TERRA À VISTA - Uma solução para si mesmo. Por Ana Paula Arendt.

“Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de boa vontade tomaram a seu cargo a superintendência deles. Depois de, primeiro, terem embrutecido os seus animais domésticos, evitado cuidadosamente que estas criaturas pacíficas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça, se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo não é assim tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar. Só que um tal exemplo intimida e, em geral, gera pavor perante todas as tentativas ulteriores”.

Immanuel Kant, A paz perpétua e outros opúsculos. 1784.

(“…puderam enganar alguns homens, ou enganar a todos em determinados lugares e por algum tempo; mas não todos os homens, em todos os lugares e em todos os séculos”).

Jacques Abbadie, Traité de la Vérité de la Religion Chrétienne, Cap. 2, p. 11. 1684.

As rotas de incenso, o primeiro produto de luxo da Antiguidade, cumpriam longas distâncias e eram dominadas pelos comerciantes da Península Arábica, Ásia Central, China e Índia. Empregavam naquela época animais recém-domesticados, camelos e dromedários, parentes próximos. Os bactrianos, de duas corcovas, seriam predominantemente do continente asiático, e os dromedários, uma evolução do deserto arábico. Os consumidores do Crescente Fértil ou da bacia do Mediterrâneo se abasteciam com frequência desse produto por volta de 1.500 a.C. e, ainda antes, monumentos de pedra eram construídos por volta de 2.500 a.C., para celebrar essas longas jornadas de comércio de incenso para a terra do País do Ponto, hoje Iêmen e Somália. Em uma época na qual aquela região era habitada por piratas e marcada por ventos adversos, era mais seguro e confiável usar caminhos terrestres ao norte da costa da Arábia e do Mar Vermelho; e pôr-se em direção ao oeste através do Sinai, como nos conta William Bernstein (Uma mudança extraordinária, Elsevier, 2009, p. 46-52) . As longas caravanas de seres ungulares perfaziam 50 quilômetros por dia e ali era comum a silhueta na paisagem que caracteriza as regiões desérticas, de dromedários e camelos perfilados para transportar o olíbano e a mirra, itens preferidos das aristocracias de egípcios e babilônios; mas também o bálsamo, preferido pelos romanos. Em uma época na qual as cidades eram confinadas e não tinham uma higiene eficaz, o ilustre historiador financeiro nos conta que tanto serviam para celebrar ritos sagrados nos templos, quanto para o uso doméstico; para receber visitas e celebrar a memória de figuras públicas e parentes importantes, mas também para produzir o óleo de uso profano, considerando os odores desagradáveis do corpo e dos edifícios sem saneamento. Acrescente-se ainda as fábricas de garum, de molho de peixe de enorme popularidade no Império Romano, que algumas cidades regulamentavam instalar-se a distância de quilômetros, para prevenir o mau cheiro… O garum, sendo o McDonald’s em seu tempo, também ensejava rotas de comércio transcontinentais de outros produtos. Assim que, para rezar e meditar nos templos e nas casas, o incenso era um item de luxo desejável pelas aristocracias, mas também algo necessário para concentrar o pensamento e o espírito, pois prevenia que fosse desviada toda a atenção das pessoas para o olfato. No Brasil, um produto cujos efeitos talvez equivalessem ao ar-condicionado.

Hoje em dia muitas pessoas têm ar-condicionado, mas poucas têm incenso em casa, muitas vezes voltado para as práticas orientais de meditação e mergulho dentro de si mesmo. A cultura ocidental tomou para si as práticas de meditação orientais e resolveu anular o ego, para alcançar um equilíbrio com o universo que os orientais povoam, mas que teria escapado aos países de um continente europeu, devastado pelas duas Grandes Guerras. Os espaços altamente competitivos e cheios de fricção nas metrópoles americanas, europeias e latinoamericanas de fato se tornaram lugar propício para o comportamento impulsivo e violento, o que talvez tenha justificado o aparecimento dessas comunidades místicas. Muito diferente esse uso do incenso para meditação, contudo, do uso do incenso granulado, hoje de uso muito restrito nas missas, mas que era voltado para celebrar a memória, os ritos de passagem, ou o encontro sagrado entre o passado e o presente, com alguém que tivesse merecido não fossem recordados os seus defeitos.

E nisto me lembro do tempo em que escrevo, no calendário da cultura judaica, o qual precede o ano novo nessa religião, em que é vedado falar mal do outro, por ser uma prática abominada pela Torá, a lei judaica. E também um requisito prático para que o ano seguinte seja um ano doce e marcado pelo respeito, pois nisso a sabedoria judaica é imensa: para um ano ser doce e haver nele respeito, cada um deve fazer sua parte nesse esforço coletivo, pois do contrário, o caos da maledicência inevitavelmente poderá lhe atingir. Na Igreja Católica esse é um tema de catequese, curiosamente mais ensinado a quem menos precisa: pois as crianças em geral não se preocupam em falar mal de alguém, em chamar testemunhas para preparar danos, nem com erodir reputações, se formos observar bem.

Fato é que não apenas deixamos de incensar pessoas e o passado; mas também aprendemos a tolerar a maledicência como algo que faz parte da democracia. O falar mal dos outros constatamos à medida que vamos crescendo. Em parte, repetir essa prática destemidamente talvez tenha se tornado um pré-requisito para fazer parte de um mundo supostamente adulto. O falar mal se torna necessário nessa etapa da vida, em que temos de competir por recursos, prestígio e sobrevivência? O fundamento dessa percepção de que falar mal de alguém é inevitável talvez esteja calcado no pensamento de que faz parte da natureza humana buscar competir uns com os outros. E nisto, os gregos, mais sábios, recorriam ao calendário e às efemérides para demarcar festas e competições com duração limitada, e sob regras esportivas, talvez a fim de prevenir o inferno e garantir que a glória fosse coroada a quem efetivamente a merecesse. Com esses importantes dispositivos estabeleciam uma sociedade de convívio saudável, ao menos entre os cidadãos. Mas pode ser que essa prática que, não obstante nossas origens ocidentais, persiste, esteja também calcada no fato de assumir, talvez inconscientemente, que não podemos ser felizes se alguém está mais feliz do que nós. Portanto de algum modo, falar mal de alguém a outrem, ao invés de resolver um assunto diretamente com pessoa, em um diálogo civilizado, não deixa de ter certa raiz no pecado da inveja. Ou, simplesmente, nos habituamos ao comércio de retaliações?

Poucos torcem o nariz e levantam as sobrancelhas ao ouvir alguém falar mal de outrem, como uma manifestação de inveja, ou refletem sobre qual seria a justificativa de retaliação. Talvez se assim procedessem, pudessem contribuir para curar o pecado que o outro não percebe reprovando a prática; mas estamos vivendo um momento no qual ou você se soma à maledicência, ou você não é amigo…

As novas tendências políticas de direita, eu li em um artigo recente, argumentam que o pensamento ocidental (e, suponho, de direita) recusa essa possibilidade de tolerância à maledicência por causa dos seus melhores pressupostos morais; assim como recusaria a tolerância à maldade, não sendo a maldade parte de um arcabouço institucional pensado, nem do caldo cultural brasileiro. Identificam-nos esses pensadores a tolerância à maldade com uma cultura estranha à nossa; dizendo-a parte, aliás de um ensinamento do pensamento crítico marxista, de esquerda, porque se vitimiza. Defende que o pensamento ocidental (de direita, eu suponho) é necessariamente melhor, porque calcado na autorreponsabilidade do indivíduo, na consciência moral necessária para exorcizar a maldade. Ora, o leitor reflete consigo, se atribuir a maldade exclusivamente a um grupo político que se identifica com políticas redistributivas, já não é, em si, praticar algum tipo de maldade… Poderia-se questionar então se ao se dizer vítima de uma conspiração global marxista não seria algo também vitimista… E afinal onde estaria essa suposta recusa moral diante da maledicência, que diferencia o Ocidente, se a maledicência corre solta contra quem é adversário político?

Ocorre que não apenas podemos encontrar nesse próprio argumento uma violência discursiva contra aqueles se identifiquem com um posicionamento político redistributivo, de esquerda, mas podemos também encontrar, no Brasil, uma quantidade considerável de evidências apontando que a tolerância à violência se manifesta também nos altos índices de criminalidade no cotidiano em que vivemos. E há inúmeros criminosos que não têm nenhuma ideologia.

Um criminalista de notório saber, Dr. Samuel Auday Buzaglo, subprocurador-geral da República aposentado, recorda-nos da literatura jurídica e da pesquisa forense, conforme a qual “em sua forma mais simples e típica, a violência é a erupção de uma paixão confinada. Quando uma pessoa (ou grupo) sente que seus direitos legítimos lhe foram negados num determinado período, quando sente que está constantemente curvada ante o peso de uma impotência que corrói qualquer vestígio de autoestima, a violência é o resultado final previsível. É a explosão do impulso de destruir aquilo que é interpretado como a barreira à autoestima, ao movimento e crescimento individual”. Afirma também que “de fato, a criminalidade hoje só pode ser examinada através dos recursos que possam ser propiciados pela Sociologia, pela Psicologia e pela Biologia sem prejuízo da colaboração, nesse grande trabalho de pesquisa, de outras medidas, recursos e condições que possam concorrer para decifrar este grande enigma que desafia o saber dos homens e que agiganta a sua sombra sobre a comunidade universal, comprometendo a tranquilidade jurídica entre os homens” (Palestra pronunciada em 9 de outubro de 2018, Revista Carta Mensal, Novembro de 2018).

O que constatamos na esfera pública, portanto, como maldade, ou como atos que produzam um dano em que se possa identificar vítimas, está longe de ser fato que possa ser circunscrito a um modo de pensar ideológico, ou “moral ideológica”, porque a violência raramente é conduta unívoca, e sim um fenômeno de alta complexidade; mesmo juristas e pesquisadores do tema ainda não têm todas as respostas.

E disso talvez cause espanto a violência discursiva, com a escalada que provoca dos limites do admissível, para o que concorre o aprofundamento de uma divisão entre as pessoas apocalípticas de pensamentos antípodas. Esse aprofundamento pelo combate à diferença, no cenário político, parece se reforçar pelo exercício de oposição voltada a capturar posições políticas estratégicas, e no fundo, recursos públicos; mas também para estabelecer um senso de triunfo, pelos humores que nos dita. Curiosamente, ao tentar subjugar seus pressupostos uma à outra, para fazer triunfar em qualquer vitória no espectro político de extrema esquerda e de extrema direita, esses radicalismos reforçam, no caos que criam, a relevância do espectro oposto; e talvez tenham ciência disso, sendo tácito o acordo de afastar da arena política os elementos nos quais prospera o bom senso. Essa segmentação intencional com que os atores se consumam eles próprios como eventos, na esfera política, não exclui ideologias de direita. É uma estrada acidentada em que transita a expressão do ódio, em seu princípio, por meio da maledicência: seja ele um “ódio normal”, ou um “ódio do bem”, como satirizam os mais perspicazes. Lamentavelmente, quem pavimenta essa estrada, minimizando a relevância e a gravidade da violência discursiva com que alimentam a opinião pública, acaba arriscando-se submeter a esse tipo de tráfego perigoso.

Contra essa percepção de que o pensamento e pressupostos morais de esquerda monopolizariam uma tendência ao exercício da crítica maldosa, seja ela “ódio do bem” ou não, e pela tolerância à maldade, caberia contudo lembrar que nos regimes socialistas e comunistas raramente iríamos encontrar pessoas de pensamento crítico; ao menos que não estivessem inumadas em algum terreno sem identificação, ou passando frio na Sibéria. Não é comum, nos grupos e partidos de matriz marxista e socialista, tolerar a diferença ou a crítica, mesmo interna, entre seus quadros, razão pela qual os regimes comunistas invariavelmente rumam a um sistema de partido único. Portanto nos surge como uma linha de raciocínio falho, porque ignora evidências da realidade, essa de considerar que o pensamento crítico, intencionalmente maledicente, ou que tolera o mal sem exorcizá-lo, estaria fundamentado em uma moral de esquerda que vitimiza o indivíduo, como alegam certos pensadores simpáticos a formular um novo pensamento conservador no Brasil.

Ora, vitimizar também significaria assumir que existe um opressor, e o pensamento de esquerda não costuma tecer grandes ponderações sobre a origem da opressão, senão atribuindo-a às disfunções estruturais de um “sistema” capitalista, neoliberal etc. com o qual rotula o ideário dos partidos de adversários. Assunto esse que, quando aprofundado, desinteressa aos partidos de esquerda, sobretudo quando o vitimismo pode suscitar evidências e sinalizar que a opressão aos pobres e desvalidos provém de seu próprio projeto de concentrar recursos públicos e monopolizar instâncias materiais de poder. Tendo convivido com ideologias de matriz marxista durante mais de uma década, o cidadão brasileiro é capaz de discernir que o elemento discursivo embasado em vitimizar-se pertence não a uma ideologia, mas àqueles que estão no poder e que almejam com isso justificar sua permanência, contribuindo pouco ou nada o fundamento moral da ideologia da moda, ou a “moral ideológica” em questão. Não fosse assim, conservadores não se diriam vítimas do marxismo cultural globalista…

O teor moral redistributivo, bem sabemos, no pensamento sociológico de esquerda contemporâneo, passou por muitas reformulações desde o marxismo e a queda da URSS. Uma delas a separação entre a temática política e a econômica, cristalizada nas reformas e abertura do regime comunista chinês; outra pelas próprias academias, tanto pontifícias quanto universitárias, ou dos organismos internacionais, os quais passaram a abraçar novos ensaios, como o de Rawls e Amartya Sen, que versam não sobre a ditadura do proletariado, mas sobre a pré-condição de redistribuir para alcançar uma sociedade justa, para garantir o desenvolvimento de oportunidades. E se poderia recordar, muito antes disso, até mesmo a doutrina social da Igreja, formulada pelo Papa Leão XIII, na Encíclica Rerum Novarum, em que se pressupõe, desde 1891, a política redistributiva como um passo necessário para garantir a concretização da graça de uma verdade evangélica, como na parábola da vinha.

Ao leitor leigo, em um aparte, recordo que a parábola da vinha é aquela em que o Senhor (o elemento divino), na representação de patrão, sai em busca de trabalhadores para sua vinha pela madrugada, contrata alguns por um denário (Mateus 20,1-16a). À medida que o dia passa, novamente vai o patrão em busca de trabalhadores, para que não se perca a colheita, às nove horas, às três da tarde e às cinco da tarde. Novos trabalhadores se animam e vão surgindo, em diversos horários do dia. Ao final do dia, alguns protestam: porque todos recebem o mesmo pagamento, de uma moeda de prata. Mesmo aqueles que trabalharam apenas das cinco horas da tarde em diante. Ao que o Mestre explica que o divino está justamente nisso, que cada um receba o máximo, desde que se anime a se fazer disponível, pois quem dá tem dádivas infinitas… Isto para dizer que não parece claro como a Igreja Católica, extremamente conservadora na moral e nos costumes poderia, pelo fato de defender discursos redistributivos, negar a autorresponsabilidade do indivíduo ou deixar de exorcizar a maldade. Muito menos os pensadores libertários ou liberais, desejosos de salvar os pobres para promover um capitalismo mais eficiente, embora bem mais recentes, parecem dados a com isso tolerar a maldade. Em quê exatamente seria moralmente impróprio formular projetos e promover o microfinanciamento para tirar as pessoas da pobreza? Não fica claro nesse argumento de novos conservadores.

Aliás, seria possível falar de uma moral ideológica, sem cair em uma formulação aleatória de raciocínio? Pareceria um debate definitivamente novo na filosofia ocidental, ou talvez na sociologia. Mannheim, quando cunhou o termo e o conceito ideologia, sendo a mais conhecida referência sobre o tema sua obra Ideologia e Utopia, estava preocupado em discernir não os elementos morais, nem teóricos, mas precisamente o que escapava à evidência, à lógica e à teoria: ideias que cresciam por influências, pela participação na vida social e pelas vontades às quais o indivíduo se encontra sujeito. Disso deduziria como as diferentes sociedades e grupos sociais se organizam ao redor dessas ideologias, dentre as quais o marxismo; mas também preparou um ensaio notável sobre a ideologia conservadora. E disso discerniu como diferentes ideologias precisam criar utopias para manter mobilizado o sujeito, além de continuar produzindo os seus efeitos práticos: e para que uma ideologia tivesse impacto, foi necessário produzir o evento da comunicação em massa.

De fato contemplar uma “moral ideológica” talvez fosse algo mais cabível nos esquemas psicanalíticos freudianos, o que li no tal artigo reclamando uma postura moralmente superior de um novo conservadorismo; porque justamente são esquemas de pensamento não falseáveis, nem verificáveis, que não pertencem ao domínio da lógica formal ou argumentativa. Se o homem é estômago e sexo, segundo Freud, é porque é assim. Algo redundante, constatar o comportamento como evidência para compreensão, contudo “Freud explica”… Mas mesmo assim não estaria muito claro para mim, leitor, onde Freud assinalou a ideologia como motivação psicológica relevante de conduta, tendo sido sempre esse psicanalista preferido centrar sua análise sobre as pulsões mais básicas do organismo biológico. De um certo modo, ensaiou sobre o absolutismo da experiência de vida do indivíduo, cuja maior parte se desenrola nos afetos familiares.

Curiosamente, revisitando Freud, porque não sou grande especialista em sua obra, o mesmo não se poderia dizer sobre o tema da cultura: e para minha surpresa, ele nos diz efetivamente o contrário do que argumentam os teóricos do novo conservadorismo, neste ponto, ao afirmar que “la satisfaction que l’idéal offre aux participants à la culture est doc de nature narcissique, elle repose sur la fierté d’une réalisation déjà réussie. Pour que la satisfaction soit complète, elle a besoin d’être comparée à d’autres cultures qui se sont lancées dans d’autres réalisations et ont développé d’autres idéaux. En vertu de ces différences, chaque culture s’arroge le droit de tenir l’autre en piètre estime”. Traduzido: “a satisfação que o ideal oferece aos participantes de uma cultura é narcisista por natureza, pois repousa no orgulho de uma realização previamente exitosa. Para que a satisfação seja completa, ela precisa ser comparada a outras culturas que se dedicaram a outras realizações e que desenvolveram outros ideais. Em virtude dessas diferenças, cada cultura se arroga o direito de ter a outra em baixa estima”. (L’avenir d’une illusion, Flammarion, 2009, p. 45)

Ocorre também que, quando alegamos contudo que uma “moral ideológica” seria superior à outra, como alegam ser a moral do pensamento de direita calcado na autorresponsabilidade, em relação à moral de um pensamento vitimista de esquerda, para isso precisamos ignorar o próprio conceito de ideologia. Pois assim se escapa da lógica formal que se pretende dar a um argumento, como se gostaria. Do ponto de vista epistemológico, considerar o indivíduo uma unidade autorresponsável e conferir-lhe autonomia implicaria em considerar válidas suas escolhas e preferências ideológicas quais fossem, por mais fossem ideologias que desejam anular ou restringir a capacidade de escolha racional do indivíduo, em nome de uma entidade coletiva, redistribuição, situação mais Pareto eficiente, ou bem comum. Parece ainda mais difícil analisar as ideologias e suas inconsistências desde um ponto de vista engajado em favor de uma delas, sem com isso cometer um ato falho de recair no narcisismo apontado por Freud. Pessoalmente prefiro não deixar de recorrer a uma boa ciência, nem reduzir a qualidade de pensamento, para enxergar as ideologias como são: ideias que se tornam referências para a ação do indivíduo por causa de influências diversas, e não necessariamente racionais, constituindo ideias que são à prova de qualquer argumento.

Para divertir o leitor em um alívio cômico, conto que esse “political divide”, ou politização exacerbada, como todos sabemos, resultante de uma maior exposição das pessoas a temáticas políticas, teve os efeitos mais diversos sobre as famílias, nas redes sociais, incluindo bloqueios. O que me recordou de uma postagem de uma parente distante, convocando internautas a condenar o Papa Francisco pelo seu apoio ao regime de Nicolás Maduro. Ora, o Papa Francisco nomeou um venezuelano, Padre Sosa, para candidatar-se ao cargo mais importante de sua ordem; o qual declaradamente se opõe ao regime de Nicolás Maduro, afirmando-o como ilegítimo e como um governo voltado para dominação política. Isso desde 2016, quando foi eleito pela 36a. Congregação Geral para o cargo de Superior Geral da Companhia de Jesus, em Roma; hoje em dia Padre Sosa apelidado o “papa negro”, pela sua influência. Também os seminaristas da Igreja Católica vêm sofrendo duras perseguições pelo regime de Maduro, tendo alguns deles sido forçados por guardas daquele regime a andar sem roupas pela rua.

Mas nada disso, depois de informado à minha parente distante, teve impacto algum na postagem e postura dela, a não ser o de aumentar o número de postagens de endosso irrestrito aos seus representantes políticos; como se o poder deles tivesse sido ameaçado por esse incômodo de um contrafactual, convenientemente ignorado. Certamente o leitor também já viveu alguma experiência assim, para nossa diversão. Por óbvio: o que ela e tantos cidadãos em busca de exercer sua cidadania publicam e manifestam, não depende de evidência nem de raciocínio, nem de uma conclusão resultante de um diálogo. Decorre talvez do que Mannheim, na sua longa abordagem preliminar do problema, descreveu como inconsciente coletivo. Juntamente com a atividade por ele impelida, serviriam esses elementos para ocultar, em duas direções, certos aspectos da realidade social. Assim ele escrevia quando buscou delinear o estado mental que decorre do conflito político irreconciliável nas democracias modernas. A ideologia é reproduzida por um comportamento de grupo que exclui o contraditório, como se isso enfraquecesse o próprio pleito, também porque busca estabelecer o próprio espaço por meio da maledicência e combate ao outro.

Esse “ponto cego do poder”, decorrente de uma competitividade eleitoral mesmo fora do período eleitoral, quando conduz a um combate permanente ao outro, tem produzido efeitos concretos. Observe o leitor que a incapacidade, na prática, de se articular politicamente, para conformar bases de apoio temático com outros atores relevantes da sociedade, identificando posições em comum, acabou por abreviar a onda liberal-conservadora na Argentina. E, ao que tudo indica, essa inflexibilidade ao impor uma superioridade discursiva para excluir o outro, sem agregar diferentes suportes para encontrar propósitos em comum, parece em curso de abreviar também o que começou a se construir como alternativa política liberal-conservadora em outros lugares. Mannheim também previu essa dinâmica, ao defender que uma das descobertas emergentes do conceito de “ideologia” seria a de que “os grupos dominantes podem, em seu pensar, tornar-se tão intensamente ligados por interesse a uma situação, que simplesmente não são mais capazes de ver certos fatos que iriam solapar seu senso de dominação”.

Mas deixando de lado, por enquanto, o problema de definir um bem absoluto e querer impor essa definição, sem recorrer a um dogma, o que por si é algo que não pertence à esfera intelectual-objetiva, argumentativa ou científica, e que talvez seja estranha até mesmo ao ato político, quando consideramos que a política é também a arte do diálogo e do convencimento, temos antes uma falha de argumento mais fácil de resolver. A asserção de que ideologias de direita têm melhor teor moral e são mais capazes de exorcizar o mal que ideologias de esquerda se esquece da possibilidade de ser vítima. Ignorar essa possibilidade é, em todo caso, também abominar o arbítrio e a possibilidade de que o mal se instale; pois se alguém faz o mal, alguém o sofreu e é vítima, e talvez isso seja óbvio demais para ser esquecido. Anular essa relação lógica, de que se existe o mal, é porque causa vítimas, por meio de recursos retóricos, não parece uma conclusão compatível com a realidade política na qual vivem e transitam as pessoas. Amparar-se em citações de pensadores libertários, liberais ou contra-totalitários não ameniza essa constatação: de que se negou a possibilidade do mal, por assumir uma ideologia como uma dedução racional moralmente superior, sob algum argumento de autoridade oculto. Pelo contrário, assumir a existência do mal e negar a possibilidade consequente de que o mal faça vítimas, apenas torna esse tipo de pensamento mais preocupante.

Afinal, diante desse discurso, o leitor se pergunta: o indivíduo, na moral ideológica de direita, é autorresponsável e não cogita ser vítima; então apenas cogita a possibilidade de ser o perpetrador do mau ato? Preocupa também essa negação da possibilidade de existência de si como vítima. E, do ponto de vista da disposição psicológica, preocupa também que a autorresponsabilidade exclua a possibilidade de ser vítima para ocupar invariavelmente o assento remanescente da maldade, o de algoz, tendo como única restrição a própria consciência dessa mesma “autorresponsabilidade”. Ignorar as diversas instituições e faculdades jurídicas da sociedade, nessa concepção filosófica de ordem social abstrata, considerando irrelevante o papel atribuído pela sociedade a várias instituições para prevenir um ato violento, ou para corrigir os seus efeitos, também não parece um caminho prudente, do ponto de vista de encontrar um raciocínio político que produza uma ação política eficaz, ou responsável, qual seja o objetivo. A erosão das instituições judiciais por causa do erro de seus representantes específicos é sintomática dessa baixa estima em que se deseja rebaixar a cultura jurídica como um concorrente político, ao invés de constitui-lo com jurisdição. Afinal, se assumimos o Judiciário como um concorrente político, quem irá atuar em casos de violações de direitos, e evitar que conduzam à violência e à desordem social generalizada?

Tampouco parece possível cogitar que, porque as ideologias e comportamentos totalitários fizeram parte do passado, ou porque alguém diga que estão encerrados no passado, estariam efetivamente encerrados no passado; porque a realidade não é a automática disposição da vontade de quem assim pensa… Qualquer pessoa pode arrogar para si um poder de portar verdade e superioridade, incapaz de tolerar a contradição e, com isso, coincidir em muitos pontos com o modo de pensar totalitário… Trazendo-o, assim, ao tempo presente, com todos os seus efeitos e incapacidades de reflexão, ao se colocar acima da possibilidade de refutação, ou de possibilidade de derrota política. Deixa de estar no passado, quando esse discurso busca um lugar de fala de poder, para negar a possibilidade de fazer uma vítima: maliciosamente esquivando-se das consequências de agir pela bondade ou de deixar de agir contra a maldade, porque é filosoficamente autorresponsável e busca corrigir-se…

Eis uma grande ilusão de futuro, à qual Freud bem se refere no título de seu livro: um pensamento que busca arrogar-se portador do futuro do Ocidente; quando o pensamento ocidental é tão diverso em suas proposições quanto o número de pensadores que consultamos, e a cultura algo tão complexo que precisa ser escrutinizado sob múltiplos aspectos… Ilusão essa que a cultura brasileira instintivamente desconstrói de maneira sumária, porque é muito pouco dada a esses sinais de grandeza materiais do protestantismo, para referendar teorias; e muito afeta a duvidar e satirizar o que deseja dispor quem toma, para si, uma posição de poder político, social ou econômico, em tentativa de impor sua perspectiva.

Como o próprio Mannheim analisou formalmente, encontramos brasileiros instintivamente em busca das “armas intelectuais” para desmascarar o inconsciente coletivo. E, de fato, as ideologias se corroem com o tempo, substituem-se e necessariamente cedo ou tarde se alternam, quando as distorções dissipam a êxtase de um sentimento de maravilhosa superioridade, quando vem à tona. Não parecem ter erodido as principais conclusões desse pensador, pelo que ainda é um clássico. Embora ele atribuísse essa derrocada a um princípio dialético, contudo, muito mais nos parece que, vista de hoje, a utopia é pináculo mas também o verdadeiro calcanhar de toda ideologia, pois o tempo é um fator implacável. O tempo demonstra a ingenuidade de uma utopia inalcançada, por meio da realidade frustrante em que vive o seu apologista: o tempo faz tombar a ideologia que a sustentava em estandarte como justificativa de poder. Esse hiato entre discurso e realidade encontra seus limites, à medida que vai se ampliando, até transformar-se na ironia com que se abordam os casais idosos.

Observando a história desde onde nos encontramos, o debate sobre as ideologias e a discussão epistemológica sobre a organização social, tanto nos seus elementos científicos e acadêmicos, quanto nos seus elementos pontifícios e de humanismos, também parece ter sido um fator importante, além das “armas intelectuais”, para neutralizar o impacto que as ideologias no poder, ao assimilar tendências totalitárias para preservar o poder, podem ter sobre a anulação do pensamento. Foi assimilando e dialogando sobre o socialismo na sua forma aplicada e digerindo suas utopias, concebendo várias fórmulas de um Estado de bem-estar, que a Europa conseguiu se poupar do que, sem filtro, poderia ter conduzido ao receio de um totalitarismo socialista, conducente ao monopólio de um partido único, que busca competir na esfera externa com ditaduras antípodas; ou que busca vigiar, controlar e punir excessivamente o comportamento do indivíduo, para disciplinar o “combate” durante um conflito político. Por outro lado, se tivesse reforçado e repisado a ideologia marxista desde um critério anti-normativo, como fizeram governos militares latinoamericanos, a Europa talvez tivesse reforçado a captura do Estado por esses movimentos monopolistas e autoritários em um momento posterior, e que tornaram o Estado uma finalidade em si mesmo.

Portanto, considerando as diversas influências e formas que podem tomar as ideias de esquerda, e se consideramos verdadeiro que, independentemente de ideologia, alguém pode ser vítima da indiferença ou do desprezo, ou da maledicência, que é o nosso tema, por ocasião da reflexão judaico-cristã; ou mesmo da violência, um tema mais recorrente no Estado brasileiro; então já não há por que alegar que constatar vítimas e reparar danos se confundiria com uma moral vitimista. Hoje o Estado brasileiro ainda anda composto por burocracias regidas por obrigações isonômicas de uma administração objetiva, mas que tolera convenientemente essas práticas de diferenciar as pessoas na forma de tratamento pelos discursos aos quais aderem. O Estado e a esfera pública, que dele independe, deveriam observar a isonomia e os regulamentos racionalmente convencionados, que fossem aplicados indistintamente pela função de conferir direitos e atribuir deveres, para concretizar o conceito de cidadania, mas… Eis que o debate de ideias raramente exclui o argumento ad hominem, confundindo-se a pessoa com o discurso; e isso acontece sobretudo para excluir o discurso que seja frontalmente contraditório a uma ideologia no poder. Cessam o debate e o diálogo, por exclusão de quem discorda, mas será que tem que ser assim? Não haverá um tempo em que, no Brasil, o debate servirá para produzir conhecimento novo, para gerar afetos, melhorar o que temos e para refletir sobre novas perspectivas? Se esse era mesmo o objetivo…

Afinal, anular os efeitos de uma ideologia totalitária de esquerda é algo bastante diferente de pregar uma ideologia totalitária de direita, não havendo apenas essas duas opções que os extremos nos querem fazer crer. Como diz o Mark Twain: muitas vezes é mais fácil enganar alguém do que convencer de que a pessoa foi enganada. Daí talvez a convenção de enganar os eleitores com um discurso pseudo-extremista de direita, fazendo uso de maiorias e da moderação política do centro; com que agora os próprios representantes do novo pensamento conservador acusam o governo de sucumbir ao comunismo…

Mas voltemos ao primeiro problema, o de dizer o bem absoluto, ou definir o que é moralmente superior, de atribuir à ideologia adversária e concorrente, que busca recapturar um posição de poder, uma moral vitimista e inferior; o que, recordemos, não é um pseudo-radicalismo de direita, mas efetivamente um radicalismo de direita. Nisto Freud ao ensaiar não se referia, por “oprimidos”, àqueles formuladores de políticas públicas vitimistas, de ideologia marxista, mas sim aos que invejam as prerrogativas das classes mais abastadas, que buscam despojar-se do excedente de privação. Afinal, justamente pelo contrário, portanto, ele se refere a “oprimidos” objetivamente como as pessoas despossuídas, para recordar como desenvolvem uma hostilidade intensa ao encontro com a própria cultura, quando a cultura se torna disponível por meio do trabalho. A incapacidade de gozar dos benefícios da cultura e de sentir prazer e obter satisfação com a vida cultural, bem como de interiorizar as proibições morais produzidas pela cultura, nessa categoria de oprimidos, para Freud, decorre da incapacidade de controlar suas pulsões, vontades e desejos, porque já vivem em situações de privação extrema (op. cit., p. 43); deixam de gozar do recurso civilizacional da cultura por causa da hostilidade à cultura, hostilidade que enseja sua situação: não por causa da ideologia, ou de uma reflexão de natureza moral…

E quais outras referências, além do próprio Freud, poderíamos buscar para finalizar esse pleito cuja derrota é certa? Nisto a citação de abertura deste artigo. Kant dizia que o Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é o culpado, “a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem”. Nesse sentido, evitando ser cínica, não me valendo de Kant para dele depender para chegar a uma conclusão, explico que reflito sobre a consistência do que ele considera uma falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Apenas o cito para convidar o leitor a perceber que, no mundo e na vida de qualquer sujeito, toda ideia estabelece necessariamente um diálogo. Ainda que seja apenas um diálogo consigo mesmo, assumindo elementos aqui e acolá do discurso de outrem, ou do discurso de ontem… E por que critico o que me parece um exagero de Kant, o de dizer que não existe pensamento próprio? Porque não subdelegamos a tarefa de raciocinar, quando buscamos dialogar e repensar o que dizemos desde o ponto de vista de outrem, ou incorporando perspectivas múltiplas. Aliás esse um elemento vital da política, para haver a circulação e propagação de ideias de um modo natural. A crítica de um pensamento político de extrema direita, que atribui a origem do mal a uma ideologia diametralmente oposta, de moral vitimista, encontra aí o seu paradoxo: não consegue incorporar elementos que não sejam aqueles que a própria doutrina ideológica de direita estabelece; e desse modo falha em construir um diálogo, senão com alguém externo, nem ao menos consigo mesmo.

Como obter uma solução para si, se não é possível sequer estabelecer um diálogo consigo mesmo? Eis porque esse radicalismo das autorreferências deve ser combatido no Brasil com vistas a desconcentrar o poder, por sua natureza com tendência a acumular-se: para desfazer focos de violência. Instintivamente, desde sempre, o brasileiro busca isolar esses focos e neutralizá-los com piadas, fofocas e memes, ou com os recursos disponíveis na contemporaneidade. Seria efetivamente muito melhor se, à semelhança dos tempos de Dr. Silvestre Pinheiro Ferreira, tivéssemos à mão um Manual do Cidadão, para dizer ser direito constitucional uma matéria de liberalismo político, e proporcionar, com isso, uma mudança de perspectiva da monarquia absolutista para uma monarquia constitucional… Um manual ou iniciativa na qual os estudantes de universidades e todo cidadão habituado a ler pudessem incluir-se; mas estes tempos são mais difíceis. Não há mais um Rei D. João patrocinando Dr. Silvestre e convocando-o a escrever, desde um exílio durante anos em Paris, algo tão útil em matéria representativa quanto uma teoria que concebeu o poder eleitoral como um poder autônomo, e que incluiu o Poder Executivo nesse mesmo raciocínio da necessidade de um exercício representativo por meio do diálogo e construção.

Por razões óbvias, porque assevera os seus pressupostos como algo que dispensa justificativas e explicações, pela superioridade moral que assume, esse tipo de postura narcisista, contudo, tem como ponto de chegada o triunfo absoluto de uma doutrina ideológica, para produzir a satisfação do sujeito. Isso não significa que terá alcançado uma maioridade do pensamento, nem a adesão da maioria, por uma livre escolha da sociedade; muito antes disso, sequer se compreende o sujeito que o triunfo absoluto pela vitória eleitoral não é possível. Pelo contrário, a vitória eleitoral conduz, para todos os propósitos, à queda e desgaste de uma proposição ideológica. Inevitavelmente, portanto, o formulador desse pleito segue uma orientação de um núcleo ao qual pertence ou ao qual deseja pertencer, jamais logrando o êxito de sair de sua menoridade intelectual, porque a visão das consequências concretas, a falta de triunfo e o desgaste, o desincentivaria continuar nesse rumo… Daí necessário o suporte desses grupos sociais ao seu redor, animando-o constantemente a uma utopia fantasiada. E neste ponto não apenas depende de outrem, para prosseguir em suas conclusões de insistir na permanência no poder como o único caminho plausível para obter satisfação, mas tampouco conseguiu ainda se compreender politicamente, por não incluir na sua visão de triunfo a existência, ainda que em paralelo, de concorrentes ou adversários.

Como assinalaram recentemente Wivian Weller e Lucélia de Moraes Braga Bassalo, na Revista Estudos Avançados, leio que testemunhamos um novo movimento político que se disponibiliza ao eleitor como opção, o qual as autoras caracterizaram curiosamente como “insurgência” de uma geração de jovens conservadores. Talvez tenham analisado como insurgência com isso pressupondo uma ordem constitucional prévia, que os houvesse submetido antes, do que insurgiram. O que, dispostos os fatos, parece bastante difícil de supor. Afirmam, de todo modo, resumidamente: “as contradições identificadas nos grupos, por exemplo, a defesa da liberdade individual e do livre pensamento para si concomitante à negação desse direito ao outro, podem não espelhar suas orientações na esfera privada, mas, no coletivo não são questionadas, já que as intenções políticas de suas ações são bastante claras”.

O artigo das autoras leva o leitor a algumas indagações, porque condescende ao analisar desde um lugar da fala com poder presumido, ao definir os novos conservadores que mobilizam o público como “jovens”; quando sabemos que existem há muito tempo no Brasil e são bastante velhos, já. Ocorre que apesar de existir eram apenas ignorados, ao menos antes de que se associassem a um projeto político-partidário militar. Também seria possível se perguntar por que o discurso político conservador implicaria negar um direito político ao outro, posto que o sistema representativo eleitoral é, por determinação constitucional, um sistema competitivo. Portanto, ocupar um espaço político é necessariamente deixar de oferecer ao outro o espaço político ocupado.

Outra indagação seria acerca do sistema representativo democrático, pois na sua constituição, não limita o espectro e leque de opiniões ou de posições político-partidárias que busquem negar o monopólio do poder por um partido ou conglomerado único; nem impede revisões e reformas de governo, qualificando maiorias. Essa zona cinzenta da liberdade de expressão, recordo, abarca também manifestações de esquerda: há poucos anos ouvimos um reitor de universidade, filiado a partido de extrema esquerda, declamar Bertold Brecht, afirmando que todo burguês merece uma boa bala… Tampouco se poderia afirmar que uma moral ideológica ancorada em um Estado redistributivista, o que o movimento conservador adversário define como “marxismo”, seria necessariamente mais compatível com a ordem constitucional que a moral ideológica que contesta seus resultados, argumentando o extremo de que toda decisão deve pertencer ao indivíduo.

A Constituição determina princípios, direitos sociais e individuais e organiza o Estado Democrático de direito, mas não limita a sua interpretação a que o Governo deve fazer cumprir esses princípios, nem hierarquiza os vários direitos arrolados, dizendo mais importantes os direitos sociais, ou o direito à equidade, que os direitos individuais, ou o direito à propriedade. Além disso, esses valores e princípios são dispostos constitucionalmente para reger a sociedade como um todo, sem restrições de que isso se faça necessariamente por via legal ou burocrática, por meio de partido único ou de ideologia redistributiva específica. Apesar de presumir uma ordem constitucional em que o seu caráter coletivo e social predomina sobre as liberdades e garantias individuais, o que revela algum teor de disposição política prévia, a afirmação das autoras que bem identificam esse novo momento conservador na política, sem embargo, não deixa de fazer sentido quando nos aprofundamos no problema. Talvez não pelo viés da ideologia, mas da ideologia no poder: quando consideramos que uma ideologia no poder fará uso dos recursos a seu alcance para eliminar ou restringir ideologias concorrentes, a contradição apontada seria bastante válida.

E nesse contexto, em que o equilíbrio está à sombra e as características de normalidade da concorrência política no escuro, como desenvolver a percepção política de si mesmo? As formas de governo, o espaço público e as instituições democráticas estariam promovendo ambientes propícios a essa emancipação do pensamento próprio do indivíduo e dos grupos políticos, para a superação dessas contradições dos discursos, para que as intenções políticas sejam reveladas? Sem isso dificilmente cada indivíduo poderá enxergar diferenças, gozar efetivamente de sua liberdade de opinião e, em particular, da sua liberdade de escolha. Como fazê-lo, para melhorar a relação entre representante e representado, bem como para evitar o sequestro da opinião pública pelo tecnopopulismo, em um país que ocupa as piores posições em rankings de educação formal, marcado pela imensa burocracia em que se acumulam favores e vaidades? E, recordando, ainda, sob a teia de nova disposição das relações humanas a distância, sem contar com os efeitos moderadores da empatia que a presença suscita…

Não tenho a resposta, salvo a necessidade de construir esses espaços nos quais possam ter efeito as “armas intelectuais” de Mannheim; e nos quais possam possam atuar, como salienta Freud, a minoria de indivíduos exemplares que, controlando e abdicando de suas pulsões e satisfações imediatas, conseguem construir para a maioria a possibilidade de ter cultura. De conclusão emancipada, deixo este mês um poema sobre um peso solidário, que partilho com o leitor e cidadão ávido de construir espaços de diálogo e de esclarecimento, para recordar que as decisões públicas de nossos representantes começam com a ser tomadas com base em nosso modo de vida, em nossas reflexões, nos projetos e nas decisões que tomamos para si mesmos.

Os mendigos do poder. Por Ana Paula Arendt

A mendicância extrema e a
Pobreza generalizada se elevam:
Pelo poder todos pedem.

As mulheres deixam de inovar
e de pensar sobre os problemas:
aceitam o que já sabem espúrio
em troca de uma foto em revista
e do reconhecimento de gente anônima.
O mundo já não pode ser todo abarcado
pelo pensamento em busca do sonho:
há de se aferrar aos pequenos cargos
e de se consultar antes quem diz autoridade,
para pensar sobre si mesmas.
O início de um século !

Os homens abdicam da iniciativa,
Deixam de provocar as mulheres;
Em nome de olvidar suas críticas,
Erguem a igualdade onde não existe…
Uns aos outros declaram-se amores,
Face à grande aridez do belo sexo.
Amores que, em breve,
Por prudência, podem se dissipar:
pois não terão quisto a beleza das coisas,
nem sustentado nos prédios humanos
as nossas colunas de sentimentos.
O passado quer hesitar passos.

Face à mendicância de poder,
a ditadura do que é grave e desproposital:
todos perdem a capacidade do riso.

O acúmulo de regras, leis e coisas.
A prostituição do gesto humano.
A mentira da opinião dissolvida.

Para ficar impregnada no momento que passa
A impressão que gostaríamos ter de si mesmos.

Esvanecida no momento seguinte
A marca d’água do repouso em si mesmo.

Para ganhar um pedaço de pão em prato de cortesia,
Para acumular o luxo e manter o trânsito
Das mesmas ideias,
Desvalorizado e destruído
O que antes conquistava a civilização:
O nosso tempo, um próprio modo, a nossa época…

Onde está a descoberta que nos muda?
Onde está a frase que não foi esquecida?
Onde está o pensamento bruto que não foi domado?
Onde está o privilégio de ter te conhecido?
Onde está o prazer da tua vida?

Ana Paula Arendt é poeta e diplomata brasileira. Escreve mensalmente na coluna ‘Terra à Vista’.

Ressalva: os trabalhos sob o pseudônimo Ana Paula Arendt pertencem ao universo literário, refletem ideias e iniciativas da autora e não necessariamente posições oficiais do Governo brasileiro. Estes trabalhos literários buscam estar em consonância com os valores e princípios da Política Externa Brasileira relacionados ao diálogo, à dignidade humana, ao desenvolvimento e aos direitos fundamentais do indivíduo. A autora está sempre aberta a sugestões e críticas.