TERRA À VISTA - A falácia do sistema e a importância da vontade política. Por Ana Paula Arendt.

“Hasta la muerte, todo es vida”.

Miguel de Cervantes Saavedra, Don Quixote.

“Dialogar é dizer o que pensamos e suportar o que os outros pensam”.

Carlos Drummond de Andrade, O avesso das coisas – aforismos.

Uma parte da sociedade, resignada de seus deveres cívicos de atender ao cidadão do outro lado do balcão, gosta muito de um argumento que é chavão obrigatório em certos circuitos sociais: o de que nada se pode fazer contra “o sistema”.

 

São modernos, assistiram o filme “Matrix” e fazem parte de uma década que se dizia mais recente, embora já não estejam em tanta atividade; denegaram pedidos simples de qualquer natureza amparada em direitos e deveres; deixaram de se posicionar politicamente sobre temas que chegaram a seus escaninhos virtuais; não tiveram qualquer iniciativa, porque prescindiam de ordens superiores, ou porque receberam ordens de superiores.

 

É a cidadania negativa: o posicionamento de asseverar a impossibilidade de qualquer mudança substantiva por meio da ação do indivíduo ou de sua vontade. Debita-se a culpa na forma como estaria estruturada a sociedade: as complicações de implementação, o cumprimento de protocolos estabelecidos por uma empresa ou por um órgão público, o formato regido por leis, regras e instituições – embora frequentemente nunca esteja muito claro quais são as justificativas dessas regras para denegar direitos fundamentais; e embora nem haja um estatuto ao qual as pessoas tenham aderido previamente, para aceitar que o sistema imponha encargos, mas não funcione.

 

A negação da vontade política, a falta de apetite intelectivo para pensar as consequências dos próprios atos e declarações sobre a política e sobre o meio ao seu redor, como um elemento relevante para gozar direitos fundamentais, é a base do pensamento estruturalista, cujo legado de um falso vanguardismo, que prega ser a renovação, quando quer, na verdade, permanecer uma referência; eis princípio do fracasso das políticas públicas demonstrado década após década no Brasil. Refiro-me ao verniz estúpido sobreposto sobre a parede sem reboco.

 

Essa negativa da importância da vontade do indivíduo, paradoxalmente é  também prática muito recorrente dos defensores de fábulas sociais, das quimeras oportunistas: ou a revolução, ou a resignação. Detestam reformas, por mais esteja entupido todo o encanamento com o lixo que a sociedade brasileira foi depositando sobre as instituições, como a chuva leva o lixo aos bueiros. As instituições padecem então com um déficit resultante de democracia, porque almejam uma democracia fundamentada na dirigência.

 

Uma carta de direitos dispõe direitos, um estatuto dispõe obrigações da instituição de Estado, mas o burocrata cria uma tão imensa quantidade de regras e raciocínios, para moderar e regular direitos de modo tão oneroso, que o gozo efetivo do direito substantivo se torna uma matéria irrelevante. A subtração do direito não costuma trazer nenhum benefício ao burocrata: mas concede o prêmio do seu ócio, do automatismo mental; a satisfação do exercício do pequeno poder. Talvez esse isolamento do gozo próprio anteceda até mesmo a justificativa de reconhecimento perante os pares.

 

Afinal, o que ampara as justificativas das instituições, representadas pelos seus burocratas, para o cerceamento do outro, diante do efetivo exercício do arbítrio, da opinião e da liberdade, na qualidade de cidadão, quando existe uma adesão voluntária, ou o simples ato de vontade política? Ora, o poder econômico e o poder político hostilizam a formação de novos públicos, a alteração de perspectivas, o retorno a valores que sejam a eles anteriores, ou qualquer sinal de virtudes. Os monopólios e oligopólios políticos recalcitrantes sempre buscam os defeitos na novidade, antes de projetar as novas ideias. A corrosão da autoridade leva à inércia… Fato é que não haverá instituições efetivamente democráticas no Brasil, enquanto não houver o instinto de aceitar a novidade, ainda que para transformá-la; de defender incondicionalmente as prerrogativas básicas de liberdades necessárias para exercer a cidadania.

 

Mas está sobretudo baseado em pressupostos igualitários, quem busca negar e retirar do indivíduo o sonho do livre exercício de seu arbítrio e liberdade. Nisto vêm há mais tempo insistindo os clássicos liberais, que vão além do mero aspecto econômico, os ditos radicais que incidem sobre as amarras, de impacto muito restrito no Brasil. Na ausência de espaços liberais e conservadores, buscaram os cidadãos brasileiros que fogem do tédio, das ameaças e da morte, um refúgio debaixo de tetos que protegem ao menos o circuito interior de vida: a religião. Os ambientes religiosos ao menos assim prometem: livrar-nos dos sintomas e prejuízos que provocam os arreios do poder, ainda que pelo seguro isolamento de um discurso inaproveitável.

 

Interferir na liberdade de religião e de adesão, na liberdade de assimilação política voluntária de um discurso, interfere necessariamente na liberdade do indivíduo, na liberdade de associação. Beira a insanidade, portanto, a autoridade que, ao falhar em defender a esfera cívica dos tentáculos invasivos do burocrata, deseja ir mais longe, impedindo o gozo dos direitos e garantias fundamentais já recolhidos a uma esfera mais íntima da fé. Essa esfera íntima, a propósito, deveriam as autoridades igualmente proteger, ao invés de regular; assim como na esfera cívica, hoje ocupada por agentes tóxicos, deveria-se atuar preventivamente para proteger as liberdades espirituais e de expressão da logorreia jurídica.

 

Do ponto de vista da defesa da garantia da liberdade religiosa, também beira a insanidade querer limitar Deus: mas faz parte desse silogismo burocrata, confundir o poder de Deus com o abuso de poder religioso, negando a existência divina e reduzindo toda espiritualidade a seus efeitos materiais. Afinal, se não se reconhece sequer a vontade do indivíduo, o seu apetite pelo intelecto, como poderá a autoridade reconhecer o poder de Deus, a vontade divina, o apetite pelo mistério? As narrativas jurídicas buscando se acomodar para eliminar o mistério, do qual nasce o ímpeto religioso e a conduta moral, é o novo mal a ser desfeito.

 

Por que o Poder Judiciário prefere atuar contra as causas da boa conduta moral, contra cláusulas pétreas da própria Constituição, para salvaguardar outras causas que delas decorrem? A liberdade de escolha do voto não pode ser exercida se o poder da autoridade almeja controlar o conteúdo e o teor do processo eleitoral. Não deveria atuar para limpar e disponibilizar melhores espaços cívicos hoje ocupados pelo abuso? Novos teores saudáveis surgiriam naturalmente, fosse finalmente desprezado o cálculo político nos controles constitucionais.

 

Mas o espaço público, cívico, poluído pelos predadores partidários, segue insalubre e judicializado… As manifestações democráticas espontâneas das décadas que ensejaram o nascimento da Constituinte foram, com o tempo, abandonadas, quando o narcotráfico e o crime passaram a fazer de seus discursos um material cultural distinto, que relativiza a criminalidade como uma expressão cultural urbana, de motivação inclusivista.  Sem o espaço cívico que havia sido construído, e que bravamente resiste em algumas ocasiões de efemérides e de manifestações populares locais, os cidadãos tiveram de buscar a sua cidadania e resgatar o seu espaço de liberdade e moralidade em melhores campos, nos lugares onde crescem os lírios, sob a sombra do carvalho das comunidades ibéricas, das árvores bíblicas, nos jardins espirituais construídos sobre as pulsões da fé.

 

O condicionamento prévio do gozo de direitos protegidos pela Constituição Federal, contudo, é um sintoma fascista do Estado. Como explicar que o materialismo de pressuposto igualitário das ideologias modernas tenha impregnado juízos e a filosofia do Direito, a ponto de estender a interdição na esfera cívica à interdição também da esfera interior, religiosa? Não há esfera mais íntima que a esfera religiosa, na qual o relacionamento e a ação individual e coletiva são estabelecidos sobre os pressupostos altruístas da fé, esperança e caridade, relação conhecida unicamente em sua plenitude entre o ser humano e o ser divino.

 

Talvez a resposta para o materialismo na esfera judicial e do vício do pensamento criminalista exacerbado, derramado sobre a sociedade, esteja na causa do próprio materialismo: favorecer candidatos e amizades, ex-juízes, como uma única alternativa viável, os quais almejam permanecer impunes e inconscientes de atos alienígenas, diante dos quais o eleitor terrestre tem náusea. Necessário poupar energia e salvar os altos magistrados da destruição total com que se punem, como se não lhes aprouvesse o dever de garantir liberdades em um mundo no qual todos tentam cerceá-las, e no qual os grupamentos políticos, à semelhança dos mouros, cobram taxas para permitir exercê-la.

 

Na esfera cívica, na esfera pública, quanto menor o poder do burocrata, tanto mais ele irá utilizá-lo: talvez essa lei da burocracia devesse ser enfim enunciada. Como denotar uma equação na qual essa regra observável pudesse incluir outros elementos, de tal modo que não inviabilizasse o cumprimento das obrigações do Estado e o gozo de direitos fundamentais, para o exercício da liberdade?

 

Especialistas e juristas relegam a vontade política a uma categoria anódina e sem muita importância, talvez utilizada apenas como um recurso retórico eleitoral; são raros os estudos na área de direitos, ou de Direito, que abordem como incorporar seu valor e produzi-la, seus aspectos dinâmicos e a sua importância para que uma política pública efetivamente seja implementada, ou para que uma lei produza efeitos concretos.

 

Os acontecimentos recentes revelam, contudo, a sua importância: o eleitor se mostra mais inclinado a aderir a discursos políticos nos quais essa vontade é manifesta, na qual o apetite pelo pensamento, ainda que primitivo e instintivo, existe. As políticas públicas concluídas são aquelas nas quais a vontade política foi protegida e preservada.

 

Na área de defesa de minorias políticas, dos direitos humanos e dos direitos das mulheres, seria o tempo já de identificar esse problema: sobretudo quando consideramos as perspectivas dos que trabalham nesse setor.

 

As explicações para deixar de atender quem manifesta uma violação de um direito fundamental são várias, e suas justificativas espúrias vão se acumulando em uma longa cadeia decisória. Nessa cadeia decisória, o pedido ou a manifestação do cidadão e da cidadã vai se desgastando por detalhes pouco visíveis aos oradores e formuladores, até se tornar um pleito completamente inócuo. Alguns exemplos da vida experimentada: um órgão de direitos humanos recebe um pedido; sugere seja manifestado à alguma procuradoria de defesa da mulher, em algum órgão legislativo. Uma procuradoria por sua vez envia o tema a uma parlamentar; a qual leva anos sem concluir se o tema lhe trará benefícios ou prejuízos políticos. Em seguida, sugere o tema seja encaminhado a outro órgão mais específico, criado pela Convenção de Haia, por exemplo, digamos, em um caso de defesa de direitos de crianças subtraídas a outro país; o órgão específico, por sua vez, ignora os termos substantivos da Convenção de Haia, considerando quando há uma medida judicial local que tenha subtraído crianças a outro país, embora o texto daquela Convenção não determine a legalidade de subtrair uma criança de seu lar por juiz local, e solicita documentos; após encaminhados, os documentos não são suficientes e precisam atender a outro formato, em que não se solicite que crianças sejam retornadas…

 

Sobre direitos de populações vulneráveis, o pequeno poder do burocrata se refestela: a reclamação do indígena, da violência e ameaça contra a mulher é arquivada tantas vezes, sob pedido de investigação de violação de direitos, porque em comparação com outros casos mais graves de ameaça de vida. Não ganha prioridade; juristas e especialistas deixam de inquirir o que poderia revelar crimes de motivações mais graves; e o fazem por sobrecarga de trabalho, por excesso de processos na fila; 200 milhões de processos, quase o número de habitantes, e 1 milhão de advogados; e na falta de manifestação pela vítima, naturalmente acuada diante de um ambiente desfavorável, em se tratando de ameaças, o processo é arquivado. O direito não foi gozado, nem a dignidade restituída: o direito foi restringido ou subtraído ao passar pelo crivo do Estado.

 

Ou então o órgão máximo de correção da Justiça deixa de afastar um juiz que tenha ignorado a exceção da verdade a quem deveria abominar; ou uma autoridade produz decisão financeiramente impraticável a quem a interpelou. Enfim, são tantas as explicações na vida real, nem sempre racionais, em que a autoridade debita ao cidadão o ônus da culpa pela qual seu direito não está sendo gozado… Por não ter preenchido aos estritos quesitos exigidos pela burocracia e jurisprudência, persiste um emaranhado de coerções sustentados sob as razões mais incompreensíveis à luz do dia.

 

Uma vítima de violação de direitos, para todos os efeitos, sob o atual sistema no qual se desgasta a espontaneidade dos cidadãos, que por natural, não guardam obrigação de atender aos formatos estabelecidos previamente pelas instituições, podem perfeitamente acabar se tornando vítimas de violência institucional, sendo instados a concluir que seu pleito a ter direitos fundamentais é inválido, ou que deve antes atender a quesitos e externalidades para as quais não deveria lhes ser exigido preencher. Por que a vítima não pode ser vítima, e o agressor não pode ser o agressor? As fantasias dos juristas modernos e antropófagos conduzem a uma realidade tristemente inexplicável.

 

Nesse drama em que o cidadão perde a consciência do que o motiva, por uma espécie de erosão da vontade manifestada, e no qual as instituições não criam mecanismos e espaços para validar e canalizar a vontade de exigir o seu direito, para que o cidadão efetivamente se torne titular dele, instala-se um cadinho de frustração e de tensões humanas. Essa tensão coletiva desemboca como um rio no mar, pois as frustrações individuais acumulam em reivindicações contra as próprias instituições, as quais passam a padecer de um déficit constitucional, ao menos nos termos que a CF 1988 dispõe. Qual outra razão explicaria a facilidade com que uma simples crítica institucional corre tão rapidamente pela sociedade como a eletricidade, até produzir ameaças imprevisíveis, senão um decreto de facto que a sociedade brasileira promulga, de falência do senso de Justiça? Assim como um armazém de palha seca, sem sistema anti-incêndio, num clima excessivamente quente e seco e sem manutenção, fica sujeito a um incêndio sob a mínima faísca, no interior de qualquer unidade federativa do País… Também nossas instituições foram caminhando para essa situação de risco e precisam ser renovadas e receber melhor manutenção: jamais financeira, pois a origem do problema não é a falta de recursos.

 

Quando o poder público deixa de acolher a manifestação da vontade de uma parte, debitando a falta de resultado ao cidadão, o sofrimento decorrente de direitos violados não cessa por decreto; e a frustração pode tomar qualquer direção. O que mais poderia explicar, adicionalmente, que os próprios Tribunais tenham deixado de recorrer às instituições públicas de investigação, e trazido para si próprias a própria tarefa de inquirir, investigar, acusar, magistrar e julgar? E o que explica que os próprios parlamentos busquem monitorar e restringir as liberdades que criaram, como regra, em resposta a desvios de conduta que, por parte apenas de poucos indivíduos e grupos, invariavelmente ocorrem em qualquer país? Apenas os cidadãos que já passaram por tão grande frustração diante da cidadania negativa que promove o burocrata de Estado conseguem compreender a necessidade dessa exigência excepcional, que enseja um clima ainda mais desfavorável ao exercício de liberdades e gozo de garantias.

 

Mas raras vezes conectamos em nosso raciocínio a ameaça, a violência e o exaspero com o resultado primário da relação do indivíduo com o Estado, decorrente da reação inadequada da autoridade pública. Nenhuma lei, regulamento ou regra de magistratura orgânica responsabiliza a autoridade pública pelo resultado produzido pela falta de ação em processo sob sua tutela decisória, ou pela autoria do que, concretamente, resultou na permanência de uma situação em que o direito é subtraído, ou em que a dignidade de alguma parte foi violada. Refugiam-se no caos e na adjudicação das circunstâncias ao réu muitas decisões mal embasadas e omissões. Como se pode provar isso? Ora, pela realidade na qual os cidadãos, e mesmo altos magistrados transformados em cidadãos, não gozam ainda da restituição de sua honra e de seus direitos fundamentais, por eles exigidos.

 

Apenas a vontade política do agente público, exercida em consonância com as liberdades e garantias que a Constituição intitula, transforma o indivíduo em cidadão efetivo, e é capaz de dar uma resposta de dignidade que o indivíduo, ameaçado em sua honra, não pode dar a si mesmo sozinho.

 

Contudo no plano teórico, e do discurso dos direitos, a vontade política é ignorada pelos burocratas e juristas, e tudo se transcorre com a mais completa perfeição. Nos relatórios, os órgãos de segurança listam as estatísticas de casos atendidos e mulheres e crianças encaminhadas a abrigos, o descritivo de ações. Livros são publicados pelas editoras prestigiosas em que os juristas manifestam o domínio da lei e sua proficiência sobre teses. O Estado permanece impermeável a enxergar suas falhas e falências: não há números sobre as circunstâncias nas quais mulheres e crianças permanecem privados de seus direitos à dignidade e à convivência; de quantas famílias, tendo reclamado, ainda não gozam de um lar sob segurança e vigilância; ou quantas mulheres permanecem sem direito a propriedade ou a seu patrimônio físico e moral, nos casos em que reportam ameaças de violência. A lei reconhece a maior vulnerabilidade e obrigatoriedade da discriminação positiva, mas não dispõe as circunstâncias em que a autoridade pública deverá abrir espaço e deixar permear o processo pela prioridade da voz de pessoas em situação de vulnerabilidade, para o exercício efetivo da cidadania, para o resgate da própria dignidade.

 

A própria lógica da estatística parece inconsistente com o discurso dos direitos humanos, das minorias, dos direitos das crianças e dos direitos das mulheres. Pois a integridade física e patrimonial de populações vulneráveis não pode ser dimensionada por números; a prioridade absoluta, o direito inalienável, pressupõem uma dimensão que afasta a hipótese de relevância pelo volume e proporção; mesmo assim, são escondidos pela falta de menção, por não se encaixar a dimensão da dignidade nesses critérios.

 

Além disso, da inadequação do uso da estatística de atendimentos como ferramenta, a ordem social e a mentalidade da população podem ser facilmente perturbadas por um único caso nevrálgico, ou um único ato público no qual a reação do poder público venha a demonstrar a sua absoluta ineficácia ou indisposição a cumprir com o dever de garantir direitos fundamentais, a plena defesa, a coesão de seus atos. A ação coletiva resultante do estabelecimento de uma vontade política pode não ser suficiente para reverter prejuízos e alterar pareceres que obstam o bem-estar, mas é invariavelmente desencadeada por essas falhas que o burocrata afirma para si mesmo como falhas e limitações que ele assimila em suas práticas cotidianas. Um único caso de violação e de persistência da violação de um direito fundamental pode levar a um humor coletivo que reforça a tendência a que atos violentos se acumulem, não apenas pelo senso de impunidade em geral, mas pela conformação de um ambiente negativo, conformado de estagnação e inércia, aos quais os atos públicos deveriam reagir positivamente, acolhendo e combatendo seus aspectos inoportunos.

 

Os cidadãos são ignorados pelo burocrata e pela autoridade pública com mais frequência do que deveriam. O típico representante do Estado mantém-se atrás de sua baia, face a uma fila em que se admoesta cidadãos a preencher formulários e providenciar documentos, muitas vezes exigidos e fornecidos por terceiros pagos, que poderão ser à frente denegados. O burocrata permanece protegido do público como se entre ele e o cidadão se interpusesse um muro de permanente indiferença, questionamento e desconfiança.

 

A estatística mais essencial para avaliar a eficácia de qualquer órgão brasileiro seria registrar quantos cidadãos se manifestaram, fazendo-se presentes junto a órgãos públicos, e quantos tiveram seus pleitos resolvidos, sem ser encaminhados a outra parte; e quais, não quantos, “desistiram” ou indicaram insatisfação. Contudo não há, obrigatoriamente, em cada repartição pública  judiciária que recebe petições, como nos setores competitivos, um painel para registrar uma má avaliação do atendimento; como se o Governo, em todas suas três esferas, não devesse satisfações pelos impostos e serviços administrados, e coubesse ao cidadão insistir e permanecer insistindo ad nauseum no que pede.

 

Portanto não cumpriria apenas recordar o papel da religião ao ocupar os espaços de apelo e recurso, diante da irracionalidade e da ineficácia do Estado, mas também o propósito de alcançar a dignidade da alma humana; de exercitar funções básicas de comunicação e de liberdades, o propósito final que inspira a vontade política, a qual por sua vez desencadeará na ação coletiva.

 

Há tantos episódios bíblicos registrados nos quais este ponto pode ser provado, como o livro de Jó; ou da concubina esquartejada por um levita, cujas partes foram encaminhadas a cada tribo de Israel, narrado em Juízes, capítulo 19: a destruição de templos, em Jeremias e, no Novo Testamento, em Marcos, após a morte e tortura de um inocente de reputação ilibada, em torno do que se construiu o Cristianismo e a humanidade como conhecemos hoje. A fúria do indivíduo com a injustiça é uma manifestação religiosa, um apelo à vontade quando ela alcança os seus últimos limites. Há de se recordar também os episódios da Antiguidade, mantidos pelos historiadores antigos,  os cavaleiros do apocalipse; o suicídio de Lucrécia, evento que desencadeou a mudança do regime monárquico para o regime republicano em Roma; também os assassinatos concebidos a cada geração, em função apenas de de oráculos na Grécia sobre futuros déspotas. O discurso de violência política lamentavelmente parece se espalhar sobre as instituições não quando as instituições democráticas falham; mas quando declaram querer falhar. Não porque exista dolo, mas porque assim tem funcionado o mundo, desde que é mundo, e assim vêm registrando os historiadores as mudanças dos regimes políticos.

 

Nisso reside a importância da vontade política, pois atingir uma mudança na qual pessoas em situação de vulnerabilidade possam ter sua situação modificada implica o estabelecimento de vínculos de confiança, e esses vínculos não se estabelecem sem a manifestação concreta da vontade de um decisor,  da autoridade: vontade essa de intervir na realidade do cidadão com vistas a alterá-la substantivamente.

 

Agir para resgatar a sua dignidade é mais importante do que o êxito, porque o gesto de vontade é que contém a resposta que a dignidade demanda.

 

Alguns belos exemplos pouco percebidos, ou reputados como exceções de menor relevância: o delegado que compra uma bola de futebol para os garotos do bairro subtraído pela vizinha, e que passa para avisá-la que se subtrair novamente será chamada à delegacia; a técnica do órgão de medidas socioeducativas que inscreve adolescentes em reclusão em concursos escolares, e com eles estuda para que tenham melhor desempenho; o professor que agenda horários e atende aos alunos de notas insuficientes pela tarde; o Ministro do Superior Tribunal Militar que visita cidadãos na periferia para conversar e ensinar crianças a ler, nos finais de semana, cujo exemplo bem mereceria presidir toda Corte; o juiz que vai até à residência do aposentado que não pode se deslocar, para receber aposentadoria; ou aquele que responde a um pleito em uma sentença com versos, em pleno velho oeste de Goiás.

 

Esse tipo de relacionamento entre cidadão e autoridade no qual a vontade política é manifestada diretamente, e que produz frutos que saciam, instantaneamente reconhecidos e recomendados pela sociedade, demonstra, na sua raridade a descomunal diferença que ainda persiste entre o cidadão e o Estado na sua ausência. Não vem sendo esse relacionamento alvo de nenhuma reforma administrativa ou tese, por um simples fato: para a autoridade de Estado, e para o Legislador, a vontade política ainda é um sintoma de subjetividade, pois não se veem como responsáveis pelo ambiente de expectativas positivo, que torne possível a qualquer cidadão o simples acesso ao seu direito.

 

A dissociação da ascensão de carreiras de Estado com a necessidade de um serviço público meritório, que produza o efetivo bem social observável no indivíduo, também parece incentivar o desenvolvimento de dois discursos paralelos e dissociados: um discurso da autoridade para os seus pares, e outro para o público. A observância de dois discursos paralelos demonstra uma crença de longa data, instalada em função da baixa atividade e pelo ambiente inóspito em que atuam os quaestores. Sem essa inspeção, fica difícil desprovar que o cidadão não tivesse, ou não pudesse ter, participação direta ou indireta alguma na progressão de carreira ou na vida dos funcionários, por não deter as manifestações de poder simbólico desejáveis: o acesso a mídia, os contatos de alto nível, o prestígio da concessão de espaço em revistas e simpósios, a formação de opinião junto a seus pares…

 

A objetificação do indivíduo dentre os assomos do público, por sua vez, objetifica também o seu autor, petrificando a sua perspectiva de mundo em uma lógica restrita e ineficaz. Pois a dureza com que a autoridade trata o cidadão produz efeitos em ambos os lados, tanto no seu interlocutor destinatário, quanto em si mesmo, e o resultado são agentes do Estado com um coração duro, imprestável para implementar qualquer tipo de serviço público minimamente digno.

 

A vontade política é a expressão de um desejo partilhado, na esfera cívica e dos direitos, entre a autoridade e o cidadão, que permanece face a diferentes circunstâncias, vicissitudes, até que o direito seja gozado, ou que o resultado seja um consenso do qual o cidadão seja autor. Ela se manifesta tanto por meio da ação em prol da garantia de acesso a um direito quanto por meio dos freios face ao agir contra o interesse do indivíduo, com o qual se confunde. A ausência de vontade política, quando a autoridade se dirige aos cidadãos na esfera cívica, e a subtração dos direitos fundamentais têm efeitos nefastos, cujo exemplo mais comum é a privação ou morte de opositores; e a litigância judicial. Sob um ambiente político e burocrático deteriorado, os adversários políticos civilizados não têm outra opção, salvo aquela da vida ativa e da intervenção extemporânea e permanente, para manter vivos os adversários com os quais queiram prosseguir dialogando: um constante desgaste provocado pela configuração atual, raramente compensado pela atuação do partido.

 

Quando a autoridade pública deixa de desejar produzir mudanças nas circunstâncias vividas pelo cidadão que pleiteia, com o qual se relaciona, restringindo a sua esfera de ação à regra de conformidade de discursos, ao cumprimento de relatórios, rotinas, dispositivos e jurisprudências, acaba extirpando da ação coletiva precisamente o seu elemento motor indispensável, sem o qual o serviço público não se justifica, nem o seu soldo. Números jogados a plateias inexistentes.

 

Muitos assinalam o paquiderme em que resultou o Estado brasileiro, a carga tributária onerosa e os serviços pífios, para justificar uma “desideologização”, ou seja, a extirpação de uma ideologia diferente da ideologia de Governo, para arguir necessária uma ampla reforma para garantir estabilidade política; ou mesmo para defender uma paulatina modernização administrativa. E exaltam assim o próprio papel do Estado; e também um certo fatalismo de decretar falido um “sistema de direitos”, a quantidade de foros, telefones de denúncias e de projetos, ou páginas de papel, para garantir direitos humanos e a populações vulneráveis, como mulheres, idosos e crianças. Ainda não há, salvo algumas exceções, carreiras de Estado nas quais o servidor receba incentivos para desenvolver sua vontade política de resolver demandas e produzir o bem-estar público no espaço em que o cidadão esteja, tanto físico quanto de convivência. Pois a início de conversa, diferentemente do material sobre o qual versa o Direito Internacional, nos relatórios domésticos, há disposições de convenções e leis asseverando o marco legal de um mandato e o que deve ser: jamais o delineamento de problemas e como foram resolvidos…

 

Contudo deveríamos nos dedicar mais a compreender por que razão a vontade política que move o serviço público se manifesta mais pronunciadamente em certas autoridades isoladamente, onde esse elemento alcança excelentes resultados sem defender significado ideológico ou partidário; e por que, na sua grande maioria, em indivíduos que compõem o sistema burocrático, nota-se ausente a esse movimento de interação positiva com seu público. Pois problema não haveria, nem necessidade permanente de reforma, se o servidor estivesse efetivamente a serviço do cidadão, no que lhe compete, para auxiliá-lo até que se concretize efetivamente a obtenção de seus direitos em seu domínio.

 

Talvez ignorar propositadamente o ato que almeja o fascismo estruturalista, do diagnóstico de um Estado que busca ser total e dar uma resposta total por ele mesmo, retirando-lhe a legitimidade do púlpito, seja a melhor maneira de que isso não produza nenhum fruto pior do que aquele que notamos hoje. É preciso encontrar espaços cívicos de liberdade, que não dependam de autorizações, nem estejam poluídos pela judicialização e pelas tarifas do Estado. Para os bons frutos, encontramo-nos no trajeto que é traçado pelo indivíduo tornado são e sagrado, pelo seu histórico de vida e pela sua personalidade que merece respeito. A construção de uma sociedade saciada de liberdades, portanto, tem de passar pelo resgate da dignidade desse indivíduo dinâmico ao qual deveria equivaler o magistrado, o que consegue se colocar acima das disputas entre as partes, mesmo quando as partes lhe tosam.

 

Este mês deixo três poemas. O primeiro deles um poema ácido e divertido, ironizando a tentativa do Estado de regulamentar a temática religiosa, alertando para a paranoia da ilusão de que se pode resolver um problema de dignidade do indivíduo, de fundamento coletivo, excluindo toda a sociedade brasileira. Eis o ápice do auge com que sonharia qualquer Dom Quixote em busca de um sonho perdido: excluir-se do mundo para salvar-se dele. Mas a vida não se resolve assim, sobretudo no Brasil e disso, digamos vem a minha vontade política de Sancho, do dever de combater a angústia daqueles que amamos com algum pragmatismo imperceptível.

 

Portanto, que a paranoia se cure com a minha maior paranoia; que a loucura jurídica se cure com a minha maior loucura bíblica. A liberdade se produza com mais liberdade e se faça poesia com mais poesia.

 

O segundo poema, uma tentativa de encontrar antídoto aos efeitos dessa angústia coletiva, produzida por um estado de mal estar decorrente da excepcionalidade, pelo desejo de retornar à vida normal, de se sentir novamente amado e protegido; vontade de que o sequestro do caos e da incerteza não seja a norma condutora que impede e paralisa nossas vidas. A melhor maneira de vencer um pesadelo de ameaças constantes, parece-me, é desenvolvendo uma couraça positiva. O caos jamais poderá destruir o sonho, nem livros, nem amores, nem a poesia, porque eles fazem parte da vida que se vai renovando continuamente.

 

O terceiro um poema sobre o diálogo e o bom combate. Os altares de reputações são a quem já passou deste mundo a outro. Para os vivos, vontades e bandeiras. Longa vida a todos Quijotes…

 

 

O poema vulgar da paranóia – Ana Paula Arendt

 

Arrependei-vos,

Ó pecadores do mundo!

Arrependei-vos de pecar

De madrugada pela clave insana…

Arrependei-vos,

Ó, vassalos da injustiça!

Arrependei-vos de clamar

Por gestos de vossas vantagens pueris…

 

Arrependei-vos,

Ó vós, de vozes soturnas e vulgívagas,

Transmitindo despudor e malícias

Pelas frestas de incenso às horas vagas!

 

Arrependei-vos de ter feito a própria vontade,

De ter navegado sobre o despertar do mundo…

Arrependei-vos de escrever o que pensam!

 

Arrependei-vos da pornografia acessada!

Arrependei-vos da troca de carícias!

Arrependei-vos das mensagens profanas de gozo!

Arrependei-vos de respirar!

Arrependei-vos de falar!

Arrependei-vos de dar opiniões!

Arrependei-vos de trabalhar!

Arrependei-vos de ter nascido!

 

Arrependei-vos, arrependei-vos…

 

Arrependei-vos de passar perfume…

 

Ó seres humanos vazios,

Que precisam de mensagens para passar o dia,

Que precisam da ironia para valer seu tempo!

Ó tricoteiras que sussurram o crime nos alheios ouvidos!

 

Arrependei-vos de insultar autoridades,

De ridicularizar onde não alcançam minhas mãos!

 

Riam agora…

Riam agora que acessam todas as mensagens,

De todo cidadão e prostituta,

De toda cidadã e seu amante! Riam!

Riam agora, que o Estado conhece a todos!

Riam agora, neste momento em que todos vossos comentários são observados!

 

Riam agora, os que votaram em quem quiseram,

Riam agora, os que citaram Sêneca e Cícero!

Pecadores, sereis humilhados!

 

Arrependei-vos de vossa autonomia!

 

Ó seres pecaminosos que se beijam na boca,

Ó seres vadios que se agarram na praça!

 

Ó vermes que desejam a vitória eleitoral e mais votos a seus candidatos!

Ó feios que votam e pedem votos,

Ó infelizes que se alegram na política!

Ó loucos, que osculam estátuas e constróem efígies!

 

Arrependei-vos!

Arrependei-vos de dizer idiotices!

Arrependei-vos de elogiar idiotas!

Arrependei-vos agora antes que o tempo lhes destrua!

Antes que o escárnio e o escândalo vos domine pela filosofia do Direito!

 

Arrependei-vos de lançar ao ar o que fizeram

E arrependei-vos de cantar no banheiro!

 

Ó vós todos que ameaçais estuprar filhas,

Que estais em toda parte, malditos sejam,

Vós todos que mentem a respeito de tudo!

 

Arrependei-vos de falar uns com os outros

sobre outros assuntos que não sejam meus atos,

Arrependei-vos de rir de vossas vidas com vossa liberdade!

Não há outro caminho senão o do arrependimento!

 

 

Vencer um pesadelo – Ana Paula Arendt

 

Vencer um pesadelo,

Mais fácil que vencer a insônia;

Ser eco de uma coisa vaga,
Fio de um novelo emaranhado desferido.

 

Mais fácil é tomar o punhal

Das mãos de quem ameaça ,

Retirar de si os cabelos de quem

Rezou por mais ódio e sofrimento…

Mais fácil que aprender minúcias de torvelinho

É vencer o pesadelo com um sonho.

 

Vencer o pesadelo com um sonho,

De riso, lealdade e brincadeira

Encanto leve de poder dizer o que se queira,

Sem que os anjos maledicentes da noite

Carreguem as almas desesperadas.

 

Vencer o pesadelo com um sonho,

Dar palavras que nos façam como antes;

Com sorriso feito de água deste instante,

Paisagens verdadeiras de mãos arcazes…

Frente ao mal de ser ligeiro e ser vorazes,

Vencer o pesadelo com um sonho.

 

 

O Dia da Vitória – Ana Paula Arendt

 

Nós somos

as armas de destruir armas,

Despossuídas de intento,

Desassossegadas pelo despreparo.

As armas são as nossas mãos

de escrever coisas duras

e de aplainar os montes,

de devolver lírios aos vales,

de tecer as explicações que o vento gosta;

da vasta mesa feita de papéis com oceanos,

do jardim em frente à Matriz de madrugada,

dos planos feitos na calada da noite.

 

Nós já somos

réus de um céu estrelado

Pela noite cantando palavras nuas,

O que foi plantado em nossa bandeira

Pelo sentimento mais puro de poeta:

Portas para um futuro acabado,

Visão de sonho que almejamos:

O lugar onde nenhuma mulher esteve,

De estilhas encontradas por estivadores,

Colhidas sob o óleo absoluto do ládano:

A tua imagem que paira plena e eterna na íris,

Porque irrompe de um presságio compartilhado.

 

Nós nos tornamos

A maior loucura que cura loucuras,

Amadores de intensa brandura,

De instável flama e rara pluma,

Urna de desejos insaciados.

O corpo em que a algibeira pende,

Das ideias e reviravoltas de ser felizes;

De angústia em segredo revelada,

Do verdadeiro afeto pela diferença,

A distinção de um carinho delicado;

O que não foi dito, mas deu vida aos mortos,

Por causa do vasto amor em vasos plantados,

De ter gritado pela nossa liberdade…

De ter prosseguido por gestos de pura esperança.

Ana Paula Arendt é poeta e diplomata brasileira. Escreve mensalmente na coluna ‘Terra à Vista’.

Ressalva: os trabalhos sob o pseudônimo Ana Paula Arendt pertencem ao universo literário, refletem ideias e iniciativas da autora e não necessariamente posições oficiais do Governo brasileiro. Estes trabalhos literários buscam estar em consonância com os valores e princípios da Política Externa Brasileira relacionados ao diálogo, à dignidade humana, ao desenvolvimento e aos direitos fundamentais do indivíduo. A autora está sempre aberta a sugestões e críticas.