TERRA À VISTA - A liberdade ou a vida. Por Ana Paula Arendt.

“Gengis Cã foi citado como exemplo no célebre discurso de Hitler aos seus comandantes antes da invasão da Polônia em 1939: ‘A nossa força está na nossa rapidez e na nossa brutalidade. Gengis Cã matou milhões de mulheres e crianças por sua própria vontade e com um coração jovial. A história só vê nele um grande construtor estatal’.”.
Ron Rosenbaum, na obra
‘Explaining Hitler: The Search for the Origins of his Evil’,
Capo Press, 1998. p. 175.

“Rezo por todos os governantes? E se achardes, quando fizerdes o exame de consciência antes de vos confessar, que não rezastes pelos governantes, confessai-o. Porque não rezar pelos governantes é pecado”.
Papa Francisco, 15/11/2020.

“É para que sejamos homens livres que Cristo nos libertou.
Ficai, portanto, firmes e não vos submetais outra vez ao jugo da escravidão (…) Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não abuseis, porém, da liberdade como pretexto para praze­res materiais. Pelo contrário, fazei-vos servos uns dos outros pelo amor”.
Carta de São Paulo aos Gálatas, 5:1 e 5:26.

Muito já escrevi a respeito da liberdade e da vida, nas entrelinhas de ser livre e de viver: o estado normal das coisas. Alguns citam Lacan, Freud e grandes pensadores, e o melhor debate mais sensível que vi sobre a vida foi uma coletânea de vídeos de entrevistas do Abujamra, pela “Vacabird”, no YouTube; dizem que é a última moda na TV Cultura. De fato pouco entendo o que é a vida. Todos os dias, ao despertar, me assusto. A vida é um grande mistério.

Mas ninguém poderá me convencer de que a teoria de que a vida é um mistério serve sem a prática. A explicação dificilmente supera a realidade das coisas, que se transcorrem no momento em que se transcorrem; e geralmente a explicação tem de concordar com a realidade, se quiser explicar algo.

Mas, quando no exercício do pensamento, a liberdade se coloca em contraposição à vida, um bloqueio me acomete: o susto de point de capiton, de Lacan, o Boaz adormecido, de Victor Hugo. Esse tipo de bloqueio geralmente me suscita alguma vigília, pois se algo travou, e falta estofo, algo não está funcionando na taba. Aquele arrepio na espinha e formigamento nos dedos logo passa, pois estão todos vivos, e isso verifico antes de continuar escrevendo.

Prossigo então esmiuçando essa contraposição em dois debates que observei este mês. Ser o vetor de um vírus letal, deixando de usar máscara ou de praticar o distanciamento social, dentro do possível, apenas por alguns meses, durante os picos de contágio, é ter liberdade? É possível reclamar a liberdade de causar dano? Publicar cartuns ridicularizando a religião e autoridade religiosa alheia é ter liberdade? Pode-se arguir a liberdade de insultar?

Isso me fez lembrar de Gengis Cã e de seus sucessores, das consequências da resposta afirmativa a essas perguntas, dadas pelos que proclamavam a liberdade de causar dano, a liberdade de insultar, a liberdade de torturar, a liberdade de massacrar… E assim por diante. Provocavam um desencadeamento junto a seus seguidores e, se não fosse interrompida a transmissão dessa linha de pensamento pela segurança institucional, a violência continuaria se proliferando, reivindicando ser liberdade; causando problemas que nos desanimam, ou que nos conduzem à exaustão. Em excesso, esse tipo de problema mobiliza e pode sobrecarregar as instituições e a sociedade civil, resultando, em última instância, em desacato à liberdade e à vida. Em outras palavras: escravidão. Existe uma grande armadilha de infelicidade na vida dos ditadores, montada pela consciência, ou pela falha dela. Proteger a vida e a liberdade humana, a vida e a liberdade de todos os governantes, por meio da oração, para uma liberdade que liberta, e não que escraviza, foi um pedido recente do Papa Francisco. Se não conseguir orar por todos os governantes, a instrução do Vaticano é confessar-se pelo pecado. As orações por todos os governantes, e não apenas por alguns, geralmente têm um efeito muito benigno e traz bons resultados visíveis, quando conseguimos levá-las a cabo com sinceridade de coração.

A liberdade pressupõe antes a vida, e para viver é também preciso ser livre. Compreender a origem dessa contraposição entre liberdade e vida não é fácil, porque essa prática de reivindicar uma liberdade absoluta contra a vida não está apenas em um indivíduo amaldiçoado pela História, em busca de perpetuação de uma glória territorial; não está apenas no espírito do mal que sequestra ao soldado humilhado em busca do triunfo absoluto; nem está apenas em eventos recentes perpetrados pela ira ou irracionalidade… Mas de algum modo é plantada no inconsciente coletivo das pessoas. As falsas contradições não podem ser resolvidas, e por isso favorecem a ascensão de uma autoridade, que ao concentrar poder estrategicamente, faz-se um ditador: a pessoa que as massas escolherão para resolver o problema de uma falsa contradição que aceitaram, para respaldar o conflito.

A solução, trazer esse conflito para o consciente, iluminar o problema, por meio do diálogo na esfera política, muitas vezes resolve. Não deveríamos recusar a politização de quem exerce decisão política ou que busca dirigir a opinião pública: pois é a política, a arte do diálogo e o seu cuidado, a serviço da vida e da liberdade, que nos salvam de uma tendência de concentração de poder, pois esvazia as intenções daqueles que desejam acumulá-lo, contra-apresentando a fatura da responsabilidade. A centralização excessiva do poder, a falta de harmonia entre as alternativas políticas e o desguarnecimento jurídico de valores e princípios em comum, formam juntos uma combinação que produz arranjos instáveis, governos derrubáveis e países facilmente depredáveis. Produzem justamente o contrário das promessas dos ditadores… Porque toda promessa que promete maior liberdade e melhor vida e, ao mesmo tempo, suprime a nossa liberdade e a nossa vida é falsa.

Este mês, recusando essa falsa contraposição, porque sou brasileira, busco seguir escrevendo viva e livre no meu canto: não se pode deixar de viver, enquanto se vive, e o espírito é livre, porque é espírito. Temos alguma liberdade e temos alguma vida para pensar e pulsar, até o momento.

Transcrevo e traduzo portanto um poema que escrevi em espanhol, sob muita adversidade, se bem sob alguma adversidade é que todo poema é escrito, até mesmo para que possamos colocar em perspectiva os problemas. Estava passando o furacão Iota onde resido, estalando as madeiras, paredes e janelas da minha casa, marcando a pior temporada de furacões já registrada, além de outras tragédias, como o judiciário brasileiro, a pandemia, os atentados terroristas na França, as eleições nos EUA e a cidade e o aeroporto em que eu ia pousar totalmente alagados. Testemunhar pessoalmente a vida das pessoas e das autoridades sob o peso desses eventos foi difícil. Ainda assim, ao chegar em casa, e debaixo do furacão, no fundo do meu quintal havia uma azaleia branca florindo. Nada disso conseguiu destruir a florada dela. Que poder admirável! Uma mera florzinha.

A azaleia branca, por Ana Paula Arendt

O ruído do furacão açoita as janelas. No telhado a sua água de maior espessura, a selva aérea de chuva, o clarim do quetzal jamais olvidado, o peso que soa a granizo e destruição. Sua voz se debate entre as penhas de terra e a casca do mar. Ao longe Zeus porfia seus trovões contra a lástima de Poseidon, por seu coração partido; como se a culpa de seus desejos fosse crime de nossa humanidade. Os estampidos que estremecem os ossos de nossas casas convocam à reunião de fragilidade em nossas cidades. A majestade da montanha detrás de nós nos comanda estar seguros; e fala de nossa escassez ao furacão, como nossa mãe: o ser humano risca de leve a superfície da Terra. A voz gigante da montanha protege aos homens, machos e fêmeas: os que firmaram seus nomes com raízes mais profundas nas suas encostas. O berço de seus braços de pedra, em que o vento do mar se dobra, chama-se Tegucigalpa. O mundo girando em busca de agitação, produtos, embalagens e espelhos produziu um efeito nímio na temperatura. Mesmo assim, esse mínimo fez dele mesmo a mais grande revolução dos mares e de ares sobre um continente central em forma de lua, sim… O seio de mar salgado se agita sobre a gente pobre. Somos agora a figura de proa da nave de nossa civilização moderna, a ponta primeira e serena onde se estala a onda selvagem do mundo. Ainda que sobre o uivo escuro nas madeiras de minha casa, entre as paredes cimentadas sobre os cômoros de minha mãe, debaixo do vozeirão fustigante do vento descontrolado, uma azaleia branca me esboça um sorriso. Eu a vejo toda florida e feliz de chuva, inocente da fricção desses vocábulos ruidosos, os quais denominamos deuses. Sim, ela ignora o pânico, o medo e a angustia de tudo o que se diga superior a seus renovos*. Enquanto a gente se retira do campo e das bordas da água, enquanto as autoridades se defendem das maldições e seguem resgatando a quem os maldizem, ela segue paisageira de seu horto de coisas, e de sua roupa brotam ainda mais flores diante de meus olhos. Jamais foi tão feliz a azaleia ao encontrar meus olhos afligidos, incontáveis suas pétalas de delicadeza branca que desabotoam como papel de seda desde o presente de suas ramas, envolvendo minhas mãos… E que faço com ela, indiferente a tudo que nos afeta, com sua integridade inquebrantável, com seus artesanatos tecidos dos afundamentos de nossos planos, desconhecida da resvaladura de terra? Ela segue florescendo enquanto buscamos amigos que demonstrem amizade, a miséria de ajuda que nos reconstrua desde a miséria, sob a fadiga do dia já não mais distinto da noite, irreconhecível para ela tudo o que dedicamos de nossa mesma hora incessante. O furacão furioso dispõe todas as dúvidas a todas as árvores, demonstra sua maior força sobre seus intentos de alcançar o céu… Mas diante de seu sopro, a azaleia não se dobra: rainha de quem tampouco o furacão conhece a existência. E dobra as palmas, e destrói o coração decorativo de nosso Natal, inunda as comunidades mais pobres e expulsa a ribeira de suas margens… Eu olho seriamente para esta azaleia branca aguda e escuto seu murmúrio, porque ela me fala com ainda mais força que o fenômeno catastrófico… Pois: já estão em silencio as fricções entre o homem e a natureza… Sua voz me conta sobre o seu ideal de força simples arrancada da destruição: de como ela traiu a desgraça. A azaleia me concede a beleza dos botões que alegraram meu coração, os que transformaram as minhas súplicas de dignidade na beleza do dia seguinte. A azaleia se aproveitou do céu, de sua fúria e de suas lágrimas grossas: disso vingou sua floração múltipla debaixo do pior ano de furacões de nossa história. Não estaria segura sem os meus braços, sem as paredes intercaladas destes fios fortes de filhos e heróis, sem as colunas robustas de meu peito. Mas é a felicidade desta flor que me faz sentir sólida e ser um teto invencível; porque me oferece seu reconhecimento, seu manjar delicado, por haver plantado sua flor entre os meus feitos.

* ‘Vástago’, renovo, rebento. Em Salmo 80:15, Isaías 11:1, Isaías 60:21, Daniel 11: 7.

Ana Paula Arendt é poeta e diplomata brasileira. Escreve mensalmente na coluna ‘Terra à Vista’.

Imagem: Azaleia branca.

Ressalva: os trabalhos sob o pseudônimo Ana Paula Arendt pertencem ao universo literário, refletem ideias e iniciativas da autora e não necessariamente posições oficiais do Governo brasileiro. Estes trabalhos literários buscam estar em consonância com os valores e princípios da Política Externa Brasileira relacionados ao diálogo, à dignidade humana, ao desenvolvimento e aos direitos fundamentais do indivíduo. A autora está sempre aberta a sugestões e críticas.