TERRA À VISTA - A idolatria às lideranças e suas consequências nefastas para a paz. Por Ana Paula Arendt.

Esse culto a celebridades na figura do governante e de seus familiares, o que chamam de populismo, quando é na América Latina, é um desserviço à democracia em toda parte. Não se deve idolatrar alguém cuja função é prestar um serviço, prestar contas e, depois do mandato, entregar o cargo novamente à sociedade. Por que idolatrar até mesmo ex-governantes? Quem quiser continuar na vida pública, após o exercício do cargo, deveria fazer algum serviço social, mas esse é o dever de todos, sobretudo dos que recebem um apoio razoável de segurança e de proteção do Estado, por ter exercido um cargo público.

Uma celebridade na política tem sua função e prerrogativa de influenciar positivamente a vida das pessoas, sem dúvida; mas quando se transforma em um instrumento de apego ao poder e visa interferir nas escolhas das pessoas, pode ter consequências nefastas sobre o raciocínio público, ou à falta dele.

Você, leitor, idolatra o síndico do seu condomínio? Ou o ex-síndico? Idolatrava a representante da sua turma na escola? Ou seria ridículo e constrangedor ficar fazendo propaganda dele ou dela em toda e qualquer oportunidade da sua vida? A política e a dimensão da esfera pública é mais do que apenas um governante pelo qual se tenha simpatia.

E por que um síndico insistiria tanto em ser reeleito, se é um trabalho desgastante, cuidar da própria vida e ter de resolver ainda problemas do prédio, também dos demais? Pode até ser reeleito, mas não seria motivo de nenhum destaque ou comemoração… Apenas mais um evento normal da vida.

As pessoas acham que a II Guerra Mundial é algo distante, e que os conflitos internacionais são hoje algo isolado e esporádico. Mas os conflitos ainda existem, transpostos a outros cenários propícios às disputas; e eles estão profundamente interligados com a excessiva competitividade entre lideranças mundiais, motivadas por essa expectativa de prestígio e fama. Essa expectativa, por sua vez, é alimentada pelos seus eleitores, interessados em demonstrar sinais de um poder nacional e de triunfo a seus vizinhos e colegas, por meio de seus governantes…

Quem perde com os conflitos? Quem perde com a falta de paz em um mundo interligado é todo ser humano.

Os eleitores que tomam para si o governante como um instrumento de poder, para monopolizar o que é moralmente correto, olvidam que uma liderança é um denominador em comum para se identificar com o outro, talvez como parte de uma mesma nação; certamente de um mesmo propósito construído em comum… Os que evocam uma liderança para não se recordar de uma identidade comum perderam completamente a perspectiva. O governo não serve a isso, pois um representante e liderança digna é precisamente alguém que faz o contrário: alguém que se eleva para não entrar em disputas. O sentido de existência que justifica um governo democrático, por um cidadão qualquer qualificado por uma maioria, é prestar um serviço ao cidadão e ser um bom cidadão, observando as leis e buscando o bem comum, tão somente…

Por que transformar o Estado em um palco permanente de disputas e rupturas, fora do período eleitoral, ao invés de enxergá-lo como realmente é, um prestador de serviços? Tenhamos força e bom senso para resistir a essa tentação de uma cultura de gente besta, de idolatrar quem apareça se autoelogiando, dizendo-se portador da verdade, ou quem lançou um livro dizendo o quanto sofreu, batalhou e venceu na vida… Ora, Adolf Hitler também lançou um livro que foi um sucesso de vendas; e o sucesso de público não fez dele uma boa pessoa ao governar. Desconfio de quem jamais se angustia, nem comete erros…

Afinal, um governante não é melhor nem pior do que você: é um cidadão comum, com seus direitos e deveres de concidadania fraterna. Por mais que um líder político tenha detrás de si uma máquina de propaganda cultural, um aparato eficiente de inteligência e rios de dinheiro para se eleger, eleger seu sucessor e lhe convencer do contrário… A decisão e o dever cívico, religioso e moral de não idolatrá-lo pertence a você.

Este mês deixo ao leitor um poema sobre enfoques. Ídolos geralmente enfatizam apenas uma fatia da realidade que lhes convêm, ou que lhes trazem; mas uma liderança tem a responsabilidade de olhar para o cenário completo e para o ser humano que existe em cada pessoa.

Tenhamos um enfoque sempre mais amplo quando o tema alcança a dimensão pública, buscando soluções positivas nas várias dimensões de um problema, para não nos entregarmos a uma visão alquebrada da realidade; caminhando para evitar e superar uma tragédia.

A feliz ignorância de Satã (Para São Uriel). Por Ana Paula Arendt

Quando Satã inventou o Estado,
Mandou queimar corpos vivos de mulheres.
E quando Deus criou a bula papal,
Cessaram de queimar corpos vivos de mulheres.

Quando Satã inventou o Judiciário,
Mandou prender nas masmorras homens inocentes.
E quando Deus criou a ampla defesa e o julgamento justo,
Cessaram de prender nas masmorras homens inocentes.

Quando Satã inventou o Direito Civil,
Mandou dispensar e humilhar as mães envelhecidas.
E quando Deus criou a honra da pensão e da divisão de bens,
Cessaram de dispensar e de humilhar as mães envelhecidas.

Quando Satã inventou o direito ao aborto,
Mandou matar todas as crianças que nasceriam ilegítimas.
E quando Deus criou o abrigo e a piedade no ventre materno,
Cessaram de matar todas as crianças que nasceriam ilegítimas.

Então, tomado de fúria, Satã mandou fazer
Um ídolo do direito ao aborto,
Revestido de um ídolo do Direito Civil,
Revestido de um ídolo do Judiciário,
Revestido de um ídolo do Estado;
Violou uma criança, para destruir a piedade no ventre,
Proibiu as mães envelhecidas, para destruir a honra,
Transformou-se em homem, para destruir o julgamento justo,
Matou a menina no ventre da menina, para queimar corpos vivos de mulheres.

Foi assim que Satã, apressado, quis declarar vitória e calar a Deus.
Foi assim que Satã quis perpetuar seu culto à vitória no limbo das vaidades.
Foi assim que Satã, satisfeito, viu Deus gritar desesperado,
com os corpos de mulheres queimadas nos braços,
guardando para Si a pureza de suas almas.
Contudo 600.000 crianças escaparam de Satã, estão felizes brincando;
10 milhões de mães estão recebendo pensão e bens, e resguardaram a honra;
100 milhões de homens foram inocentados;
e 1 bilhão de corpos vivos de mulheres seguem dançando todas as noites,
sendo elas próprias o fogo eterno,
sob a música das muitas faces luminosas de Deus…
E isso Satã não viu: porque não está com Deus.
Por essa razão Satã segue feliz na sua ignorância,
celebrando a morte e desprezando a vida,
buscando novas crueldades no seu inferno escuro,
proclamando vitória, sendo um derrotado…

Imagem: Arthur Hendricks & Thomas Stokes.

Ana Paula Arendt é poeta e diplomata brasileira. Escreve mensalmente na coluna ‘Terra à Vista’.

Ressalva: os trabalhos sob o pseudônimo Ana Paula Arendt pertencem ao universo literário, refletem ideias e iniciativas da autora e não necessariamente posições oficiais do Governo brasileiro. Estes trabalhos literários buscam estar em consonância com os valores e princípios da Política Externa Brasileira relacionados ao diálogo, à dignidade humana, ao desenvolvimento e aos direitos fundamentais do indivíduo. A autora está sempre aberta a sugestões e críticas.