedir o corte… Coisa de criança? Ele mesmo dizia que não era coisa de criança, parecia ser mesmo de outro mundo “o amor” que ele tinha pela mangueira plantada ao lado da sua antiga casa na rua dos bem-te-vis.

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.