TERRA À VISTA - Sobre a liberdade de expressão na cultura brasileira. Por Ana Paula Arendt.

‘Em uma atmosfera de liberdade, artistas e patrocinadores são livres para pensar o impensável e para criar a audácia; eles são livres para cometer tanto erros horríveis quanto para realizar celebrações gloriosas’. 
Ronald Reagan

‘Um livro deve ser o machado que
partirá os mares congelados
dentro de nossa alma’.
Franz Kafka

Certa vez eu vi uma tira de quadrinhos feminista p’ra lá de engraçada, o que me pareceu raro, tendo em vista que uma das prerrogativas do movimento feminista é não admitir piadas bem-humoradas sobre a trágica condição feminina. Conto que a tirinha era suficientemente engraçada para escapar a esse crivo, e era assim: uma mocinha e um jovem rapaz se encontram; o rapaz lhe pede um dólar emprestado para comprar um selo, ou um sanduíche, ou algo assim. Ela dá a ele 0,77 centavos de dólar. Ele pergunta de volta, ‘mas isto não é um dólar’. Ela contesta: ‘sim, é um dólar de mulher’. A autora da charge quis recordar que muitas mulheres, na mesma função, ganham menos que os homens, apenas pelo fato de ser mulheres.

Será que o mesmo raciocínio se aplicaria a outras dimensões da nossa vida? Afinal, ninguém nos vende um pão ou um livro em preços proporcionais aos salários de mulheres: os preços são iguais para todo mundo. É preciso, portanto, contabilizar nosso eventual prejuízo nas várias esferas, para poder lidar com ele, de maneira a pensar estratégias de minimizar danos e exigir compensações equivalentes.

Pois eu estava justamente pensando nas nossas liberdades e garantias, sobretudo na nossa liberdade de expressão, aliás reivindicada por um amigo que gosta de publicar críticas ao STF e à Constituição Federal, quando me indaguei se ele não estaria reclamando de barriga cheia: pois suspeito que muito menos poderia falar o libertário, se fosse mulher. Isso impacta na nossa liberdade de dizer o que se pensa? Para cada palavra dita por um homem, talvez eu possa apenas dizer 0,77 palavra, se fôssemos aplicar o mesmo raciocínio financeiro. Piadas à parte, vamos refletir se isso implica alguma dificuldade maior no que podemos escrever, tanto na vida pública, como na poesia e literatura.

O leitor certamente me diria que estamos no século XXI, que hoje uma mulher, assim como qualquer homem, pode se candidatar e pode escrever o que quiser e bem entender. Muito embora saibamos que não há tantas candidatas assim; que são menos numerosas ainda as mulheres eleitas; que não há tantas poetas mulheres quanto poetas homens celebrados… Que aliás, salvo melhor juízo, é esta exemplar que vos escreve a pioneira em abraçar a carreira diplomática e literária ao mesmo tempo, prisioneira do que é visto com um certo olhar torto: ser a primeira mulher que assim se declara gloriosamente dessa espécie inventada pelo Quai d’Orsay, o poeta e diplomata. Ao menos no Brasil.

Pode ser que muitas outras mulheres façam isso normalmente, sendo poetas e diplomatas com certa naturalidade, e eu não as esteja vendo, nem encontre seus contatos. De fato, talvez as mulheres poetas e diplomatas brasileiras sejam abundantes e muito dadas à acolhida, e eu um ser fugitivo. Mas raras vezes vi alguma; talvez venha a ver, no futuro, espero que muitas.

Mas, independentemente de ter outras experiências para contar, nas quais embasar meus argumentos, o que posso dizer na minha experiência pessoal, até o momento, é que poesia sempre me trouxe problemas.

Muitas alegrias, mas também muitos problemas, pois a liberdade de expressão faltou algumas vezes. E depois de tantos percalços e aprendizados, os poetas em geral, apenas mulheres, temos mais liberdade de expressão hoje do que ontem?

E eu então me recordo de onde surgiu essa ideia, antes de mais nada, de que o ser humano deve gozar de alguma liberdade de expressão como um direito inato, como uma garantia. Pois, afinal, teria surgido com os excessos reivindicatórios violentos da Revolução Francesa? Teria surgido nas declarações de direitos universais do homem? Nada disso.

Pois quem inventou, na prática, a liberdade de expressão como um direito de todo ser humano, talvez em resposta às pressões inquisitoriais da Igreja Católica contra heresias, teria sido o aristocrático Duque de Orléans, muito antes da vaga tradição de garantias em documentos declaratórios. Fez isso quando apoiou pela primeira vez um homem negro a produzir obras musicais, o Cavaleiro de Saint-Georges, o ‘Mozart negro’, e incentivou fossem encenadas na Ópera de Paris. Para tornar isso possível, o inventor da maçonaria francesa nela admitiu pela primeira vez o cavaleiro negro, elogiando sua sensibilidade: espaço clandestino onde então se consolidava a ideia de liberdade de pensamento e liberdade artística como uma manifestação legítima de toda alma.

A Igreja declarou incompatível o excesso da liberdade de pensamento que viesse a prejudicar o entendimento religioso dogmático, nas suas tantas denominações, mas nem por isso a maçonaria francesa deixou de resgatar seu mártir, Jacques de Molay (1244-1314), grão-Mestre dos Templários, o qual foi executado justamente por razão de ver subtraído seu direito a livre manifestação; por ter se declarado culpado, forçado a confessar culpa que não tinha, sob tortura. Embora os métodos de aglomeração da maçonaria tenham sido declarados incompatíveis posteriormente com a fé católica, poucos se recordam que o grão-mestre templário, juntamente com Godofredo de Charnay, estava sob a custódia do Papa Clemente V (1264-1314), o qual era contrário à sua execução por Filipe, o Belo; tendo morrido o próprio Papa após adoecer, em seguida à execução de de Molay, só podemos supor eram amigos próximos.

O patrimônio da Ordem Templária passou em parte à Ordem de Cristo, em Portugal, criada como Ordo Militiae Jesu Christo pela bula Ad ae exquibus de 15 de março de 1319 pelo papa João XXII ; em parte passou aos Hospitalários e, posteriormente, à Ordem Soberana e Militar de Malta, refundada em 1803, pelo Papa Pio VII, depois novamente confirmada por Leão XIII. A adesão à maçonaria, entendida como um movimento mais amplo de caráter naturalista, era penalizada até 1983 com a excomunhão. Entendimentos publicados em 26/11/1983 e em 10/03/1985 pela Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé esclarecem que a inconciliabilidade dos princípios da maçonaria com a fé católica permanece, a despeito da diversidade que pode existir entre as obediências maçônicas; que não compete às autoridades eclesiásticas locais pronunciarem-se sobre a natureza das associações maçônicas; e que não desconhece esforços para estabelecer um diálogo com seus representantes.

Ora: mas foi de um problema de violação da liberdade de expressar o pensamento não sobre o ordenamento do mundo, do universo e do papel divino, mas sobre si mesmo, forçoso ato de injustiça que a Igreja Católica não pôde prevenir, a origem desse movimento de livre pensar na clandestinidade.

Talvez por isso a liberdade de expressão na França tenha se enraizado com mais força, pela sua repercussão prática nas confrarias ocultas; e talvez por essa causa Paris tenha se tornado o destino de tantos poetas e artistas que não encontravam a mesma liberdade na terra natal. Tudo isso parece um retrato antigo do passado, porque fomos educados e aprendemos que gozamos, como pressuposto, de uma liberdade de expressão declaratória, garantida em lei; raramente por exercê-la de um modo concreto. Daí talvez a importância de pensar se temos hoje efetivamente algum progresso na liberdade necessária para produzir obras artísticas de valor universal, independentemente de nossa posição na sociedade. Na experiência prática, constatamos a liberdade de expressão que a lei nos garante, independentemente de nosso sexo, cor, ou renda? Cada um tem as suas histórias.

Eu me recordo que, quando criança, com pouco mais de quinze anos, na capital de Rondônia, no meio da floresta amazônica, portanto, fui transferida de escola e havia ganhado uma bolsa de estudos em um bom colégio internacional. Recém-chegada, eu me vi solicitada a escrever sobre um poema de Carlos Drummond de Andrade, aquele sobre a pedra no meio do caminho. Muito mais habituada a ler Cecília Meireles e Vinicius de Moraes, e também acostumada a ir todos os dias à Biblioteca Municipal ler os clássicos antigos, gregos, romanos, lusos e franceses antigos, eu raramente tinha contato com livros novos e lançamentos modernos nas estantes, mesmo nos anos 1990. Assim, sem encontrar as fórmulas de musicalidade nos versos com que os autores aos quais eu estava habituada e que seduziam o leitor, meditei tentando encontrar algo naquele poema moderno e cheio de lacunas algo a dizer sobre o que era a pedra. Nada me inspirava, e perguntei à professora de literatura sobre o exercício, o que deveria escrever. Ela respondeu: ‘escreva o que você quiser, na mais completa liberdade, qualquer coisa que você queira, porque afinal, a poesia é a liberdade do espírito’.

Pois acreditei nela. Naquela folha de papel e letras mal impressas, falhadas pela fotocopiadora, detestei o poema de início: então escrevi no exercício uma crítica feroz e gozadora, afirmando que era um poema de quem não tinha nada melhor para escrever, de uma completa falta do que dizer e que não poderia descartar certa preguiça: pois deixava ao leitor o problema de adivinhar o que seria a tal pedra. Sim, eu escrevi isto sobre um de meus poetas favoritos.

Fui chamada na diretoria.

Sim, também é verdade, isso. Foi em 1996.

Sempre fui excelente aluna, desde pequena elogiada pelos professores, pequenas coisas aqui e acolá que escrevi, me diziam os professores querer publicar; e eu era chamada a declamar nas festas, também elogiada pelo bom comportamento em sala. E pela primeira vez na minha vida eu ia parar na diretoria, por causa de uma opinião sobre um poema. E justamente quando havia ganhado uma bolsa de estudos! Eu naturalmente gelei e fiquei muito constrangida. O Diretor estava presente. Antônio Lúcio… Eu o amava e isso me acalmou em parte. Mineiro, ao mesmo tempo, e isso por outro lado me preocupou em parte. A professora de literatura leu em voz alta a minha resposta; e falou muito amargurada do seu teor, dizendo que ela não entendia como alguém poderia ‘avacalhar’ de modo tão desrespeitoso um exercício de literatura daquela forma.

Não sei se eu teria utilizado essa palavra para denotar um comentário de teor ácido.

Eu acho que foi necessária mais diplomacia nesse momento na minha vida, em tenra idade, do que em qualquer momento posterior que vivi; nem quando visitei Hebron, na Palestina, nem quando estive no interior da África Ocidental no meio das tribos ewe, nem quando estive negociando textos em Genebra, na OMC, em frente à persuasiva delegação americana, eu tive de suar tanto e usar tanta diplomacia para escapar daquela saia justa.

Em milissegundos de um tempo expandido silenciosamente eu observei a professora falar, escondendo sua condição exaltada em pausados silêncios intercorrentes no discurso. Ela havia se esquecido da licença que me havia dado para escrever qualquer coisa que quisesse? Havia mentido? A palavra dela não valia nada? Ou sequer se lembrava? Eu usei algum termo chulo? Ela não parecia estar me sacaneando, embora visivelmente me constrangesse, e soubesse disso. Talvez eu fosse uma aluna da qual particularmente se esperasse um determinado comportamento laudatório, por gozar de uma bolsa de estudos? Em silêncio eu observei o que diziam da minha resposta, sem compreender por que ela simplesmente não poderia ter me dado uma nota baixa no exercício e anotado seus comentários. Os demais professores de literatura presentes se pronunciaram e o Diretor permaneceu quieto, sendo mineiro, e ficou lendo qualquer outra coisa, enquanto elas falavam.

Hoje eu chego a essa conclusão, de que de fato a professora não quis me prejudicar, porque posteriormente, na vida de poeta, me aconteceu com alguma maior regularidade e frequência ser sacaneada em tribunais constituídos para avaliar qualquer texto aleatório meu, escrito com alguma displicência, subtraído de meu acervo privativo e denunciado via de regra por colegas extremamente competitivos, ou ex-namorados vingativos; o que me permite hoje discernir melhor o que é um evento inusitado do que é um evento premeditado. Pois conto ao leitor que parecia ela estar efetivamente transtornada pela resposta que dei; defendia Drummond como defendia a própria disciplina de literatura, a própria existência; como se uma resposta de exercício literário por uma aluna de ensino secundário pudesse colocar em risco a existência do poeta ou o seu prestígio. Talvez tivesse algum tipo de vínculo emocional com aquele autor? Havia sem dúvida um laço estreito que o poeta havia tecido. Eu, uma ignorante da obra dele e da poesia moderna brasileira, não sabia ainda de quem me havia decepcionado na leitura. Ficou claro para mim que de fato ela o idolatrava, a ponto de achar inaceitável que alguém desmerecesse um poema seu.

No fim das contas, tendo refletido mil hipóteses e dando-me conta daquela pedra que a professora colocou no meio do meu caminho, eu tentei explicar que aquela era apenas uma opinião que me ocorreu, de início, sobre um poema, que a minha visão era diferente da visão dela; que muito mais me agradavam os poetas da antiguidade clássica, que destacavam o valor da palavra na forma, na riqueza vocabular e de rimas; e que amava outros poetas brasileiros também, mas que observavam certas fórmulas de linguagem minimamente musicalizadas, para encantar o leitor. E muito humilde eu asseverei que, se talvez eu tivesse a oportunidade de aprender mais sobre a obra de um poeta moderno, certamente a minha opinião se tornaria mais parecida com a opinião dela, que aparentemente demonstrava se tratar de um poeta de obra louvável. Mas ela não deveria tomar uma crítica sobre um verso isolado em um exercício escolar tão a sério, sobretudo uma crítica baseada apenas numa impressão inicial e pessoal, sobre um único poema.

Pois assim nada aconteceu, felizmente. O Diretor me acalmou, e nos tornamos bons amigos. Ele muito ilustrado, me apoiou em vários projetos científicos posteriormente, e mesmo depois de muitos anos, já transferido, passei férias com sua família… O que era um evento constrangedor acabou se transformando em uma memória de amizade agradável.

Mas um mês depois do evento, já menos escandalizada, uma das professoras convocadas para a acareação de minha resposta, naquele exercício de literatura, trouxe-me livros belíssimos do Carlos Drummond de Andrade. Tinham capa dura e a sua poesia completa. As fontes e papel pólen magistrais. Ela me emprestou para eu levar para casa e ficar quanto tempo quisesse, com eles. É lógico que fiquei maravilhada com o cheiro da poesia dele e passei a ler tudo que ele tinha publicado. Encantou-me a rosa do povo. Como apenas dois versos meio a tantos outros se tornaram nos meus olhos inesquecíveis: teus ombros sustentam o mundo, e ele não pesa mais que a mão de uma criança… E pude constatar outras influências e referências que ele fazia à civilização que eu tanto valorizava, a máquina do mundo de Camões, lá estava nas mãos dele, com o mesmo murmurinho do poeta luso.

A Máquina do Mundo, Carlos Drummond de Andrade

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:

‘O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo’.

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno ‘Mais’ (edição de 02/01/2000), publicado aos domingos pelo jornal ‘Folha de São Paulo’. Fora publicado originalmente no livro ‘Claro Enigma’.

Eis que eu encontrava passagens gloriosas que me causaram grande surpresa e permanente impressão; que foram nascendo daquele buraco que a professora revoltada com minha crítica ferina cavou em mim. Passei a entender melhor a resignação com que ele escrevia sobre tudo, a sinceridade de não buscar fórmulas. Que ele não queria agradar ao leitor: mas partilhar a paisagem que via, pois assim já abraçava o mundo inteiro…

Ficou contudo aquela marca de ter iniciado uma experiência com a poesia mineira de um modo traumático: a sensação de ter sido obrigada a isso. A poesia tornada obrigatória é perversão terrível… Que o poeta conseguiu curar, felizmente. Hoje, com a distância que me permite pensar sem palpitar o coração, sem suar diante de uma autodefesa, e já amaciada e consolada pelo próprio poeta que critiquei, gauche na vida, eu me recordo do quanto foi constrangedor, ter exercido efetivamente a minha liberdade de expressão de um sentimento particular que produziu o poeta em meu íntimo; e me ver na posição de ter de justificar o que escrevi e exprimi, de arguir sobre a minha opinião, que eu julgava desimportante, em uma circunstância de alto nível de tensão, como é o evento de ser chamada na diretoria.

Afinal, mesmo depois de tanto tempo, eu ainda me pergunto: por que a professora não veio me tirar satisfações em sala de aula, depois do exercício, sobre a minha resposta? Ela quis de fato me hostilizar e expor por algo negativo que eu pensava e sentia, sentimento negativo despertado pelo poema; como se um poema devesse produzir a mesma sensação em pessoas diferentes, em momentos distintos; porque se sentiu ferida pela crítica a um autor que ela revestiu de autoridade sacra, e não acho justo rebater a crítica com uma defesa, com um argumento; mas com uma resposta desproporcional, constrangimento institucional, para que a crítica fosse não motivo para construção, mas para que fosse calada. Aquilo me feriu de volta, a ponto de ficar gravado na memória a impressão de que apenas se pode expressar elogios… O que me fez refletir ao longo da vida sobre essa sociologia da literatura brasileira, que parece mimetizar a nossa sociologia das estruturas socioeconômicas, em que se alimenta o autoritarismo e a estrutura de donos do poder, que bem identificou Raymundo Faoro.

O curioso é que muitos anos depois, quando eu fiz a prova de admissão à carreira diplomática, para exercer esse ofício na vida adulta, lá estava na prova de redação exatamente o mesmo poema sobre a pedra no meio do caminho, do Carlos Drummond de Andrade. Eu me arrepiei de súbito. Ele de novo. Não é possível! Que incrível coincidência. E justamente por ter sido humilhada, e percorrido a obra completa dele, e matutado durante mais de dez anos a respeito da sua obra, carregando aquela pedra, agora eu já tinha muitas coisas interessantes para escrever sobre aquele poema e sobre o autor, porque o compreendia; e de certo modo partilhava com ele o que era aquela pedra… E veio a felicidade de ter sido admitida. Não apenas de ter sido admitida: mas de ter sido habilitada ao serviço público calcada naquela formidável pedra de Drummond… Eis o final feliz.

Mas se engana quem acha que eu estaria finalmente livre para me expressar do modo que quisesse em poesia ou literatura, para exprimir ainda que fosse o meu tédio, apenas por ter sido admitida em um ambiente de alta cultura, no qual transitam os diplomatas e grandes escritores. Porque os locais de grande cultura em geral são, também, locais de grande exigência: seus estatutos imputam sobre os membros uma existência regrada de manifestação coletiva, mesmo no discurso do indivíduo. Aprendi que existem, portanto, as restrições de qualidade, se bem restrições que são boas, que nos desafiam…

Foram muitas as vezes, contudo, que as restrições à palavra não vieram para ajudar a construir uma obra, mas para tentar silenciar o que se pudesse vir a ser dito, ou o que quer pudesse causar riso e espanto. Não apenas o Estado quer impor uma forma impessoal a tudo que é impresso, e a tudo que seja conduta, ceifando o direito à personalidade, como ignora as perdas disso decorrentes: redução da riqueza de diversidade de expressão. Também a sociedade em geral no Brasil quer publicar apenas a gravidade das coisas; o que se encaixa diante de uma determinada estética previamente conhecida. A poesia feminina passou, então, por essa mesma lógica redutora, de que para ser livremente expressada, precisa elogiar e fazer parte de uma identidade minoritária. E então se excluem as mulheres da crítica fundamentada nos grandes clássicos e na análise poética de um modo geral, nesse mais amplo território que se compõe de Letras, vem como um lastro necessário a que qualquer autor cresça. Como disse o Pires de Almeida, o famoso crítico de Camões: Aristóteles foi homem e não viu tudo…

E eu retorno às particularidades que enfrenta a poeta mulher, da autora mulher, da crítica do sexo feminino. Nas cidades do interior do Brasil, sobretudo nos lugares que se aferram a uma religiosidade que se confunde com um moralismo de manifestação local, a mulher, em especial, não deve falar muito; que dirá, então, ser livre para escrever poesia e testar versos… Ou livre para amar e contar a história da Pátria, como diz Paulo Rónai ser o dever do poeta. ‘O silêncio de Maria’, é o que valorizam, pois toda mulher deve, conforme esse pensamento popularesco, imitar as virtudes de Maria. Mas essas pessoas de muito grande ignorância e de pouca humildade, preocupados em computar cada movimento feminino para estabelecer como uma mulher deve se comportar e se comunicar, raramente lêem por si próprias sobre a atitude das mulheres na Bíblia, sobre a sabedoria das Santas, sobre as doutoras da Igreja… Raramente refletem sobre as leituras sempre disponíveis na missa dominical, como se a reflexão funcionasse apenas naquele santuário restrito. Uma vez colocado o pé fora da paróquia, volta a reinar a opinião de que a mulher deve recolher-se da fala pública. Ignoram, portanto, que Maria recitou ela mesma versos inesquecíveis sobre si mesma… Sim, Nossa Senhora foi uma grande poeta, quando recitou um poema de notável musicalidade: ‘A minha alma engrandece ao Senhor / e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador…  / (…). Por isso, desde agora, me proclamarão bem-aventurada todas as gerações…’. (Lucas, 1: 46-55). É longo, o poema de Maria, o suficiente para refutar que ela fosse uma mulher passiva, ou que vivesse em silêncio.

Fico pensando que, na sua época, salvo pelos Santos, as pessoas também devem ter se incomodado muito com os versos dela: afinal, devem ter dito ou pensado seus vizinhos: quem ela pensa que é, para dizer essas palavras sobre si mesma, para chamar os soberbos de soberbos, em nome de Deus, como se fosse íntima d’Ele? Que mulher, senão afetada por grande loucura, teria dito ter sido engravidada pelo Espírito Santo? Quem é essa mulher sem nenhum senso, patrimônio ou poder, para se dizer louvada pelas gerações futuras? Ela deve ter causado muita raiva nos invejosos e soberbos, Santa Maria, a grande poeta… Até hoje há quem implique com a sua virgindade e debata sobre os aspectos de sua vida íntima, como se isso pudesse definir a sua imagem e a sua obra de vida, para diminuir sua importância, lamentavelmente. Os homens que não compreendem a virgindade de Maria, porque não a têm como nossa mãe…

Portanto, a poesia nos liberta o espírito para pensar e criar livremente, para nos dizer e expressar livremente; mas se expressar livremente, por meio de versos, também é algo que atrai alguma atenção sobre si mesmo, sobre o que queremos dizer; porque o poeta se confunde com o que está dito de universal no poema, e aí talvez comecem os problemas.

Não só o comportamento das mulheres, mas também a poesia e literatura no Brasil de hoje é algo muito regulado: em especial nas cidades do interior, deve-se escrever dentro de um certo contexto muito determinado dos saraus, obedecer a certos ritos de louvar os poetas que precederam, de merecer antes, por meio de uma corporação intrincada, o privilégio dos prêmios… Como se a boa literatura se fizesse de uma cobrança de pedágio pelo espaço, como se novos espaços não pudessem ser criados sem ensejar concorrência; ou como se a homenagem não fosse reverência que surge espontânea da nossa amizade sincera, porque carregamos e nos referimos necessariamente a quem nos atingiu no coração em cheio… Novas associações e regenerações foram-se fazendo, justamente para preservar, suponho, a necessidade de incentivo à novidade. Pois o território da literatura é regido e expandido pela liberdade de expressão, e pela sua falta se torna restrito. No Brasil, a poesia e a literatura se tornam uma chaga, e com isso, com alguma frequência, deixam de ser a livre expressão do sentimento e do pensamento e passam a ser o resultado de uma expectativa; de uma construção social do ego. O poeta luso Luís Serguilha tem um invejável repositório poético sobre esse tema, de constatar a inviabilidade de produzir sentimentos intensivos na obra, sem que esses sentimentos intensos existam antes na vida do poeta.

E também nas universidades brasileiras, por analogia nos trabalhos de inovação científica, por tabela e em certa medida, encontramos não raro essa mesma tendência de criar e reverenciar bustos, antes de observar o valor inestimável da obra e encontrar nela suas particularidades das quais desfiamos novos diálogos e das quais nos desafiamos a novos entendimentos: tudo deve ter citação de um autor prévio por causa da fama do autor prévio, como um trunfo, ou salva-vidas meio à tempestade de opiniões; mas e as construções novas?

Um metal de menor valor vem de ser misturado com impurezas de vaidade, de ocupar espaços úteis com os muitos objetos que nos oferecem; quando deveríamos ter maior senso crítico, em preparar na alma dos versos e das páginas um espaço aconchegante para um leitor ocupar confortavelmente. A poesia deveria ser a substância mais pura, extraída diretamente dos rios que correm em nossa alma… O lugar mais acalentador onde se encontra o sol e o riso. E nisso Jorge Luis Borges foi tão grande Mestre, inimitável, em nos ensinar o grande amor à literatura fazendo, criticando e disseminando boa literatura. Ele soube acolher poetas do mundo inteiro.

Alguém poderá me dizer que nem toda poesia é assim, nem toda literatura encontra essas limitações; que apenas a poesia e literatura de piores categorias escorregam nessas dificuldades e se paralisam diante dos entraves. Será? Fico satisfeita com as cobranças que recebi na vida, de todo modo, e se bem entendo é preciso haver alguma imagem, para atrair leitores, a substância da boa poesia também é algo muito subjetivo. Na Academia das Ciências de Lisboa, em uma das conferências recentes, sobre as lápides romanas em latim que restam como patrimônio arqueológico, o acadêmico correspondente e doutor José d’Encarnação nos trouxe o seguinte hebraísmo em latim vulgar: ‘quis eo qualis ego, tandem verum cernetur, amice!’. Debatemos a melhor tradução, que seria: ‘quem, como eu, a este estado chegar, então a verdade será revelada, amigo!’. Pois assim, dando passos de poeta e lendo os passos que foram dados pelos poetas que vieram antes, nós constatamos o que sabemos.

De todo modo eu me pergunto se não estaremos perpetuando a vaidade de nos ater às mesmas vivências, transmitindo às novas gerações de escritores e de leitores uma prerrogativa de lugar fixo da fala, formando leitores que não se deixam permear pelo valor poético para construir a si próprios; se não estamos transmitindo uma imagem falsa e estática do que seja ser bom poeta, abraçando como bom apenas aquele escritor que é enaltecido, pulando a necessária etapa de canonização, em que os seus milagres são questionados, para produzir ainda maior brilho. De onde se deveria extrair novas possibilidades de escrever poesia, se desce ao infernal juízo que busca decapitar nomes, que desincentivam a vontade de escrever.

E qual escritor nasceu escrevendo versos inesquecíveis e verdades insofismáveis? A poesia é um edifício em permanente construção. Existe hoje esse pensamento editorial de que o bom poeta é aquele que joga muitas folhas no lixo, quem deixa ser lidas apenas as frases caprichosas e deixa de lado o que pode reduzir a estirpe. Pois a meu modesto ver isso esconde a verdade e falha para com quem ama a literatura, pois fato é que ninguém nasce escrevendo grandes obras. A boa escrita leva muito exercício, incentivo e intimidade, a ponto de ser uma paixão duradoura… Amor também ao rascunho e ao que nem sempre é publicável, mas nos leva a observar reações e a colher resultado da experiência; a querer fazer algo melhor, ou que nos incentiva pelo constraste. Afinal, uma carne se serve com um acompanhamento, um vinho com o pão, por mais a carne seja mais substantiva e o vinho mais saboroso. E quem jamais terá queimado um prato, ao se distrair cozinhando? Aí sim, joga-se no lixo. Mas um poema pronto, ou um livro pronto, jogá-lo no lixo? Essa fixação em três estrelas Michelin na poesia e na literatura, sob permanente crivo, combina com a abertura da alma para se deixar tocar pelo verso, com o tempo e maturação necessários para produzir o estofo?

Não vamos confundir contudo a censura com a crítica, que também pode desconsiderar e desincentivar, mas que é ela própria um exercício da liberdade de expressão e de pensamento: temos o direito de ter nossa opinião sobre a obra de um autor, e por mais que não produza nenhum bom efeito, isso não deveria ensejar penalidades.

E de fato eu trago ao leitor uma ponderação de excelente nível da Doutora Lúcia de Almeida, sobre o processo de canonização literária de Camões, em que ela nos mostra como o mais notável poeta da língua portuguesa passou do estatuto de Príncipe dos Poetas ao de uma referência inquestionável: pela crítica. Pois se bem já era louvado e conhecido no Século XVII, foi de um embate entre críticos, Manuel Pires de Almeida, um homem que se declarou cidadão do mundo, de uma República das Letras, para tornar uma crítica possível, e João Soares de Brito, que se acabou por constatar que sua obra tinha produzido um valor sentimental transformado em quesito de atividade pública em Portugal. O resultado foi a conversão do seu crítico, homem digno, experimentado nas obras francesas e italianas, em um comentador relevante de Camões… Milagre que sem dúvida torna apropriada a transposição do processo de canonização para o contexto literário. Conta-nos a Doutora Lúcia sobre os sinais de transformação poética e literária que produziu a obra ‘Os Lusíadas’ mesmo no século seguinte, por meio de um mapa de relações poéticas, em que se define um território no qual autores e críticos vão se relacionando nessas concessões poéticas, trocando farpas, para ao final celebrar o resultado. Tendo em vista que uma obra de grande poeta enseja uma leitura plural, jamais unívoca: porque permite produzir distintas abordagens, quando não é lida por uma mente estreita.

Mas quando me refiro às restrições de liberdade de expressão que uma escritora sofre, eu não me refiro a essa crítica nem aos exageros dados entre os que se amam e que festejam, que amam a poesia e os livros, sejam bons ou ruins, o que nos desafia e nos diverte… Mas me refiro ao leitor que se coloca em um tribunal de opinião, que não resguarda apenas a opinião de si mesmo sobre uma obra ou rascunho, mas que se agrega a outros e buscam, de algum modo, destruir o autor; punir e desapreciar o objeto causando prejuízos, constrangimentos e punições a quem os produziu, de maneira a fazer cessar o desejo de escrever mais, ou a fazer um poeta inseguro, a ponto de retirar uma obra de circulação, como ocorreu com Hilda Hilst; proibindo, inquisitoriamente, tanto por regra como na prática, a expressão espontânea das palavras e a imaginação, o sentimento do autor.

Pois poderia então fazer um juízo muito chato, feminista, de que nenhum homem que tenha escrito uma bobagem ou libelo qualquer, ou pensado e se expressado livremente, tanto na escola quanto nos círculos de grande cultura, foi chamado a dar satisfações pelo que escreveu, numa espécie de tribunal formalmente constituído em que foi exposta e questionada sua obra ou rascunho, para justificar um escrito de teor poético ou literário, para explicar alguma ilustração de estória de fantasias, como aconteceu comigo mais de uma vez. Talvez algum dia alguém descubra onde estão esses registros de acareações formais pelas quais passei, por ter escrito qualquer coisa para minha própria diversão, nos recreios de tensões graves e dos momentos de solidão que a vida nos oferece, na tentativa de regenerar das violências sofridas, com o saudável e legítimo instrumento do bom humor, do espaço entre autor e obra.

Mas não fazendo parte dessa tendência feminista de retirar a beleza do mundo das mulheres por ser mulher, eu busco ver pelo lado positivo, o que de mais pulcro resultou de ter sido hostilizada. De fato, no pensamento judaico, e também por empréstimo no pensamento cristão, do acrisolamento das humilhações, de se ter em mente a iniquidade sofrida diante de si mesmo, a alguma distância, somos forçados a nos elevar em pensamentos mais altos. Dizem o exercício da Teshuvá. Ou se nos permitimos a espiritualidade inaciana, buscando pacientemente uma resposta, encontramos uma explicação para um aprendizado que decorre de uma humilhação sofrida. O luxo de contar com a sorte de uma moral da história, deixemos à parte…

Seria de fato falta de conhecimento e de seriedade de qualquer mulher, alegar que os homens não sofrem também desses assaltos, quando menos se espera; quando nos tentam roubar a liberdade de dizer o que sentimos e imaginamos. E se a humilhação ocorre com outro poeta, outro escritor, ver uma injustiça talvez seja pior do que viver uma. Disso me surge uma opinião mais revoltosa a respeito, para refutar essa abominável prática censora e autoritária de querer determinar o que pode ou não pode ser dito em poesia e literatura.

Fato é que recordo-me de tudo isso porque, deixando de lado a minha própria experiência de insalubridades e desfechos positivos, talvez até por empatia, estive muito mais perplexa com fatos menos graves, contudo não menos recentes, no que diz respeito à liberdade de expressão poética e literária em geral.

Afinal, no papel deveria reinar a soberania do escritor sobre a própria imaginação. Por que algo imaginado não pode ser dito? Não é livre o ser humano para imaginar qualquer coisa? Ora, é preciso ter uma opinião concreta sobre tudo, e tudo que se escreve deve encontrar um correspondente ‘concreto’ ou ‘correto’ no mundo real? Não se pode inventar no papel coisas que não existem, ou mesmo construir ironias sobre acontecimentos que existem? Estamos em pleno ano de 2020…

Eu faço essas perguntas tendo em mente alguns eventos reportados publicamente pelo meu tio, um conhecido poeta paulista de Belém do Pará, Celso de Alencar. Um pacato e sóbrio pai de família, muito dado a bons valores e bons costumes, mas que gosta de escrever poesia infame, sem quaisquer restrições morais. Na sua imaginação livre ele constrói fatos estranhos, cenas cinematográficas e sensibiliza as pessoas falando de coisas raras. Como disse um leitor e amigo dele: o grito do caboclo amazônico no escuro… Poucos conhecem a idade da Amazônia concretamente, suas cidades, onde a exuberância da mata inspira a devassidão moral como uma manifestação de nudez da alma, na concretude corpórea. E fato é que, por ser um homem muito sensível e sentimental, meu tio consegue sensibilizar leitores, a tal ponto que alguns passam a considerar a poesia dele algo não apenas incômodo, mas insuportável. A poesia perversa como um brado de rebeldia perfeito diante do sofrimento: não pode…

Uma poeta – veja bem, meu caro leitor, uma pessoa ilustrada sobre o processo de criação -, conforme ele nos relata, afirmou ter picotado o livro mais recente dele com tesoura e jogado no lixo. Ficou vexada porque ele afirmou que ‘Deus não é bom’, pois ‘O homem não é bom’, em um silogismo de seus poemas, quando com suas palavras discorre sobre como o ser humano não deixa cães e gatos ter relações sexuais livres. Pois ficou chocada, a poeta e leitora, com quem tentou encontrar novos limites para denunciar qualquer imoralidade humana no papel.

Vamos ao poema ‘Deus não é bom’, por Celso de Alencar

No final da tarde do último dia
Deus reuniu todos os animais
e lhes disse: crescei e multiplicai-vos.
E assim se fez. A terra foi povoada
e viveram o homem e a mulher
e os outros animais e suas fêmeas
se multiplicando, como lhes disse Deus,
gerando filhos até os dias de hoje.
Mas o homem não é bom. Nunca foi bom.
Faz tempo que encarcera os outros animais.
Sente prazer em vê-los presos
paga ingressos para vê-los presos. Estão presos.
Diz que assim preserva a vida
daqueles que chama de bicho.
A crueldade alcança ainda os gatos e os cachorros.
Guarda-os em casas e palácios, chama-os de filhinhos,
dá-lhes seu sobrenome e decepa-lhes o sexo.
Destrói-lhes a liberdade.
Destrói-lhes uma das substâncias da vida: o orgasmo.
Gatos e cachorros não podem gozar.
Estão proibidos. O homem não quer que gozem.
Definitivamente o homem não é bom.
Deus disse: foste criado à minha imagem e semelhança.
Deus não é bom.

Depois disso, outra leitora resolveu largar e devolver o livro dele, em plena tarde de autógrafos; depois de pedir que ele o autografasse. Folheou no livro um dos poemas e desferiu um juízo próprio, ao ler que ‘Deus é bom’, porque permite às mulheres ter amantes. Acusou o poeta de ‘irrigar esse tipo de coisa’. Ela não compreendeu o sarcasmo dogmático do título, com que um homem casado com a mesma mulher há mais de quarenta anos, experimentado portanto, quis abordar as dificuldades do sentimento e do prazer conjugal. Vamos ao trecho de sarcasmo do livro:

‘Poema para as mulheres que desconhecem a palavra de Deus’, por Celso de Alencar

Se sentires
nas tardes de frio
que já não dizes
eu te amo
ao teu marido,
ainda assim
queres tê-lo contigo
dividindo a tua cama
e sentes que
não deves deixá-lo
por ser bom pai,
ou simplesmente
por ser bom companheiro
ou bom homem,
deves lembrar
que Deus é bom,
justo, afável e piedoso
e deu a ti a liberdade
de dizeres em qualquer tarde
eu te amo
ao teu amante.

O que provoca riso em alguns, provoca escândalo em outros; faz parte. Ele tentou explicar que se tratam apenas de poemas, não do que ele realmente faz ou acredita. É a imaginação dele.

Mas a mulher, advogada que já conhecia sua obra, mesmo sendo admiradora da obra de Nelson Rodrigues, conforme ele relata, embravecida, largou o livro após tecer o comentário ácido que estragou seu dia. Talvez ela não estivesse em seus melhores dias, e toda mulher tem o direito de ser incompreensível… Oxalá pudesse dar uma colher de chá ao poeta, não se precipitando em suas conclusões, as quais nem sempre têm em vista esta ou aquela pessoa; que Deus a tenha e a abençoe onde estiver…

A pronta recusa a um livro, de todo modo, não deixa de transparecer uma certa urgência dessas pessoas em julgar a obra: pois os demais poemas que não produzem contestação são ignorados, como se ao todo na obra não se equilibrassem os versos, os sentimentos, os momentos e paisagens da vida. Representam leitores em certa medida extremistas: apenas interessados naquilo que excede a sua capacidade de tolerância e de compreensão.

Felizmente o poeta, mesmo surrado, afirma que debitou o cheque de venda de ambos os exemplares, que ao menos essa desfeita não lhe ocorreu.

A meu ver, há poemas de Celso de Alencar bastante mais pesados que esses, como o poema ‘111 picas’, um poema grave sobre o grave massacre no Carandiru. Uma turma de alunos de jornalismo teria feito um abaixo-assinado para que, após uma leitura a convite do coordenador do curso, ele retornasse e pedisse desculpas por ter declamado o poema a eles em sala de aula.

Sim! É surreal! Futuros jornalistas censurando poesia… O coordenador do curso, ele me conta, viu-se acuado. Afinal, tratava-se de uma universidade de jornalismo privada, portanto paga pelos alunos, e talvez por isso se viam na postura de exigir o que bem entendessem…

Mas não devemos aceitar o que estamos constatando, para que não encontre respaldo esse clima de moralismo barato e de perseguição gratuita, em que a realidade da qual o poeta fala ou da qual quer escapar não choca, mas o verso precisa ser abafado.

Além disso, esses acontecimentos revelam uma falta de cultura tão decepcionante! Machado de Assis escreveu um livro inteiro em que discorre com naturalidade sobre uma mulher que tem um amante, Brás Cubas; e a leitura desse livro, que todos conhecemos, é obrigatória em boa parte das escolas para crianças. Não é porque Brás Cubas, o protagonista da obra, acha normal e desejável uma mulher casada tê-lo como amante, que isso terá qualquer peso sobre o que pensa o autor sobre o assunto; ou mesmo sobre os leitores… E se tiver efeito, não é bom que uma obra literária leve a sociedade a pensar melhor sobre os próprios valores morais?

E os escandalizados estudantes de jornalismo? Solicitaram, do alto de seus pedestais de pureza e virgindade, de cujas credenciais permito-me duvidar, tendo em vista a larga flexibilidade moral destes tempos, que fossem feitos pedidos de desculpas pelas leituras de Hilda Hilst, de Bukowski, de Gregório de Matos? Ou jamais ouviram falar nem leram nada desses autores?

Fundia-se a cidade em carcajadas,
Vendo as duas entradas,
Que fizeste do Mar a Santo Inácio,
E depois do colégio a teu palácio :
O Rabo erguido em cortesias mudas,
Como quem pelo cu tomava ajudas.

(Gregório de Matos, DISCRIÇÃO, ENTRADA, E PROCEDIMENTO DO BRAÇO DE PRATA ANTONIO DE SOUZA DE MENEZES GOVERNADOR DESTE ESTADO)

O que explica esse moralismo exacerbado que leva as pessoas sobretudo mais jovens, os millennials, a se sentirem insultados pelo que lêem, a ser mais censores do que o Rei e do que a Igreja, nos séculos do Brasil Colônia? A infâmia e a luxúria não podem ser escancaradas nem escarnecidas no Brasil do século XXI? Fica a pergunta que não deveria ser necessária no ar, irrespondida pelo nosso próprio constrangimento…

Isso me fez recordar também da história de Boccaccio, correspondente de Petrarca, cuja obra mais conhecida é Decamerão. Nesse livro o poeta italiano expôs com grande obscenidade práticas sexuais às quais certos religiosos pendiam em sua época, ao refugiar-se nos conventos e monastérios. Curioso que em Florença, em 1497, o monge Savonarola persuadiu o povo a destruir cópias que detivessem da obra Decamerão…

Não obstante, salvo melhor juízo, àquela época era fato bem conhecido que Boccaccio recebia missões diplomáticas do Papa Urbano V; e se as recebia, mesmo depois de ter publicado Decamerão, era porque uma obra ficcional não necessariamente é relato jornalístico sobre a realidade; porque não poderia ser interpretada literalmente, nem mesmo no século XV… A sua obra tinha também bons efeitos: perturbava a consciência dos que se entregavam aos excessos e à concupiscência, pela denúncia, no leitorado, da extravagância e libertinagem de certas ordens monásticas, ainda que fictícias; talvez assustando as almas menos propensas a observar o voto de celibato. Não obstante as polêmicas e o prejuízo em geral à imagem da Igreja Católica em sua obra de ficção, Boccaccio foi perdoado pelo Papa Inocêncio VI, em 1359. Manifestando apreço e tendo prestado serviços à Santa Igreja, refutou suas obras profanas e teria até mesmo tido suas dívidas quitadas pelo Vaticano. Depois de se confessar, foi enterrado na Igreja de Santos Jacopo and Filippo. Na sua lápide consta o epitáfio escrito por ele mesmo:

Has olim exiguas coluit Boccacius ædes,
Nomines qui terras ocupat, astra polum.
Hac sub mole jacent cineres ac ossas Johannis,
Mens sedet ante Deum, mentis ornata laborum
Mortalis vitæ. Genitor Boccacius illi
Patria Certaldum, studium fuit alma poesis.

Quer dizer: dedicou-se inteiramente à poesia com a mente posta perante Deus. Ora, o monge Savonarola terá sido autoridade maior que o Papa Inocêncio VI, para reclamar a destruição das obras sarcásticas de Bocaccio, que ainda faziam tremer religiosos, promovendo a disciplina os mosteiros e conventos, algumas décadas depois?

Antonio Cândido também nos conta, muito emocionado, dois causos de Vinicius de Moraes que penso vale a pena partilhar com os leitores. O relato dele me faz refletir sobre essas mesmas razões particulares de brasileiros elitistas, na década de 1940, quando os representantes do Estado Novo já estavam interessados em censurar até mesmo revistas especializadas em poesia, para demonstrar poder ou autoridade de correição. Pouco dados a compreender que o nu do poeta não visa a ofensa, mas celebrar a vida; como o nu artístico renascentista não visava nada além de celebrar a beleza e a inovação da técnica artística.

Pois em 1943, há apenas algumas décadas, Antonio Candido nos conta em posfácio de uma edição de coletânea sua de 2008, que Vinicius declamou a ele em um público restrito de duas pessoas, na casa de Lauro Escorel, na rua Manoel da Nóbrega, o poema ‘Balada do mangue’, o qual seria publicado em ‘Poemas, Sonetos e Baladas’. Nesse poema Vinicius discorre sobre as mulheres da zona de baixo meretrício com que os homens se iniciavam sexualmente naquela época. Ele não teria conseguido publicar em um periódico, porque o tema era ousado e a censura estrita. Durante o Estado Novo, Antonio Candido também conta que um outro poema de seu livro, ‘Rosário’, em que Vinicius expõe em versos a sua iniciação sexual naquela zona do Mangue, foi publicado na Revista do Brasil (3a. fase) e que isso motivou a apreensão daquele número da revista pela polícia.

Balada do mangue, Vinicius de Moraes, Oxford, 1946

Pobres flores gonocócicas
Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!
Pobre de vós, pensas, murchas
Orquídeas do despudor
Não sois Lœlia tenebrosa
Nem sois Vanda tricolor:
Sois frágeis, desmilinguidas
Dálias cortadas ao pé
Corolas descoloridas
Enclausuradas sem fé,
Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?
No entanto crispais sorrisos
Em vossas jaulas acesas
Mostrando o rubro das presas
Falando coisas do amor
E às vezes cantais uivando
Como cadelas à lua
Que em vossa rua sem nome
Rola perdida no céu…
Mas que brilho mau de estrela
Em vossos olhos lilases
Percebo quando, falazes,
Fazeis rapazes entrar!
Sinto então nos vossos sexos
Formarem-se imediatos
Os venenos putrefatos
Com que os envenenar
Ó misericordiosas!
Glabras, glúteas caftinas
Embebidas em jasmim
Jogando cantos felizes
Em perspectivas sem fim
Cantais, maternais hienas
Canções de caftinizar
Gordas polacas serenas
Sempre prestes a chorar.
Como sofreis, que silêncio
Não deve gritar em vós
Esse imenso, atroz silêncio
Dos santos e dos heróis!
E o contraponto de vozes
Com que ampliais o mistério
Como é semelhante às luzes
Votivas de um cemitério
Esculpido de memórias!
Pobres, trágicas mulheres
Multidimensionais
Ponto morto de choferes
Passadiço de navais!
Louras mulatas francesas
Vestidas de carnaval:
Viveis a festa das flores
Pelo convés dessas ruas
Ancoradas no canal?
Para onde irão vossos cantos
Para onde irá vossa nau?
Por que vos deixais imóveis
Alérgicas sensitivas
Nos jardins desse hospital
Etílico e heliotrópico?
Por que não vos trucidais
Ó inimigas? ou bem
Não ateais fogo às vestes
E vos lançais como tochas
Contra esses homens de nada
Nessa terra de ninguém!

Pois data de décadas recentes essa ideologia moderna de censura, esquecendo-se que tantos artistas trouxeram temas escandalosos desde o Século XIV às suas obras, como Boccaccio, Bocage, Fernando Pessoa, e outros artistas que pintaram prostitutas no séculos anteriores, como Manet, Toulouse-Lautrec, van Gogh, Gervex, Degas… Quando hostilizados publicamente, eis que os artistas se refugiavam sob a proteção papal no continente europeu, ou dos Orléans, na França, é verdade. E aqui no Brasil não se estende também a autoridade dos Papas, e não temos preservado também a valiosidade dos nossos próprios Orléans brasileiros?

Não obstante a ignorância artística, eu não posso deixar de pensar que, à diferença dos séculos anteriores, é a falta de religiosidade que, paradoxalmente, tem produzido uma geração incapaz de tolerar na arte o anátema; porque é incapaz de abominar anátemas na vida real. Nicho também incapaz de constatar os próprios defeitos e abominações, a própria indiferença ao que concretamente é imoral e infame, quando exposto no cinema, ou na televisão, ou no noticiário, ou na vizinhança… Causa-me espécie!

Afinal, é a religiosidade que nos coloca contra a parede da consciência a todo momento, pois na religião nos defrontamos com os padrões morais que a tradição nos exige; é quando precisamos confessar nossos pecados e resumir nossos defeitos. Na conversa com Deus, estamos nus: diante da presença divina todos os desvios nossos e os desvios diante dos quais silenciamos são conhecidos. Essa falta de refletir sobre os próprios desvios e silêncios, perante a infâmia, a luxúria e o anátema que vemos todos os dias, parece levar as pessoas a uma arrogância de querer determinar o que pode e não pode ser imaginado, escrito, versado… Com qual malabarismo moral inusitado essas pessoas toleram o mal, mas não o achaque ao que é perverso, revestido de pureza poética?

Pena que não é moralismo falso, que se auto-equilibra nas suas pretensões e não vai longe; é puro moralismo para valer, naquele entendimento original da palavra: só gente chata e cheia de ódio à liberdade, mesmo, e em certa medida imoral, porque adere a uma atitude oportunista, querendo ganhar alguma reputação em cima de um artista desavisado, que raramente dispõe de recursos ou de berço. Vão consolidando um cerceamento autoritário da liberdade de expressão e de pensamento na arte, com base em dogmas inventados pelo próprio indivíduo, ou grupos politizados; o indivíduo que se desconhece e desconhece o pecado da soberba, o grupo que apenas valida quem pertença ao grupo.

O que penso sobre a poesia de Celso de Alencar? Ele tenta encontrar beleza poética na decadência, em certos poemas faz isso com imensa emoção e brilhantismo, mas sua obra vai muito além disso. Seus poemas nos levam ao limiar, porque é um poeta capaz de nos fazer sentir.

Mas ainda que não fosse meu tio, ou que eu não o considerasse um gênio, ou que não gostasse de poesia: será que eu teria alguma dificuldade em simplesmente deixar o livro dele quieto na estante, dar para uma biblioteca ou vender a um sebo? Desde quando se tornou necessário destruir um livro ou humilhar um autor por um texto que nos incomoda? Basta fechar o livro e não ler o texto.

Eu bem me recordo, em um dos tribunais aos quais fui submetida na vida, indagada sobre textos que escrevi, que não pude deixar de comentar: ora, quanta atenção estou recebendo… Por que mereceria tanta atenção? Eis-me ali, uma pessoa qualquer, no seu canto, escrevendo qualquer coisa. Por que o interesse em analisar e imputar significados que o próprio autor recusa, ou ignora? Por que o desejo de causar dano a um autor, expondo-o negativamente em um tribunal de colegas, manifestando-lhe desapreço, por uma obra cuja motivação desconhecem e que, mesmo assim, desagrada?

De certa forma, não deixam de prestar homenagem à escrita e ao poeta, aqueles que censuram e não hesitam em cercear a liberdade de expressão do outro, nem mesmo na poesia ou na literatura. Assim provam que há certas obras que não se podem des-ler, certas palavras que não se podem ignorar; e certas pessoas que, mesmo aparecendo uma só vez na vida, ainda que por meio de uma folha de papel, não podem ser olvidadas.

Devemos insistir em uma liberdade de expressão maior do que a que temos? Que vá além do teor declaratório dos instrumentos legais de que dispomos? Não deveríamos descartar a importância do texto de direitos e garantias, que nos permite identificar quem o manuseia pelo avesso das inconsistências.

O leitor atento me lembraria, então, de aviltamentos a liberdades muito mais graves, de existir, de ir e vir, de viver em paz e ter convivência familiar, liberdades muito mais fundamentais para gozar da paz do espírito necessária a escrever poesia e literatura. Sem dúvida nós estamos em um momento no qual a violência e a sobrevivência é uma preocupação mais grave, sobretudo quando falamos de mulheres autoras que desejam escrever o que a imaginação manda, mas que se veem tolhidas pelos juízos morais e pelo uso inapropriado que os homens obssessivos fazem, para justificar contra elas qualquer violência.

Contudo é na falta de liberdade de expressão que essas restrições e violências nascem, é no plano discursivo que começam. A incapacidade do leitor brasileiro de se distanciar do que lê e de não produzir, da interpretação do que leu ou ouviu, uma reação punitiva, é manifesta na esfera pública e nos patíbulos das instituições. Essa imaturidade de estar na esfera pública sem causar dano ao outro ceifa a criatividade: livros deixam de ser escritos, a saúde do escritor é prejudicada… E o isolamento deixa de captar sentimentos partilhados e partilháveis. O resultado é que temos melhores escritores e artistas mais celebrados em Portugal, na França, nos EUA, na Rússia, na Polônia, até mesmo na Alemanha… Onde, aliás, conseguem manter o patrimônio necessário à sobrevivência e sobriedade. Porque um bom livro é resultado de inúmeras tentativas e erro, da experiência de colher diversos entusiasmos…. Para ser escrito necessita desse pressuposto de que o poeta, o escritor, não fique carregando eternamente o peso de muitas pedras que atiram nele.

Deixo ao leitor este mês, além dos poemas já transcritos, um diamante especial composto por ninguém menos que o Embaixador João Cabral de Melo Neto durante o horário de trabalho. Ele o escreveu para o poeta de quem me tornei leitora e amiga. Naquele tempo dos grandes, de fato parecia bem mais difícil pôr em prática assovios, versos e flores; pois se não gostavam do verso, ou se os leitores se ofendiam com a reclamação poética, ainda por cima era necessário se defender de ser expulso sob a pecha de comunista, ou de bêbado… De modo que apenas posso concluir que hoje temos, sim, alguma melhor liberdade de expressão de produzir algo que nossa própria consciência condena, e ser grata por ela.

Difícil ser funcionário, João Cabral de Melo Neto

Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos
Pedindo conselho.

Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas,
E outros não-fazeres.

É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tão pouco essas palavras —
Funcionárias, sem amor.

Ana Paula Arendt é poeta e diplomata brasileira. Escreve mensalmente na coluna ‘Terra à Vista’.

Imagem: Poema dedicado a Carlos Drummond de Andrade, extraído dos “Cadernos de Literatura Brasileira”, nº. 01, publicado pelo Instituto Moreira Salles em Março de 1996, pág.60.

Ressalva: os trabalhos sob o pseudônimo Ana Paula Arendt pertencem ao universo literário, refletem ideias e iniciativas da autora e não necessariamente posições oficiais do Governo brasileiro. Estes trabalhos literários buscam estar em consonância com os valores e princípios da Política Externa Brasileira relacionados ao diálogo, à dignidade humana, ao desenvolvimento e aos direitos fundamentais do indivíduo. A autora está sempre aberta a sugestões e críticas.